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Capítulo 3. Turismo backpacker: um fenómeno complexo e heterogéneo

4.3 Modelos de Análise

4.3.1 Geografia Temporal

A geografia temporal lida com as atividades humanas que ocorrem em locais específicos e em períodos de tempo limitados (Yun & Park, 2014). Qualquer indivíduo realiza diariamente um conjunto de atividades com uma determinada sequência, evidenciando por isso, um padrão de comportamentos. O simples ato de alguém se movimentar no espaço, do ponto A para o ponto B, implica necessariamente despender uma certa quantidade de tempo, dependendo obviamente, do tipo de transporte utilizado (Thrift, 1977). Por conseguinte, o quadro concetual da geografia temporal tem sido utilizado e aplicado em diversas investigações ligadas ao comportamento espaciotemporal dos turistas, nomeadamente, na análise dos seus movimentos individuais e atividades realizadas no tempo e no espaço (Fennel, 1996; Grinberger et al., 2014; Grinberger & Shoval, 2019; Kang, 2016; Pettersson & Zillinger, 2011; Shoval & Isaacson, 2007a; Shoval et al., 2015; Xiao-Ting & Bi-Hu, 2012; Yuan & Ping, 2015; Yun & Park, 2014; Zakrisson & Zillinger, 2012, entre outros).

A geografia temporal é uma poderosa ferramenta concetual, criada e desenvolvida por Torsten Hägerstrand e seus associados da universidade sueca de Lund durante as décadas de 60, 70 e 80 do século passado, que contribui para a compreensão do comportamento espacial do ser humano, tendo em conta um conjunto de constrangimentos ou restrições relativos à alocação de tempo, que limitam a realização de atividades no espaço (Hägerstrand, 1970). Enquanto ferramenta de análise permite integrar o espaço e tempo, considera as atividades como processos e tem em consideração as situações que influenciam as atividades, ou seja, a posição ou condição num determinado momento e a posição em relação ao ambiente circundante (Shaw, 2010).

O movimento dos indivíduos no espaço e no tempo foi descrito por Hägerstrand como um percurso que tem início no seu nascimento e que termina no momento da sua morte, ao qual chamou de percurso de vida (“life path”) que pode no entanto, ser dividido em partes temporalmente distintas, resultando daí, percursos de vida mensais, semanais, diários, entre outros (Fennel, 1996). Neste sentido, o tempo pode ser visto como um recurso limitado.

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Segundo Thrift (1977) o quadro concetual da geografia temporal assenta em alguns pressupostos básicos, ou seja, oito condições fundamentais, relacionadas com a natureza da atividade humana, que Hägerstrand identificou como necessárias em qualquer ‘investigação teórica precisa’:

i. “a indivisibilidade do indivíduo”, pelo que não poderá estar em mais do que um lugar em simultâneo;

ii. “a duração limitada de cada vida humana”;

iii. “a capacidade limitada dos seres humanos de participar em mais do que uma tarefa ao mesmo tempo”;

iv. “o facto de que todas as tarefas têm uma duração” e exigem tempo para serem concretizadas;

v. “o facto de que o movimento entre pontos, num espaço, consome tempo”; vi. “a capacidade limitada de acondicionamento espacial”;

vii. “as unidades espaciais de qualquer escala devem ter uma dimensão exterior limitada”;

viii. “o facto de que cada situação está inevitavelmente enraizada em situações passadas”, ou seja, todo o objeto ou espaço tem uma biografia.

Um dos mais importantes contributos de Hägerstrand (1970) foi a construção do diagrama representado na figura 11 que exibe simultaneamente o tempo e o espaço numa espécie de reprodução de um momento congelado no tempo (Chai, 2002 citado por Xiao-Ting & Bi-Hu, 2012). Esse diagrama é constituído por dois componentes: um componente espacial bidimensional (eixos x e y) e um componente temporal unidimensional (eixo Z). A posição estática de um indivíduo num determinando lugar, durante um período de tempo, é representada no diagrama através de uma linha vertical (um avanço ao longo do eixo temporal, Z, e uma posição estática no componente espacial, eixos x e y). Quando é realizado um movimento em ambos os componentes, espacial e temporal, essa mesma linha torna-se oblíqua. Segundo Shoval, McKercher, Birenboim, & Ng (2015) este diagrama permite representar um movimento dinâmico ou um padrão de atividades, utilizando uma curva estática que ilustra o tempo de permanência num local específico, o percurso percorrido até outro lugar e o tempo que foi despendido. Quanto mais oblíqua for a curva, maior a velocidade do movimento efetuado. O diagrama da figura 11 representa assim o movimento de um individuo (“space–time path”) efetuado no espaço e no tempo, entre três estações, verificando-se que permaneceu algum tempo no lugar 1, que depois se deslocou a velocidade reduzida

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até à estação 2, onde permaneceu pouco tempo, tendo-se movimentado posteriormente a grande velocidade até à estação 3.

Fonte: Miller (2005)

Figura 11. Percurso espaciotemporal

Os indivíduos não são completamente livres para criar os seus percursos nem a alocação dos recursos espaciotemporais acontece dentro de um vazio - as opções disponíveis para o indivíduo são determinadas por restrições de tempo e espaço, divididos em três grupos (Hägerstrand, 1970; Thrift, 1977):

i) ‘restrições relativas à capacidade’, que correspondem às necessidades físicas e aptidões de um indivíduo, pois no dia a dia, os indivíduos encontram- se limitados pela necessidade que têm em dormir, comer, entre outros; ii) ‘restrições de cooperação’, referentes à necessidade de cruzamento de

percursos no tempo e no espaço com outras pessoas ou objetos, de modo a fazer parte de uma atividade. As pessoas são dependentes de outras pessoas ou máquinas, como por exemplo, os automóveis;

iii) e ‘restrições de autoridade’, referentes a leis, normas e barreiras sociais

existentes no ambiente do indivíduo, como por exemplo os horários de abertura e encerramento de lugares e serviços que condicionam o desempenho das suas atividades. Além disso, o acesso a determinados lugares ou domínios é imposto pelos proprietários ou autoridades.

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Estas restrições, juntamente com as atividades decorrentes de projetos individuais, definem os recursos de tempo e espaço disponíveis. A figura 12 exemplifica de uma forma clara a importância destas restrições no comportamento espaciotemporal dos indivíduos.

Fonte: Thrift (1977)

Figura 12. Percursos num contexto espaciotemporal isotrópico (a); Percursos sujeitos a restrições (b).

Além disso, as restrições definem os mecanismos espaciotemporais das limitações que determinam como os percursos individuais são realizados (Hägerstrand, 1970). Os constrangimentos dão origem a um prisma tridimensional delimitado no espaço e no tempo. Esses prismas podem mudar diariamente de forma e influenciar os percursos diários individuais.

No âmbito da atividade turística, Shoval (2012), citado por Kang (2016), adaptou à atividade turística os constrangimentos ou restrições relativos à capacidade, cooperação e autoridade sugeridas por Hägerstrand (1970) e descritas por Shoval et al. (2015) num estudo realizado em Hong Kong, a propósito da criação de tipologias de turistas a partir do seu comportamento espaciotemporal. O quadro 13 sistematiza essas mesmas restrições.

O prisma espaciotemporal, que a par do percurso espaciotemporal é uma das entidades centrais da geografia temporal (Miller, 2005), é uma entidade dinâmica cujo volume e forma mudam em cada atividade e em cada movimento. Os movimentos de um indivíduo estão restringidos à localização de pontos fixos, no tempo e no espaço, que têm de ser respeitados. Os espaços-tempo deixados livres são definidos por duplos cones, mais ou menos simétricos, designados por prismas (Hägerstrand, 1982, p.331, citado por Shaw, 2010).

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Estes recursos, a par da localização no espaço, duração das atividades e velocidade da viagem, definem o tamanho e o desenho (forma) do prisma espaciotemporal à volta de cada estação – uma entidade que detém no seu interior, todos os locais que um indivíduo pode visitar com uma probabilidade maior que zero, tendo em conta a localização no espaço e no tempo da estação e estações adjacentes (Lenntorp, 1976; Neutens et al., 2011; Thrift, 1977, citados por Grinberger et al., 2014). Na figura 13 o prisma espaciotemporal ilustra um percurso com a mesma origem e destino.

Quadro 13. Principais restrições da Geografia Temporal e exemplos de restrições adaptadas ao comportamento espaciotemporal dos turistas

Exemplos de restrições Principais restrições da Geografia Temporal (Hägerstrand, 1970)

Principais restrições adaptadas ao comportamento espaciotemporal dos turistas (Shoval et al., 2015) Capacidade Limitam as atividades do

indivíduo por causa de fatores biológicos e/ou de ferramentas que ele pode comandar.

- Fatores como a necessidade de dormir e alimentação, limitam a quantidade de tempo disponível para viajar e passear;

- O tipo de transporte utilizado (bicicleta, automóvel, comboio ou avião) delimita o território a visitar; - A duração da estada é um fator limitativo, porque variando de turista para turista, altera o seu espectro de oportunidades.

Cooperação Definem onde, quando e por quanto tempo, o indivíduo tem de se juntar a outros indivíduos, ferramentas e materiais, a fim de produzir, consumir, e realizar transações.

- Necessidade de conhecer e juntar-se a outros indivíduos numa visita de grupo ou, no caso de um grupo organizado, a necessidade de visitar locais específicos por determinados períodos de tempo; - A atividade espacial dos turistas

individuais/independentes e a distribuição geográfica das suas atividades num destino são completamente diferentes das de grupos organizados, por estes serem responsáveis por selecionar as atrações a serem visitadas (principal distinção entre os tipos de turistas em termos de atividade espaciotemporal). As diferenças entre estes dois tipos decorrem fundamentalmente da "rigidez" de itinerários dos grupos organizados em contraste com a maior liberdade das experiências do turista independente ao escolher os locais e atrações a visitar.

Autoridade Referem-se a ‘áreas de controlo’ ou ‘domínios’. Um domínio é uma entidade espaciotemporal dentro da qual as coisas e eventos estão sob o controlo de um determinado indivíduo ou grupo.

- Incluem a existência de horários de abertura de atrações ou os horários de funcionamento de transportes públicos que condicionam os movimentos dos turistas no destino;

- O principal objetivo da visita (parâmetro central para segmentar os tipos de turistas, utilizado por várias agências internacionais e em pesquisas académicas) tem um impacto direto sobre o espectro de

possibilidades disponíveis para os turistas: os turistas que viajam em negócios ou para visitar amigos e parentes serão menos propensos a visitar locais turísticos do que os turistas que viajam com a finalidade específica de passear e conhecer novos lugares.

Fonte: Hägerstrand (1970); Shoval et al. (2015).

O interior do prisma corresponde também ao espaço potencial do percurso (“potential path space – PPS”), mostrando assim todos os lugares localizados no espaço e no tempo, que um indivíduo pode ocupar. E um indivíduo só pode interagir com outro se o interior de ambos os prismas se intersetarem ou se o prisma de um deles intersetar o

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percurso do outro. A projeção do espaço potencial do percurso (PPS) num plano bidimensional delimita a área potencial do percurso (“potential path area – PPA”) (Miller, 2005). A projeção bidimensional do prisma é o plano geográfico que está ao alcance do indivíduo, ou seja, a sua área potencial das trajetórias (PPA) (Lenntorp, 1976; Neutens et al., 2011 citados por Grinberger et al., 2014). O alcance individual do movimento executado dentro de um determinado período de tempo (e.g. PPA diário) é derivado dos planos existentes entre qualquer par de estações consecutivas (Weber& Kwan, 2002 citados por Grinberger et al., 2014). Enquanto o prisma apresenta descrições de comportamentos possíveis, a entidade espaço-tempo que retrata o atual comportamento é o percurso espaço-tempo, ou seja, um conjunto de locais, delimitados no tempo e no espaço, que foram visitados e apresentados como uma sequência (Figura 13). Os meios de transporte utilizados interferem na velocidade das deslocações, implicando uma mudança na forma do prisma.

Fonte: Wu and Miller (2001) in Miller (2005)

Figura 13. Prisma espaciotemporal.

As atividades humanas realizam-se em locais específicos por períodos de tempo limitados, pelo que os sistemas de transporte, ao permitirem viajar de um lugar ou atividade para outro(a), possibilitam aos indivíduos fazerem um uso mais eficiente das suas restrições espaciotemporais, trocando tempo por espaço (Shoval & Isaacson, 2007a). Por exemplo, se uma cidade tem um sistema de transportes moderno e eficiente, os turistas vão conseguir movimentar-se mais rapidamente, podendo visitar mais atrações localizadas num território mais vasto.

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Existe um conjunto de conceitos-chave relativos à Geografia Temporal:

• O Percurso/Trajetória, introduzido com o objetivo de ajudar a reconhecer a importância da continuidade numa sucessão de situações (Hägerstrand, 1982, p. 323 citado por Shaw, 2010). o percurso espaciotemporal é assim um conceito central da estrutura concetual da geografia temporal.

• Um Projeto, que consiste numa série de tarefas e conduz à concretização de um objetivo. Inclui pessoas, recursos, espaço, tempo e, no sentido de completar projetos, as pessoas têm de ultrapassar os seus constrangimentos (Thrift, 1977). Este conceito foi introduzido para nos ajudar a ir mais além do tradicional mapa plano, com os seus padrões estáticos e pensar em termos de um mundo em movimento em que se juntam, como um todo, todos os "cortes" existentes em determinadas situações e que um ator deve assegurar, a fim de alcançar um objetivo (Hägerstrand, 1982, p, 324 citado por Shaw, 2010).

• As atividades são habitualmente divididas em estações, ou seja, os lugares onde são praticadas, que podem ser fixas no espaço e no tempo, como por exemplo uma escola, e atividades mais flexíveis, como a ida a um novo restaurante. Uma estação (“station”) corresponde a uma determinada localização no espaço onde se podem agregar ou agrupar percursos quer no espaço, quer no tempo. Uma sala de aula, um escritório ou um estádio são exemplos de estações (“bundle”), habitualmente concetualizadas como tubos verticais temporalmente limitados (Miller, 2005).

Fonte: Thrift (1977)

Figura 14. Exemplos de conjuntos/cruzamentos de percursos (‘bundles’): à esquerda um agregado familiar, à direita uma escola.

• Um “bundle” é a convergência de dois ou mais percursos para a realização de atividades partilhadas. Quando os alunos de uma escola saem de manhã de suas casas e se dirigem ao seu estabelecimento escolar para terem aulas, dão

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origem a um “bundle”. Quando os percursos individuais se cruzam com os percursos de outros indivíduos temos um percurso partilhado (‘path bundle’), podendo surgir, nesses cruzamentos, um ‘efeito de propagação’ (‘spread effect’) que origina mudanças nos destinos. Por exemplo, se um turista conhece alguém durante um passeio, que o convida para tomar café, vai ficar sem tempo para ir ao museu, como inicialmente planeado, alterando por isso o seu percurso.

As atividades humanas necessitam de tempo para serem concretizadas, logo, podem ser medidas em unidades temporais (minutos, horas, dias, semanas…). A figura 15 evidencia a relação entre o percurso de um indivíduo que se movimenta entre quatro estações (à esquerda), e o tempo gasto em atividades estacionárias e móveis num período de 24 horas (à direita).

Fonte: Thrift (1977)

Figura 15. Relação entre o percurso espaciotemporal de um indivíduo e respetivo orçamento temporal.