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3. Gestão do risco e gestão de conflito: análise sobre diferentes modelos de regulação sobre organismos geneticamente modificados

3.3. Exemplos de gestão

A cultura norte-americana, fascinada pelos desenvolvimentos tecnológicos e por inovação explica, em parte, a receptividade aos OGMs diante das críticas europeias. Por ser um gigante na produção agrícola, os Estados Unidos lideram mundialmente as pesquisas e o desenvolvimento de produtos transgênicos e, consequentemente, são seu maior usuário e divulgador (LEGAULT, 2001, p. 11; ARAUJO, DOLABELLA, 2007).

As empresas de biotecnologia e várias universidades norte-americanas são detentoras dos direitos de propriedade intelectual sobre a maior parte das plantas transgênicas em uso no mundo. Os grandes conglomerados internacionais de biotecnologia foram formados, em sua maioria, a partir de processos de fusão e incorporação empresarial realizados por empresas norte-americanas que mantêm liderança na venda de sementes e agrotóxicos (ARAUJO, DOLABELLA, 2007; BENTHIEN, 2010; ANDRIOLI, FUCHS, 2009, p. 34).

Essas empresas recebem importante suporte político do governo para defesa de seus interesses econômicos, inclusive em fóruns multilaterais, como na Organização Mundial do Comércio. Exemplo desse suporte político é o fato de o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush declarar, na Cúpula do G8, em 2003, que trata de prioridade estratégia a suspensão da proibição da União Europeia à importação e à liberação de produtos transgênicos (ARAUJO, DOLABELLA, 2007; ANDRIOLI, FUCHS, 2009, p. 34).

O modelo de regulamentação norte-americano, como exemplo do modelo standard proposto por Joly (2001), privilegia o sistema custo-benefício e é hostil ao princípio da precaução. Todas as plantas transgênicas são aprovadas pelos mecanismos de controle responsáveis pela saúde pública: o Departamento Norte-Americano de Alimentação e Medicamentos (Food and Drug Administration – FDA), o Departamento de Agricultura (United States Department of Agriculture – USDA) e a Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency - EPA) (LEGAULT, 2001, p. 11; BENTHIEN, 2010, p. 96).

Existe ainda o Serviço de Inspeção de Saúde Animal e Vegetal (Animal and Plant Health Inspection Service – APHIS), cuja responsabilidade é supervisionar os produtos de origem biotecnológica que possam apresentar riscos relacionados à regulamentação da importação, manuseio, movimentação interestadual e liberação no meio ambiente. O FDA é responsável pelo estabelecimento de normas de segurança dos produtos. Já a EPA é responsável pela manutenção de um cadastro de controle sobre a distribuição e venda de pesticidas, incluindo aqueles produzidos para serem usados em plantas transgênicas (BENTHIEN, 2010, p. 96).

O modelo norte-americano considera como pouco importante os fatores relacionados à fabricação dos alimentos e os recursos utilizados nos processos de transgenia. Os OGMs são avaliados por uma legislação pré-existente baseados no Coordinated Framework for

Regulation of Biotechnology, que prevê que os produtos devem ser avaliados da mesma

forma que os obtidos por outras técnicas, inclusive os convencionais, no que tange à sua segurança e eficácia, portanto, não incorpora processos de rotulagem e de regulamentação específica sobre a coexistência de cultivares transgênicos e convencionais (BONNY, 2009).

A regulamentação norte-americana baseia-se no princípio de equivalência substancial. De acordo com essa abordagem, um produto é equivalente substancialmente a outro quando for: (i) idêntico ao produto original na finalidade de uso e; (ii) idêntico na composição nutricional, no manuseio e no preparo. A avaliação do produto a partir desse princípio inclui somente avaliações químicas, deixando de lado avaliações biológicas,

toxicológicas e imunológicas (JESUS, PLONSKI, 2006; MILLSTONE, BRUNNER, MAYER, 1999; BENTHIEN, 2010).

A adoção do conceito de equivalência substancial efetiva-se na década de 1990, por meio de pressões realizadas pelos conglomerados multinacionais do setor biotecnológico, que exerceram pressão política para que o princípio fosse adotado, facilitando o acesso do produto no mercado. De acordo com Millstone, Brunner e Mayer (1999) os testes toxicológicos atrasavam a entrada dos produtos no mercado numa média de cinco anos, gerando um aumento nos custos de pesquisa e desenvolvimento da ordem de 25 milhões de dólares por produto (BENTHIEN, 2010, p. 100 - 101).

O fato de os Estados Unidos terem adotado o Princípio da Equivalência Substancial, no que tange à comercialização dos OGMs, revela a prioridade econômica atribuída a esse tipo de tecnologia. Tal prioridade está intimamente associada a um modelo regulatório menos restritivo. A principal crítica a esse modelo refere-se à falta de transparência e de rigor na definição dos critérios de análise de risco associados ao cultivo de plantas transgênicas (PELAEZ, 2004).

Para Pelaez (2004), o marco regulatório dos Estados Unidos tem conseguido impor um processo de rápida liberação dos OGMs, de forma a garantir a consolidação comercial da biotecnologia. Neste modelo, as práticas de gestão do risco tecnológico relativas ao controle ambiental das plantas transgênicas, são ainda deficientes e condizentes com uma análise do risco que desconsidera a existência de riscos ambientais adicionais com a disseminação dos OGMs.

Os conflitos que surgem nos Estados Unidos, conforme salientam Andrioli e Fuchs (2008, p. 87 - 90) são relativos à contaminação de lavouras convencionais por meio de fluxo gênico, ao pagamento de patentes e à quebra de contratos. Os autores afirmam que os legisladores norte-americanos permitem às empresas aplicar a legislação sobre patentes como arma contra agricultores. A disseminação irrestrita dos produtos patenteados ocorre devido a não regulamentação específica sobre a questão da propagação de sementes. Desta forma, estados como Dakota do Norte e Indiana já possuem leis de proteção aos agricultores contra a agressividade das empresas.

Ao lado dos Estados Unidos, reconhecido como o principal divulgador da transgenia agrícola, estão países como a Argentina, o Canadá e a Austrália, onde grande parte ou a totalidade das safras de soja são transgênicas.

A Argentina foi o primeiro país em desenvolvimento a liberar lavouras experimentais e comerciais de transgênicos, logo após as primeiras liberações comerciais de transgênicos nos Estados Unidos. Desde a década de 1990, a soja se instalou como principal sistema agroprodutivo, substituindo, em grande medida, as formas agrícolas e produtivas antes existentes (BENTHIEN, 2010; LEHMANN, PENGUE, 2000).

O caso da Argentina ilustra a hegemonia do mercado de sementes por meio da tecnologia. Seu papel proeminente na coalizão pró-transgênicos em conjunto com Estados Unidos e Canadá e as amarras comerciais com a China são reforçadas pela forte participação das corporações multinacionais de biotecnologia. Segundo Benthiem (2010), a Argentina adotou a biotecnologia agrícola de forma rápida e em grande escala, gerando pressão para que outros países da região começassem a cultivar sementes transgênicas. Além da completa exclusão da participação social nas decisões a respeito da biotecnologia, a introdução da soja transgênica não foi objeto de ampla controvérsia social e política. Essa situação contrasta com outros países da América Latina no que diz respeito ao movimento de oposição e contestação à biotecnologia agrícola. Em países como México, Peru e Brasil houve intensas oposições que culminaram em batalhas legais e judiciais (Brasil), assim como em denúncias de contaminação, como a do milho no México (BENTHIEM, 2010, p. 200 - 201).

A consolidação do perfil agroexportador da Argentina com bases no modelo de monocultura de soja transgênica ocorreu na década de 1990, com a edição do Decreto de

Desregulación de 1991. Esse decreto eliminou os órgãos que regulavam a política comercial

agrícola e, consequentemente, o sistema agrário argentino se transformou em um dos menos regulados do mundo. O processo de desregulamentação colocou os pequenos e os grandes agricultores num mesmo patamar de competitividade, contribuindo para a diminuição gradativa dos pequenos estabelecimentos produtivos no campo. Nesta mesma época, as corporações biotecnológicas passaram a desempenhar um papel central e ativo no desenvolvimento da política econômica e agrícola da Argentina, tendo a biotecnologia como principal elemento impulsionador (BENTHIEM, 2010, p. 210 - 211).

A legislação argentina sobre sementes permite a conservação e o armazenamento de sementes para uso pessoal, o que favorece a estratégia comercial de disseminação representada pela pirataria da transgenia na Argentina. A Monsanto entrou oficialmente na Argentina comercializando suas sementes transgênicas sem obrigar os agricultores argentinos ao contrato vigente nos EUA e na Austrália, que os impedia de replantar as sementes e, consequentemente, sem cobrar royalties. Essa estratégia de “vistas grossas” favoreceu a expansão da soja transgênica na América do Sul e serviu como plataforma para

a entrada de sementes transgênicas no Brasil (VIGNAUX, 2009; PINHEIRO, 2005; BENTHIEN, 2010, p. 212 - 213).

Com a introdução das biotecnologias, a Argentina estruturou os procedimentos de análise e liberação comercial dos produtos geneticamente modificados de forma similar ao modelo standard norte-americano. A agência responsável pela liberação comercial de transgênicos na Argentina é a Secretaria de Agricultura, Ganaderia, Pesca e Alimentacion - SAGPyA, que recentemente ganhou status de Ministério no país. A SAGPyA se baseia em documentos produzidos por outras cinco comissões assessoras: a Comisión Nacional

Asesora de Biotecnologia – CONABIA, o Comité Técnico Asesor sobre uso de Organismos Geneticamente Modificados do Servicio Nacional de Sanidad y Calidad Agroalimentaria

(SENASA), a Direción Nacional de Mercados Agroalimentarios (DNMA) e a Direción de

Semillas de la SAGPyA (BENTHIEN, 2010 p. 213 - 214).

Foi a CONABIA que inicialmente desenvolveu os mecanismos para regulamentar os ensaios para a introdução de transgênicos no ambiente. Atualmente é responsável por examinar todas as solicitações de estudos, pesquisa de campo e comercialização de OGMs na Argentina. É formada por várias instituições e todos os membros da Comissão são indicados pela SAGPyA. Essa Comissão realiza o trabalho de análise dos pedidos e decide historicamente de forma consensual a favor das liberações. Segundo Benthien, a metodologia de estudos utilizada pela SAGPyA para avaliação de risco baseia-se, em grande parte, em estudos fornecidos pelas próprias empresas que solicitam a liberação comercial do OGM. Isso certamente permite que surjam dúvidas quanto à neutralidade dos resultados (BENTHIEN, 2010, p. 214 - 215).

A rápida introdução dos transgênicos na Argentina, o perfil voltado ao agronegócio e o desconhecimento generalizado sobre a transgenia agrícola são elementos importantes que contribuíram para que fossem evitados maiores debates públicos sobre o consumo humano de produtos transgênicos desde o início de sua inserção comercial no país. A pesquisa de Benthien (2010) revela que na Argentina ocorre um desconhecimento generalizado sobre o tema dos transgênicos, não apenas por parte da sociedade, mas também pelos representantes políticos no Congresso. Segundo Benthien, não houve controvérsia sobre a introdução dos OGMs no país pelo fato de os produtos serem tratados nas instâncias técnicas governamentais consideradas competentes e respeitadas pela sociedade. A sociedade confiou as decisões científicas para a esfera da ciência, dentro da perspectiva do modelo standard, proposto por Joly (2001) (BENTHIEN, 2010, p. 218).

Já o Canadá adota uma política específica, baseada no modelo standard revisado, que estrutura uma comissão tecnocientífica que toma decisões acerca dos produtos oriundos da biotecnologia. O sistema da regulação canadense baseia-se em procedimento de avaliação de risco que é incorporado nos processos decisórios. A Canadian

Biotechnology Advisory Committee - CBAC trabalha com a coleta de diferentes pontos de

vista sobre questões controversas. Estes diferentes pontos de vista são coletados em audiência pública onde os comissionados fazem uma síntese das posições e submetem suas recomendações aos legisladores. (AHMAD, 2003; LEGAULT, 2001, p. 14 - 15).

Segundo Ahmad (2003, p. 50), a criação da CBAC não foi suficiente para combater as práticas viciadas das autoridades reguladoras. Além disso, a CBAC não reconhece devidamente os pressupostos inerentes ao processo de avaliação de risco e segue a linha estadunidense no que se refere à importância dada à dimensão econômica.

Além da comissão de biotecnológica, a Canadian Food Inspection Agency (CFIA) foi criada em 1997 para consolidar as funções de regulamentação de quatro departamentos: Agricultura, saúde, pesca e indústria e tem como objetivo proceder à regulamentação de segurança alimentar, animal e vegetal, como também da segurança dos consumidores no que se refere à rotulagem e à informação sobre produtos geneticamente modificados (AHMAD, 2003).

Os debates públicos sobre OGMs questionam a confiança do sistema canadense de proteção à população. A abordagem científica de equivalência substancial utilizada para verificar a inocuidade dos OGMs é criticada sob a luz da possibilidade de que os transgênicos afetem o conjunto do sistema a longo prazo. A criação da Canadian

Biotechnology Advisory Committee - CBAC, por outro lado, traz à sociedade uma

perspectiva mais reflexiva quanto às questões sociais e éticas que, de alguma forma, influencia a opinião pública e as políticas de regulamentação (LEGAULT, 2001, p. 17 - 19).

Os países da União Europeia se posicionam de maneira mais restritiva em relação às plantas e aos alimentos geneticamente modificados. O ápice do movimento de restrição foi a adoção de uma moratória para o plantio de transgênicos, que perdurou por cinco anos e encerrou-se em 2004 (ARAUJO, DOLABELLA, 2007).

Na Europa os movimentos ambientalistas e de defesa dos consumidores exercem importante influência sobre a opinião pública e governos dos países-membros da União Europeia. Desde 2004, em conformidade com a Diretiva 2001/18 da Comunidade Europeia, foram aprovadas variedades transgênicas de milho e colza para plantio. Atualmente, cultiva- se milho transgênico em áreas relativamente pequenas de apenas sete países europeus. Na

Comunidade Europeia observa-se, ainda, forte resistência de movimentos de consumidores contra os produtos transgênicos (ARAUJO, DOLABELLA, 2007).

A União Europeia possui duas diretivas que determinam o marco regulatório para limitar os riscos associados à difusão de OGMs. A Diretiva 90/219/CE, de 1990, trata da questão dos OGMs em meio confinado (estufa ou laboratório). Cada Estado da União Europeia tem liberdade para expedir essas autorizações (FERMENT, 2008).

A Diretiva 2001/18/CE, em vigor desde 2002, é relativa à disseminação voluntária de OGM no meio ambiente e baseia-se no Princípio da Precaução, que prevê um procedimento de autorização para cada caso de OGMs com uma avaliação detalhada dos riscos para o meio ambiente e para a saúde humana e animal. Impõe a obrigação de garantir uma fiscalização após a comercialização e, especialmente, observar os seus efeitos potenciais a longo prazo sobre o meio ambiente (biovigilância). Cria procedimentos de etiquetagem e de rastreabilidade e um mecanismo de consulta e informação do público pela Comissão Europeia ou pelos Estados-membros (FERMENT, 2008).

O caso francês ilustra bem a dinâmica das nações europeias. O governo francês publicou em 20 de março de 2007, no Jornal Oficial, uma série de textos destinados a transformar a Diretiva 2001/18/CE em legislação nacional. Foram criadas duas comissões específicas: a Comissão de Engenharia Genética - CGG, encarregada de avaliar os riscos dos OGMs e sua utilização, especialmente em meio confinado; e a Comissão da Engenharia Biomolecular - CGB, encarregada de avaliar os riscos derivados da disseminação voluntária e da colocação no mercado e da importação de OGMs (FERMENT, 2008).

Além disso, várias agências independentes de análise dos riscos sanitários foram sucessivamente criadas para aplicar o Princípio da Precaução: o Instituto Nacional de Vigilância Sanitária - INVS, criado em 1998, com o objetivo de vigilância e de realização de estudos epidemiológicos sobre o estado de saúde da população; a Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Alimentos - AFSSA, em 1999, que avalia, especialmente, os riscos nutricionais e sanitários dos alimentos; e a Agência Francesa de Segurança Sanitária Ambiental - AFSSE, em 2001, que contribui para garantir a segurança sanitária e avalia os riscos sanitários no meio ambiente (FERMENT, 2008).

A Comissão de Engenharia Biomolecular (Commission du Génie Biomoléculaire - CGB), criada em 1986, pelo Ministério da Agricultura, tem o papel de analisar de riscos ligados aos OGMs. Ela deve ser consultada sobre qualquer autorização de disseminação de um OGM, seja para pesquisa ou liberação comercial. Deve, também, examinar os problemas de segurança ambientais e para a saúde humana e propor pesquisas sobre os

efeitos de disseminação dos OGM em larga escala. Os membros da CGB são nomeados conjuntamente pelos ministros da Agricultura e do Meio Ambiente para um mandato de três anos (FERMENT, 2008).

O processo de biovigilância implementado na França corresponde a um controle permanente e a posteriori da autorização de comercialização dos produtos geneticamente modificados, com o objetivo de antecipar qualquer surgimento de risco que não tenha sido identificado durante as pesquisas de campo e testes de laboratório. A aplicação do Princípio da Precaução para a disseminação voluntária de OGM no meio ambiente passa, então, necessariamente por um processo de gestão do risco (FERMENT, 2008).

As normas de coexistência entre as culturas convencionais e as geneticamente modificadas, bem como a rastreabilidade dos produtos geneticamente modificados, podem ser incluídas no âmbito da biovigilância. De acordo com Ferment (2008), o Comitê de Biovigilância conta com poucos recursos humanos e financeiros o que restringe o exercício de seu papel determinante no campo da biossegurança.

O modelo de regulamentação francês inicia-se, portanto, como um bom exemplo do modelo Standard revisado proposto por Joly (2001). Porém, fatores culturais e sociopolíticos incrementaram a política francesa em relação aos OGMs.

Em 1997, a política de regulamentação francesa enfrentou uma grave crise de legitimação devido à oposição de uma vasta gama de organizações. Em fevereiro, o Primeiro Ministro francês decidiu não autorizar o cultivo comercial do milho geneticamente modificado (Bt 176, da Ciba-Geigy), embora essa variedade de milho tivesse sido autorizada pela Comunidade Europeia. A forte participação pública indicou uma crise de competência da elite tecnocrática francesa (LEVIDOW, 2007).

Em 1998, foi realizada a primeira Conférence de Citoyens que buscava um consenso sobre os OGM. A Conferência, representada por cidadãos comuns, objetivava estruturar um modelo de democracia direta para debater toda a complexidade da questão que envolve a liberação dos OGMs. O objetivo da Conferência foi desenvolver uma nova forma de tomada de decisões com intuito de implementar um modelo de regulamentação que Joly (2001) denomina de coconstrução (LEVIDOW, 2007; LEGAULT, 2001, p. 17).

Inicialmente, a Conferência foi concebida para reafirmar a competência do Estado e do próprio Parlamento. A organização da Conferência foi delegada ao Office Parlementaire

d'Evaluation des Choix Scientifiques et Technologiques - OPECST, que simbolizava uma

representantes dos diversos segmentos de opinião pública e de interessados no debate, bem como de peritos e cientistas (LEVIDOW, 2007).

Conforme salienta Levidow (2007), o relatório da Conferência indicou que: (i) o controle das empresas multinacionais poderia ameaçar a independência dos agricultores; (ii) as espécies geneticamente modificadas apresentam graves problemas de normatização; (iii) os produtos geneticamente modificados apresentam riscos de proliferação descontrolada. Por outro lado, a Conferência concordou que as culturas transgênicas poderiam se reverter em benefícios econômicos para a agricultura europeia.

A principal recomendação do Relatório baseou-se na necessidade de melhorar a gestão da agricultura biotecnológica. Para tanto, seria necessária uma maior participação social na execução dos pareceres científicos; a formação de um setor público de investigação de riscos ecológicos da agrobiotecnologia e da inovação; um sistema que garanta a rastreabilidade dos produtos alimentares derivados de culturas geneticamente modificadas; e uma política de rotulagem adequada para informar e orientar a escolha do consumidor. Até que estas condições fossem preenchidas, o Relatório aconselhou uma moratória aos OGMs (LEVIDOW, 2007).

O Relatório ajudou o governo francês a legitimar e reforçar essas iniciativas, que não tinham sido, ainda, universalmente aceitas nos diferentes segmentos do governo. Apesar das suas limitações, a Conférence de Citoyens iniciou uma nova forma de representação da sociedade civil e de mecanismo de conhecimento do público sobre o tema. Procurou informar aos decisores sobre as opiniões daqueles que não se sentem representados pelos partidos políticos, sindicatos, organizações não governamentais ou ambientais e de consumidores (LEVIDOW, 2007).

O modelo de coconstrução na gestão da biotecnologia na França foi estruturado a partir de diversos conflitos ocorridos no país. Um grupo de agricultores, denominados de

faucheurs volontaires, formou um movimento no país com cerca de 6.700 ativistas que

reivindicam o fim dos transgênicos na França. Esse grupo é acusado de destruir ensaios e culturas de OGMs no campo e nos centros de pesquisa.

As ações de destruição iniciaram com um ataque ao CIRAD (Centre de Coopération

Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement), em 1999. Os faucheurs volontaires destruíram várias mudas de arroz transgênico cultivadas em sua estufa

investigação científica sobre a criação de variedades de arroz naturalmente resistentes aos predadores (LE MONDE, 1999).

Após essa ação, muitos outros ataques ocorreram tanto em experimentos de instituições públicas (como o INRA - Institut National de Recherche Agronomique) como de organizações privadas (Novartis, Monsanto, entre outras).

Por meio da sabotagem ao CIRAD e, posteriormente, ao INRA (agosto de 2000), instituições públicas de pesquisa agronômica, o Estado francês foi contestado enquanto instância neutra na tomada de decisões. Estes atos e os que seguiram estimularam importantes mudanças na estruturação de um modelo de coconstrução, que inclui a participação dos diferentes grupos de interesse no debate. Por outro lado, as instituições de pesquisa argumentam pela importância de se manter a pesquisa pública em biotecnologia no país.

O conflito entre agricultores e centros de pesquisa na França revela uma nova dimensão dos conflitos sobre alimentos transgênicos que coloca em oposição agricultores e cientistas. Mostra a desconfiança da sociedade francesa, altamente educada e politizada, em modelos de gestão baseados exclusivamente na ciência e ressalta a necessidade de uma discussão mais ampliada sobre o problema.