• Nenhum resultado encontrado

1. O diálogo entre a ficção científica e a ciência na hipermodernidade: apreensões e resistências sociais

1.4. Novas máquinas, novos seres: novo poder

Esta primeira fase de representação social do poder e dos perigos da ciência se dissemina no início do século XX por meio do cinema, que se caracteriza pela constituição de uma “impressão de realidade”, de forte apelo emocional (CABRERA, 2006, p. 37 - 45).

Segundo Kaplan (2000, p. 139 - 143), os seres humanos sempre criaram encenações ou artefatos simbólicos que funcionam como mecanismos de descargas de tensão, temores e desejos presentes em seus sonhos. Desta forma, as imagens cinematográficas são artefatos que representam o processo cultural inconsciente, juntamente às realidades socioeconômicas de cada época. O cinema dos primeiros tempos era pródigo na representação de seres sobre-humanos (VIEIRA, 2003). A criação de seres superdotados, e/ou geneticamente modificados, foi disseminada pelas produções fílmicas de

Frankenstein (Thomas Edison, 1910; James Whale, 1931) e Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (John Barrymore, 1920), entre outros. Neste período do começo do século XX, a

ficção científica associa os receios em relação à manipulação genética com as mudanças que as máquinas produzem na vida social e o novo tipo de poder que pode emergir ou estaria emergindo, levando à tela parte da literatura produzida no século passado e criando outras6.

As primeiras décadas do século XX vivenciaram a segunda revolução industrial, por meio do deslocamento da matriz energética (do carvão ao petróleo), da expansão da eletricidade e do desenvolvimento das indústrias, sobretudo química e metalúrgica. Esses avanços tecnológicos revelaram para a sociedade o poder técnico-científico que aflorava. A introdução de navios de casco de aço movidos a vapor, o desenvolvimento do avião, a produção em massa de bens de consumo com o modo de produção fordista e a eletrificação urbana são alguns exemplos do progresso tecnológico desta época. Nas raízes da ciência genômica, pode-se citar como impactos relevantes o livro de Walter Sutton (Chromosome

Theory of Heredity, 1902); a teoria da relatividade de Einstein (1919) e a descoberta da

penicilina por Alexander Fleming (1928), que revela um grande avanço na área da microbiologia7.

Data de 1930 o primeiro filme a tratar especificamente de transgenia8 (The Island of

Doctor Moreau, 1933) baseado no livro de Wells (1896), no qual se narra a história de um

cientista que faz cruzamentos genéticos entre seres humanos e animais em seu laboratório, numa remota ilha do Pacífico. A mudança introduzida pelo filme é de tornar as preocupações de Wells, quando a manipulação genética ainda era um sonho, parte do

6

O primeiro filme de ficção científica data de 1902: Uma viagem à Lua de Georges Méliès.

7

THE HUMAN GENOME PROJECT. CD-ROM Multimedia s/d. Disponível para download em:

http://www.genome.gov/19519278#mod1

8

The Island of Dr. Moreau é a primeira obra que trata especificamente de manipulação genética e da transgenia. As demais produções desta primeira fase, como Frankenstein e Metropolis, trabalham com o conceito de criação de vida a partir de seres autômatos.

pesadelo de centenas de pessoas que assistem ao filme. O cinema, como veículo mais universal, expande o alcance das preocupações que a literatura anunciara no século XIX.

Até o início do século XX, na ficção científica, predomina o ato isolado do cientista que tenta criar a vida9, refletindo o fato de que grandes descobertas científicas, entre o século XVIII e início do século XX, foram realizadas por indivíduos, alguns dos quais estranhos ao mundo da pesquisa científica, como Benjamin Franklin, Alexander Graham Bell, Santos Dumont10, entre outros. Essa característica, conforme salienta Adorno (2000, p. 24), está na base da racionalidade científica que reconhece o poder como princípio de todas as relações. Segundo ele, em face da razão iluminista, a diferença entre deus e o homem se torna irrelevante. O deus criador e o espírito ordenador são iguais entre si enquanto senhores da natureza.

A ficção científica denuncia, desde os seus primórdios, que a ciência é passível de falha, que as experiências podem fugir do controle e mesmo afetar o próprio cientista. Essa imagem da ciência falível é característica recorrente até os dias atuais, incluindo o impacto sobre o próprio cientista, como veremos em algumas obras literárias e cinematográficas mais recentes.

Ainda na primeira metade do século XX, outra vertente de representação social está presente na ficção científica. A ciência passa a ser representada como veículo do poder político de estados autoritários, no momento em que o stalinismo e o fascismo ainda não tomaram forma e o nazismo ainda não ascendeu ao poder. Essa tendência inicia-se com o filme Metropolis (1927) de Fritz Lang, que ilustra uma sociedade futura, na qual os trabalhadores vivem no subsolo, trabalhando para manter a cidade, submissos às forças da produção e da tecnologia controlados pela burguesia que vive na superfície. O filme mostra o poder da ciência na criação de seres autômatos, sob controle de um Estado autoritário, denotando as primeiras representações do tecnopoder.

Quatro anos depois Aldous Huxley complementa a questão com a introdução da ideia de biopoder em Brave New World, uma narrativa futurista que relata uma sociedade completamente organizada, sob um sistema científico de castas que enaltece a felicidade baseada no consumo. É uma civilização de excessiva ordem, na qual todos os homens são controlados por um sistema que alia controle genético a condicionamento mental.

9

O ato isolado do cientista reflete também o fato de que as grandes invenções do final do século XIX e do início do XX são resultados de trabalhos individuais, sendo a maior parte nem realizada por cientistas como o inventor do telefone (1876), Alexander Graham Bell, um professor de retórica.

10

Novamente, como em Metropolis, o poder científico é dominado por um Estado autoritário que, neste caso, divide a sociedade em níveis de perfeição genética, modificados biotecnologicamente e em níveis de felicidade constante, manipulados quimicamente11.

No prefácio do livro, escrito na década de 1950, Huxley (1980, p. 14 - 22) observa que um livro sobre o futuro só interessa às pessoas na medida em que as suas profecias tenham o potencial de se tornar realidade. Para ele, o tema do livro não é o progresso da ciência como tal, mas os seus efeitos sobre a humanidade, que envolve a utilização de seres humanos na pesquisa. Huxley salienta, igualmente, o perigo de as inovações tecnológicas serem dirigidas por governos totalitários, que empregarão essas tecnologias para promover o amor à escravidão por meio do condicionamento infantil e do uso de drogas avançadas (HUXLEY, 1980, p. 21).

Em meio à discussão sobre a questão da artificialização da vida humana, Monteiro Lobato inova ao apresentar a possibilidade de modificação da natureza por meio de tecnologia aplicada ao campo. Em 1941, o seu livro Reforma da Natureza traz uma reflexão sobre as consequências da segunda guerra mundial e sobre os avanços científicos decorrentes desta. É uma crítica à noção de que a natureza é imperfeita e que a atividade científica pode aperfeiçoá-la. Mostra também as consequências desastrosas do poder irrefletido dos cientistas ao desejarem alterar o curso da evolução.

É, portanto, na primeira metade do século XX que surgem as primeiras representações do biopoder. Essas representações nascem a partir da influência das várias pesquisas eugênicas do século anterior, do crescimento da força de Estados autoritários fascistas e socialistas e, também, do grande desenvolvimento bélico e militar da época. Esse período histórico pode ser planificado por meio do quadro 2 a seguir, que retrata a linha do tempo de 1900 a 1945:

11

Não deixa de lembrar tanto as experiências nazistas dos anos 1940 quanto a indústria farmacêutica contemporânea dedicada à felicidade.

Quadro 2: Linha do tempo da ficção e ciência no período de 1900 a 1945: a representação do biopoder

1900 - 1920 1921 - 1930 1931 - 1945 Cinema e

literatura Frankenstein - Thomas Edison Metropolis - Fritz Lang Frankenstein - James Whale Brave New World - Huxley

I, Robot - Isaac Asimov A Reforma da Natureza - M.

Lobato Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde -

Barrymore

The Island of Dr. Moreau - Erle Kenton

Ciência The Chomossomes in Hereditary - Sutton Agricultural Research

Station - UK What is Life? - Schrödinger Teoria Geral da Relatividade - Einstein Penicilina - Fleming 1º RX de DNA - Astbury

Uma enzima para cada gene – Beadle e Tatum Mutações das células ocorrem no DNA – Avery, Macleod e McCarty Transposição genética (jumping

Genes) – McClintock

Tecnologia 2ª Revolução Industrial - Fordismo Cinema Falado Primeira transmissão televisiva – UK

Sociedade 1ª Guerra Mundial New Deal - EUA

Revolução Russa Leis de Nuremberg

2ª Guerra Mundial Meio

Ambiente

Bombas atômicas Hiroshima e Nagazaki

Brasil Vacinação obrigatória no Rio de Janeiro Revolução de 30 Fundação da Soc. Brasileira de Ciências

Fonte: Pesquisa da autora

Observa-se, portanto, que a ficção científica dos inícios do século XX associa os avanços (bio)tecnológicos não mais à ação isolada de cientistas, mas com ao seu uso por governos autoritários. A noção de biopoder está lançada, e a possibilidade do controle da vida pelo pode político, anunciada.