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Capítulo 3. Turismo backpacker: um fenómeno complexo e heterogéneo

3.6. Turismo backpacker e globalização

3.6.1. Backpackers: nómadas modernos e globais

Apesar de não haver ainda muitas investigações de natureza etnográfica sobre os turistas backpacker (e.g. Maoz, 1999; Welk, 2004; Westerhausen, 2002, citado por Binder, 2004), os trabalhos de Anderskov (2002) e Sørensen (2003) fazem referência à existência de uma cultura backpacker. Utilizando uma metodologia que lhes permite analisar diferentes perspetivas da vida destes turistas, dos lugares visitados e dos fatores de mudança inerentes a este fenómeno, Sørensen (2003) demonstra a importância de um conceito dinâmico de cultura adequado aos tempos em que vivemos. A definição de cultura apresentada por Tylor (1903, p.1) remete-nos para “o complexo

que inclui conhecimento, crenças, arte, moralidade, leis, costumes e outras aptidões e

hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Por conseguinte, cada

cultura manifesta-se e reproduz-se num determinado território onde vive uma determinada sociedade, o que contraria a permanente desterritorialização inerente ao nomadismo dos backpackers. Mas a cultura backpacker existe, e segundo Anderskov (2002), encontra-se hierarquicamente estruturada e com um status individual conectado

8 A investigação realizada para este subcapítulo/secção permitiu a sua publicação em: Martins, M. R. (2015).

Turistas backpackers: os antituristas na era da híper-mobilidade. In Globalização, Cadernos Mateus DOC 10 (pp. 157–173). Vila Real: Instituto Internacional Casa de Mateus.

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aos valores de liberdade, independência, tolerância, orçamento reduzido e interação com a população local.

A comunidade backpacker partilha assim uma cultura que é constituída por normas, condutas, hierarquias, entre outros, que emergem, ganham raízes e que se reproduzem através, por exemplo, da transmissão de informação e conhecimentos entre os backpackers mais velhos e experientes e os backpackers mais novos. Trata-se de uma comunidade que não se encontra delimitada por um lugar nem por um grupo fixo e onde a hierarquia social depende da troca do mais valioso: informação. A comunidade backpacker também se caracteriza pela sua interconetividade e por os seus elementos serem interdependentes.

Fonte: Martins (2015)

Figura 7. Visão sistémica do processo de globalização.

Circulam por todo o globo, tendo como suporte uma vasta rede de hostels que, servindo de apoio à sua mobilidade, deram origem em algumas cidades a verdadeiros enclaves de backpackers (Cohen, 2011; Maoz, 2006; O’Regan, 2010b; Peel & Steen, 2007). Os hostels não são apenas um alojamento barato. São lugares de encontro, de criação e reprodução de identidades, lugares de partilha de ideias, hipóteses, histórias e conhecimento (O’Regan, 2010a) e, por isso, fundamentais na cultura backpacker. É nestes lugares de encontro que os backpackers i) interagem entre si e mantêm diálogos focados nas viagens que estão a realizar; ii) estabelecem contactos via telemóvel ou internet com amigos e familiares que, à distância, vão acompanhando a viagem; iii) e

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contactam com elementos da população local. Se tradicionalmente os principais fluxos de backpackers tinham como direção privilegiada os países do sul da Ásia (Índia, Tailândia, Malásia, Indonésia, entre outros), tem-se assistido a uma diversificação dos destinos pelos outros continentes. A Europa conheceu um incremento após a queda do Muro de Berlim, acontecimento que facilitou posteriormente a circulação de turistas ávidos em conhecer o que restava do velho império soviético. Os conhecidos passes Interrail também favoreceram a mobilidade no continente europeu, permitindo viajar de comboio por vários países, a preços reduzidos.

Reflexo da globalização, as mais diversas culturas têm vindo a ser bombardeadas por influências globais. Com a intensificação das relações sociais à escala global promovida pelos atuais meios de comunicação social, passa-se a pensar globalmente, pelo que os problemas atuais não são apenas problemas locais ou regionais. Um acontecimento num lugar distante refletir-se-á com maior ou menor intensidade em todo o planeta, como tem acontecido com a crise da dívida soberana de alguns países, com o fluxo de refugiados em direção à Europa, entre outros, dificultando a sua gestão à escala nacional. A globalização tem assim conduzido ao desaparecimento de uma consciência territorial (local, regional ou nacional), contribuindo para o surgimento de sentimentos de “desorientação” e para uma redução do mediatismo de comunidades que se encontram geograficamente mais periféricas e economicamente à margem dos principais centros de decisão.

Esta situação encontra-se em linha com uma das principais motivações dos turistas backpackers que viajam como reação à alienação da sociedade moderna e ao desaparecimento das culturas pré-modernas, visitando-as antes que desapareçam, aumentando os conhecimentos sobre as mesmas e desafiando simultaneamente as suas próprias capacidades. Mas a globalização não tem só aumentado o ritmo de marginalização de algumas sociedades e culturas periféricas. A rapidez com que os turistas chegam a elas é avassaladora, permitindo aos backpackers viajarem até lugares que a maioria dos turistas nunca ouviu sequer falar, ultrapassando barreiras físicas e culturais com grande facilidade.

Esta procura de diferenciação, imagem de marca dos backpackers, descritos por vezes como antituristas, opõe-se à imagem do turista “convencional”, acorrentado aos “pacotes de viagens com tudo incluído” vendidos em série em todas as agências de viagem. O sentimento de liberdade oferecido pelo turismo backpacking é também reconhecido como uma das principais motivações, procurado por jovens que se encontram no final do ensino secundário ou universitário e que não querem entrar no

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mundo do trabalho, casar e ter filhos sem antes viajarem de mochila às costas durante um longo período por diversas regiões do mundo. Ritual de passagem entre a escola e a universidade ou entre a universidade e o mundo do trabalho, o turismo backpacker pode também ser considerado um “período de transição autoimposto” ou ainda como um momento rico em oportunidades educativas e desenvolvimento de competências gerais, uma espécie de ‘‘University of Travel’’ como referem Pearce & Foster (2007).

As novas Tecnologias de Informação e Comunicação, e a internet em particular, têm tido um impacte notável no turismo backpacker (figura 8). Utilizada como transmissora de informação e, por isso, reprodutora da cultura backpacker, a internet é igualmente um facilitador de viagens, de contactos, comentários (e-WOM), sugestões, entre outros, contribuindo para a disseminação da solidariedade e para a partilha de conhecimentos da cultura backpacker9. É também responsável por uma disrupção digital que, ao nível do turismo, é visível através do surgimento de empresas como a Airbnb, Uber, Skype, Booking.com, entre outras.

É ao desenvolvimento dos transportes e das Tecnologias de Informação e Comunicação que se deve a (híper)mobilidade contemporânea tão característica dos backpackers. Essa mobilidade expressa-se não só nas viagens realizadas, mas também nos frequentes contactos com amigos, familiares, outros backpackers com que se estabeleceram convívios ou amizades durante a viagem, população local e outros viajantes (Paris, 2010b), numa espécie de socialização itinerante que resulta do permanente contacto com uma rede social virtual e onde a informação circula em tempo real, por todo o mundo, esbatendo as fronteiras políticas entre os lugares visitados e o lar, lugar de residência habitual (Paris, 2010b). Não deixa de ser irónico que o sentimento de liberdade intrínseco à realização de uma viagem para um lugar distante conviva com a frequente necessidade de não perder o contacto com as origens. A UNWTO e WYSE Travel Confederation (2010) realçam que as viagens dos turistas mais jovens são um importante mercado para o futuro, referindo que os jovens que viajam gastam, por vezes, mais dinheiro que os restantes turistas e que há uma maior probabilidade de tornarem a visitar o mesmo destino (fidelização).

9 Nota: Sítios de internet como o Hostelworld.com permitem a reserva online em dezenas de milhares de

hostels em mais de 170 países. A heterogeneidade do segmento backpacker tem contribuído para que os

sítios de internet especializados em hostels tenham alargado o seu âmbito de atuação para outros alojamentos de custos reduzidos, como parques de campismo, bed&breakfast, apartamentos, entre outros.

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Fonte: Martins (2015)

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Além de desempenharem um papel importante na divulgação dos destinos e na atração de novos visitantes, dão ainda um importante contributo noutros setores da economia, fornecendo mão de obra temporária10 durante as colheitas no setor agrícola em países como a Austrália ou a Nova Zelândia. Além das importantes receitas geradas por este segmento, os destinos de turistas mais jovens são também descritos como mais resilientes, não estando tão sujeitos à volatilidade do mercado, recuperando mesmo mais depressa de eventuais crises. Contribuindo para o desenvolvimento económico de regiões mais periféricas e pouco desenvolvidas, os turistas backpacker consomem produtos e serviços locais (Hampton, 1998; Scheyvens, 2002) e têm frequentemente um menor impacte ambiental.

São ainda adeptos de voluntourism, participando voluntariamente em atividades de mitigação da pobreza em regiões mais pobres, como a construção de escolas ou centros de saúde, ou ainda em campanhas relacionadas com a saúde pública ou o desenvolvimento rural. Richards & King (2003) salientam ainda que o turismo jovem tem sido descrito por organizações internacionais, como a UNESCO, como tendo um papel importante no aumento da sensibilização cultural entre os jovens, contribuindo para a manutenção da paz e para a compreensão intercultural, uma conclusão consentânea com o trabalho de Anderskov (2002), onde os backpackers referiram querer projetar os valores transmitidos durante as suas viagens na sua própria vida, dando um contributo relevante para um futuro mais pacífico e sustentável. Devido à sua grande interação com os povos que visitam, promovem níveis de aceitação e tolerância mútuos, estando melhor preparados para compreender e gerir eventuais conflitos sociais e civilizacionais, como os que a Europa enfrenta atualmente com o terrorismo e a crise dos refugiados e imigrantes ilegais.