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A discussão a respeito das consequências socioculturais, políticas, econômicas e ambientais do biopoder e do biocapitalismo requerem maior reflexão sobre o papel da ciência e da tecnologia na sociedade contemporânea.

A ciência, tal como a concebemos na atualidade, também conhecida como ciência moderna, surgiu no século XVII, a partir das Revoluções Copernicana e Galileana. Com o advento das descobertas nas áreas da astronomia e da física de Copérnico e Galileu, um conjunto de conhecimentos pré-concebidos foi substituído por novos conhecimentos, gerando o que Kunh denomina por revolução científica (JAPIASSÙ, 1997; HOTTOIS, 1991; KUHN, 2005).

Essa revolução científica incorpora tanto uma nova concepção de mundo baseada em modelos matemáticos e mecânicos, quanto um novo contexto de formação de ideias baseados em métodos experimentais. Esses métodos experimentais, após serem aplicados e verificados, se traduzem num conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis, modelos etc. que formam a base da ciência moderna (JAPIASSÙ, 1997, p. 57; KOYRÉ, 1982 p. 57; FREIRE-MAIA, 1992, p.24).

A ciência, ao mesmo tempo em que se traduz num processo de acumulação de conhecimento (descrições, interpretações, teorias, leis, modelos), também sofre constantes abalos a suas teorias, pois o conhecimento tem caráter provisório. Esse duplo movimento, de acumulação e refutação de conhecimento, é denominado de progresso científico (BONDI, 1976; POPPER, in: MAGEE, 1973, p. 28). Para Popper (1976), o progresso da ciência depende tanto do conhecimento conservador quanto do emprego de outro método revolucionário. É fruto de um processo conflituoso entre duas teorias e revela o caráter dinâmico da ciência.

Na dinâmica do progresso científico, os métodos experimentais buscam entender a realidade de modo racional e objetivo. Oferecem modelos teóricos da realidade (mecânicos e matemáticos), que se convertem em informações seguras capazes de orientar as intervenções humanas sobre a natureza e a sociedade (JAPIASSÙ, 1997, p. 57; KOYRÉ, 1982 p. 57; HOTTOIS, 1991 p. 17).

No processo histórico, a ciência, enquanto fenômeno social, foi incorporada às redes de poder da sociedade moderna, formando um poderoso sistema de controle da natureza e da própria humanidade. Essa união, denominada por Habermas (2006, p. 45 - 46) de racionalidade, se traduz em uma forma de dominação política oculta e necessita do

emprego da técnica53 como instrumento de dominação. Por meio do processo de exploração e dominação da natureza e da humanidade, a aliança entre ciência e técnica reforça a ideologia da racionalidade tecnocientífica dominante na sociedade contemporânea (VITALI, 1974, p. 2; ADORNO e HORKHEIMER, 1985).

Observa-se, assim que a articulação ciência-tecnologia impulsiona o poder humano sobre a natureza. Marcuse define a tecnologia como um processo social que se configura como um modo de organização e perpetuação da produção. Ou seja, um instrumento de controle e dominação, no qual a técnica, no sentido estrito (aparelhos técnicos) torna-se apenas parte de um processo (MARCUSE, 2008, p. 88).

Historicamente, a técnica precedeu a ciência. Porém, ela passa a se configurar como instrumento de poder após a intervenção da ciência moderna, que se apropria dos instrumentos tecnológicos para efetivar seu domínio sobre a natureza e a sociedade. A tecnologia é o veículo do progresso científico e, deste modo, não se pode falar em progresso científico sem falar do progresso tecnológico. Esse progresso se caracteriza pela busca de maior eficiência seguindo os princípios da racionalidade científica (ELLUL, 1968, p. 6, 81).

A tecnologia, segundo Habermas (2006, p. 50), proporciona a legitimação do poder e da dominação em todas as esferas da cultura. A fusão da tecnologia com a racionalidade científica (denominado de tecnociência) tornou-se um fenômeno de dominação universal, onde a evolução do processo produtivo passa a ser determinado pelo progresso tecnocientífico.

Deste modo, a tecnociência participa plenamente do programa de dominação racional e de domesticação do universo. Conforme salienta Adorno e Horkheimer (1985, p. 89), o sistema econômico e a tecnociência, entrelaçados pela racionalidade, passam, no decorrer do processo histórico, a se confundir turvamente. Neste sentido, o aparato tecnocientífico se torna, também, um aparato político, na medida em que transforma a natureza e o próprio homem (HABERMAS, 2006, p. 50 - 73; LATOUCHE, 2004, p. 66; LATOUR, 1989, p. 422).

O controle da racionalidade tecnocientífica sobre a humanidade, via procedimentos de biopoder, substitui a governança sobre a natureza trocando as leis naturais por um

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Habermas (2006, p. 45 - 46) define a técnica como a apropriação cientificamente racionalizada de processos objetivados, onde as esferas sociais ficam submetidas aos critérios da decisão racional. A racionalização progressiva da sociedade depende da institucionalização do progresso científico e técnico.

código baseado nos interesses de produção e acumulação das grandes corporações. Essa racionalidade, portanto, transforma a força crítica do homem em força de ajustamento e conformação, gerando um processo de alienação social (MARCUSE, 2008, p. 105 - 107). A alienação social ocorre por não se conhecer as consequências socioambientais decorrentes do uso das tecnologias como também por manter uma dependência permanente ao aparato tecnológico.

O poder da tecnociência sobre a natureza e a humanidade, associado à concentração do poder político-econômico, tende a favorecer a aparição de importantes unidades de produção feitas por grandes corporações. Essas unidades de produção, por sua vez, produzem uma variedade impressionante de mercadorias, equipamentos e processos, capazes de exercer poder sobre todas as formas de vida (biopoder). Esta máquina de produção tecnocientífica, por meio do biopoder, estabelece a dominação e a subordinação da sociedade. Também socializa e reeduca as plantas e os animais em suas funções e características genéticas (MARCUSE, 2008, p. 94; LATOUR, 2007, p. 219 - 222). A racionalidade tecnocientífica proporciona a legitimação dos poderes político e econômico e assume em si todas as esferas da cultura, onde o conceito de razão técnica torna-se uma ideologia (HABERMAS, 2006, p. 46 - 49, 66).

Entende-se por ideologia um sistema de representações dotadas de uma existência e de um papel histórico no seio de uma sociedade dada. A ideologia como um sistema de representações se distingue da ciência e carrega em si uma função teórica – ideológica – função de dar as diretivas de ações individuais e coletivas. Com efeito, a tecnociência, enquanto ideologia dominante, transmite valores e visões que implicam um sistema de representações que, por sua vez, enaltece a técnica em detrimento da natureza (ROQUEPLO, 1983, p. 39).

A ideologia da racionalidade tecnocientífica, ao se tornar dominante, passa a modelar a ciência, a partir do seu constante desenvolvimento e, também, a intervir no seu funcionamento. Essa ideologia nos leva a crer na indispensabilidade da técnica e no progresso inelutável. Ela é disseminada por toda a sociedade, por meio da mídia ou da política, formando as ideias das classes dominantes (CAZELLE, LEVY-LEBLOND, PATY, ROQUEPLO, 1974; ELLUL,1988, p. 47).

Apesar de serem desenvolvidas impregnadas de função ideológica, as técnicas se autointitulam puramente científicas. Porém, a mistura complexa de elementos positivos e negativos revela seu caráter ambivalente, característica fundamental do progresso tecnocientífico. Exemplos sobre a função ideológica e o caráter ambivalente da técnica são

os movimentos de higienismo, eugenismo54 e, recentemente, a procura biomédica pela perfeição estética (cirurgias plásticas, intervenções ortodônticas etc.) (ELLUL, 1988, p. 55; ROQUEPLO, 1983, p. 50).

Um aspecto importante da função ideologisante da técnica consiste em nos fazer acreditar que precisamos da tecnoestrutura, ou seja, um corpo político, extremamente estratificado, guiado pelas concepções tecnocientíficas e intelectuais, onde as interações humanas se tornam mediatizadas por meio de numerosos subprogramas de ações embutidos uns nos outros. A tecnoestrutura cria no sistema sociopolítico um conjunto de justificativas para fundamentar as decisões que o próprio sistema exige e constitui uma força de ideologização justificada (ROQUEPLO, 1983, p. 48 - 49; LATOUR, 2007, p. 219).

A sociedade de máquinas, sob o comando da tecnoestrutura busca organizar as grandes massas humanas por meio de cadeias de comando, de planificações refletidas e de métodos de cálculos, que representam uma mudança prévia de escala em todo desenvolvimento possível. A tecnoestrutura é concebida, portanto, como um ambiente onde se manifesta um gigantesco produto da atividade tecnocientífica e detém alto poder de manipulação social. A tecnoestrutura não pode se manter sem que a sociedade e a natureza mantenham as condições de seu funcionamento (LATOUR, 2007, p. 218; ROQUEPLO, 1983, p. 25 - 26, 133).

A tecnoestrutura, por meio da ideologia tecnocientífica transmite à sociedade uma visão de natureza falha, defeituosa e inacabada que carece dos processos tecnológicos para se aperfeiçoar. Neste sentido, a apropriação e a dominação da natureza geraram um processo onde a natureza passa a ser quase integralmente produzida e transformada pela atividade tecnocientífica (tecnonatureza).

No processo de transformação da natureza em técnica, os responsáveis pelo funcionamento da tecnonatureza são os membros da tecnoestrutura: cientistas que ocupam um lugar particular no sistema político e que são responsáveis pela agressividade latente e pelo caráter artificial imposto ao meio natural (CAZELLE, LEVY-LEBLOND, PATY, ROQUEPLO, 1974, p. 18; ROQUEPLO, 1983, p. 18).

Na fase atual do capitalismo, os membros da tecnoestrutura, responsáveis pela transformação da natureza em técnica, deixam de ser constituídos pela classe política tradicional e passam a se constituir por chefes de empresas, altos funcionários, dirigentes

54O termo eugenia foi cunhado em 1883 por Francis Galton (1822-1911). É definido como o estudo biomédico sobre a sociedade capaz de melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou

de grandes organismos profissionais etc. Esses agentes são reconhecidos como tecnocratas e representam o métier ou ‘pessoal técnico’ qualificado, com linguagem comum às categorias técnicas específicas, indispensável para ocupar posições privilegiadas. Os tecnocratas têm o papel de multiplicar as aplicações e os efeitos das novas tecnologias. São indivíduos que unem saber e poder e exercem função de monopólio: conhecem tanto as técnicas científicas quanto a complexa rede econômica, política e financeira que as envolvem (LYOTARD, 1979, p.30; LATOUR, 2007, p. 202; ELLUL,1988, p. 39 - 41).

A categoria de tecnocratas agrupa um conjunto de pessoal científico e técnico que, como mestres do progresso tecnocientífico, controlam as condições do desenvolvimento e oferecem subsídios às necessidades capitalistas e às exigências políticas. Os tecnocratas são, assim, gestores da tecnoestrutura e invocam, para impor a autoridade científica, a racionalidade científica, por meio da disseminação ideológica do progresso tecnocientífico (CAZELLE, LEVY-LEBLOND, PATY, ROQUEPLO, 1974, p. 18 - 19).

Os tecnocratas exercem múltiplas funções no sistema político, com tal capilaridade que o permitem exercer uma totalidade de poderes, situando-se no ponto central da gestão e da decisão. A ideologia que orienta a tecnocracia se manifesta por ambiguidades e pela indiferença à moral. Além disso, os tecnocratas disseminam o discurso tecnocientífico como verdade irrefutável (ELLUL, 1988, p. 42 - 46).

Porém, a questão de verdade tecnocientífica é controversa. Popper afirma que não se pode identificar a ciência como verdade. O conhecimento científico é de natureza provisória, pois nada na ciência é permanentemente estabelecido. A refutabilidade é o critério da demarcação entre ciência e não ciência. A ciência trai-se no seu anseio pela certeza, o que leva, muitas vezes, ao falseamento das hipóteses (In: MAGEE, 1973, p. 20 - 45).

Ao se fundamentar numa verdade absoluta, a tecnociência passa a ter uma característica dogmática. Esse dogma da verdade científica, fundamentado na ideologia tecnocientífica, é disseminado pelos tecnocratas, por meio de aparelhos ideológicos, com objetivo de legitimar o progresso tecnológico, ampliando, assim, o estado de alienação social (POPPER. In: MAGEE, 1973, p. 45).

Os aparelhos ideológicos do Estado compõem certo número de realidades que se apresentam sob forma de instituições distintas e especializadas, como a família, o sistema jurídico, o sistema político, as religiões, as escolas etc. Estas instituições, que são veículos da ideologia dominante, têm como objetivo assegurar uma ligação dos homens entre si e mantê-los fixados no rol social que o sistema definiu previamente para eles. O papel único e