1. O diálogo entre a ficção científica e a ciência na hipermodernidade: apreensões e resistências sociais
1.3. Ficção científica e descobertas genéticas nos primórdios da modernidade
Apesar de a ciência genômica ser um campo de conhecimento novo, o início da produção literária sobre o tema data do século XIX, com diferentes compreensões.
Na segunda metade do século XIX, em meio a grande expansão da ciência e das descobertas, ocorre um grande desenvolvimento nas pesquisas sobre a evolução das espécies. Alguns trabalhos científicos produzidos nestas áreas foram registrados em textos como On the Origin of Species de Charles Darwin (1859) e Principles of Heredity, de Gregor Mendel (1865), que trazem à luz as bases dos estudos sobre genética e evolução. Além desses trabalhos, ressalta-se a descrição do primeiro processo de mitose cromossômica, realizado por Moritz Wagner (1878) e o primeiro isolamento de DNA, realizado por Friedrich Miescher (1868). É relevante ressaltar também as pesquisas eugênicas3 muito difundidas na época presentes em Essai sur l'inégalité des races humaines, de Conde de Gobineau (1854) e Hereditary Genius, de Francis Galton (1865)4.
É igualmente nesse período que são desenvolvidos os principais estudos que conduziram à microbiologia, por meio dos trabalhos de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1834-1910).
Na literatura, a criatura autômata surge no século XIX, com o lançamento dos livros e contos como Der Sandmann (Theodor Amadeus Hoffmann, 1815) e Frankenstein (Mary Shelley, 1818). Esta última, de acordo com Asimov (1969, p. 15), pode ser considerada a primeira obra moderna de ficção científica. Coli (2003), por sua vez, afirma que a obra
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Entende-se por eugenia qualquer tentativa de acelerar a evolução humana por meio de melhoramento genético de seres humanos (KIRBY, 2000).
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THE HUMAN GENOME PROJECT. CD-ROM Multimedia s/d. Disponível para download em: http://www.genome.gov/19519278#mod1
Frankenstein passa a ideia do herói que deseja alcançar “segredos proibidos” aplicando
princípios científicos recém-descobertos. Segundo ele, a obra seria o primeiro alerta contra os excessos científicos.
A ficção científica surge no século XIX, como território de denúncia da produção do outro humano, do humano alterado, protético, andróide, como risco ao futuro da humanidade. Trata-se de um relato do novo como um “espelho analógico”, na construção de um mundo imaginário possível. Frankenstein é revolucionário ao introduzir a crítica à proposição científica iluminista da tecnologia como possibilidade falha do futuro (COLI, 2003, p. 299 - 315). A criação do cientista Victor Frankenstein situa-se na interface entre o nascimento da biologia e as “ciências” ocultas (alquimia e astrologia). Em Frankenstein, surge a representação do “cientista louco”, assombrado pela ideia prometéica do desejo de se igualar aos deuses (PENNA, 2008, p. 185 - 203).
Outras obras memoráveis do século XIX, que trataram do surgimento dos novos experimentos e descobertas científicas relacionadas a eventos genéticos foram Strange
Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (Robert Luis Stevenson, 1886); The Time Machine e The Island of Doctor Moreau (H. G. Wells, 1896). Em The Time Machine, H. G. Wells introduz a
ideia de evolução como um arco de mutações progressivas. Narra uma história em que um viajante do tempo pode observar o ciclo evolutivo que inclui o desaparecimento e o renascimento da vida. Ao chegar ao ano de 802.701 d.C., ele se depara com o fato de que a humanidade teve, neste tempo, dois destinos evolutivos: os chamados Elois, descendentes das classes privilegiadas, que formam uma sociedade com alto grau de aperfeiçoamento da vida humana; e os Morlocks, descendentes da classe operária, que vivem no subterrâneo e desenvolveram sistema óptico adaptado à visão noturna.
Wells mostra que o abismo social entre as classes teria gerado mutações que culminariam em uma segregação total entre os dois mundos. O viajante descobre que os
Morlocks se alimentam da carne dos Elois, que se transformaram em um “povo gado”, bem
alimentado e vegetariano. Assim, a utopia do aperfeiçoamento das espécies, pode transformar-se em uma distopia assombrosa (PENNA, 2008, p. 203 - 205). A ideia de que a ciência pode produzir uma dupla humanidade está plantada5.
Diante dessas obras, a sociedade se defronta pela primeira vez com a possibilidade de manipulação da vida e se questiona sobre as suas consequências a respeito do futuro da humanidade. Portanto, a apreensão em relação ao possível impacto negativo das
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descobertas científicas não é um sentimento recente, pois suas raízes remontam ao século XIX, momento em que nascem as ciências modernas (LA ROCQUE e TEIXEIRA, 2000).
A evolução da literatura e das ciências durante o século XIX pode ser planificada por meio da linha do tempo desse primeiro período histórico, conforme apresentado no Quadro 1 a seguir:
Quadro 1: Linha do tempo da ficção e ciência no século XIX
1800 - 1840 1840 - 1860 1860 - 1880 1880 - 1900
Literatura Der Sandmann - Hoffmann
Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde - Stevenson Frankenstein -
Shelley The Island of Dr. Moreau - Wells
The Time Machine - Wells
Ciência
Essai sur l'inégalité races humaines -
Gobineau
Hereditary Talent and Genius - Galton 1º transferência de embriões (coelhos) - Heape On the Origin of Species - Darwin 1º processo de mitose cromossômica - Wagner 1º isolamento de DNA - Miescher Principles of Heredity - Mendel
Tecnologia Lâmpada - T. Edison 1ª apresentação dos irmãos Lumiére
Sociedade Das Kapital - Marx A interpretação dos sonhos - Freud
Meio Ambiente
Teoria do efeito estufa - Fourier
Brasil José Bonifácio: alerta
questões ambientais Abolição Escravatura
República
Fonte: pesquisa da autora.
Observe-se, ainda, o caráter antecipatório das obras de ficção, pois enquanto elas foram escritas no início do século XIX (1815 e 1818), as principais descobertas científicas acerca da genética surgem a partir de 1860. Fenômeno reafirmado jocosamente, mais de um século depois, por Isaac Asimov (1994, p. 26): “Não é minha culpa se a ciência leva algum tempo para copiar minhas ideias”.