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Capítulo 5: O Movimento Hip Hop

5.2. B boys, DJs, Rappers e Grafiteiros interagindo em São Paulo

5.2.1. Os Bailes Black

Os jovens migrantes e descendentes de migrantes recém integrados à periferia de São Paulo freqüentavam os bailes black, usando o penteado black

power e calças de boca fina para dançarem as músicas de artistas negros

estrangeiros como James Brown, Public Enemy, Marvin Gaye, Billy Paul, Aretha Franklin, Dianna Ross e Michael Jackson e também de artistas nacionais como Tim Maia, Jorge Ben Jor e Gérson “King” Combo227. Esses bailes eram espaços de diversão e de afirmação da negritude ligado ao espírito Black is Beautiful (Carmo, 2001; Herschmann, 2005; Tella, 1999).

“Por isso o Black Power continua vivo, Só que de um jeito bem mais ofensivo Seja dançando Break, ou um DJ no scratch, Mesmo fazendo Graffite, ou cantando Rap”

Trecho da música “Sr. Tempo Bom” de Thaíde e DJ Hum

Apesar dos raps norte-americanos228 estarem presentes nos bailes (eram apresentadas não como rap, mas como “balanço”), estes não estavam integrados ao universo das ruas onde os primeiros b.boys buscavam seus espaços e os primeiros rappers ensaiavam as primeiras rimas. Aliás, os b.boys eram mantidos fora do circuito dos bailes por ordem expressa das equipes de organização, e acabavam freqüentando mais as ruas do centro, festas e espaços alternativos, pois, não apenas dançavam em um ritmo diferente, como também tinham um visual que, em nada, se assemelhava com os trajes “esporte fino” que predominava na estética black229. Os b.boys usavam roupas esportivas, bonés, correntes, jaquetas grafitadas (Silva, 1998).

227

Este repertório musical foi herdado pela geração do rap, sendo utilizado nas colagens das bases musicais desenvolvidas pelos DJs (Tella, 1999).

228

Como Africa Bambaata, de Grand Master Flash, e a segunda geração de rappers norte- americanos, como Run DMC e Public Enemy.

229

Os bailes não apenas orientavam os gostos musicais dessa juventude, mas eram também uma referencia estética, onde as roupas e o penteado black power exerciam um papel fundamental (Silva, 1998).

Mesmo quando os b.boys começaram a se apresentar no espaço dos bailes

black, o conflito entre estes dois estilos foi inevitável, “expresso através de vaias e

do boicote comandado pelos adeptos deste ou daquele gênero. A situação tornou- se tão difícil de ser controlada que determinadas equipes preferiam reunir, em um mesmo baile, apenas grupos que tinham uma origem comum”230.

Curiosamente, o primeiro registro fonográfico do rap brasileiro – Ousadia do Rap, de 1987 – foi lançado por uma equipe de baile, a Kaskatas Records. Foi também a partir da estrutura desenvolvida previamente pelas equipes de baile que a produção musical do rap se consolidou em um mercado fonográfico paralelo à grande indústria fonográfica231. Estas práticas foram importantes na história do Hip Hop nacional, apresentando como o movimento, apesar de sua referência norte- americana, absorve as experiências específicas de cada contexto onde se desenvolve (Silva, 1998).

“O público, os organizadores dos eventos, produtores da cultura, tinham em

comum a afro-descendência, a origem migrante e a condição segregada

de moradores nos bairros periféricos. Quando os rappers hoje se intitulam

“a voz da periferia” eles estão nos remetendo para uma experiência social comum referenciada nestes três elementos pois eles marcam a vida deste

segmento juvenil na cidade”232

A maioria dos grupos de rap ligados às equipes de baile desenvolveram o canto-falado, mas valorizando mais a melodia e o ritmo das músicas, para serem tocadas nos bailes, do que a crítica política. Nos últimos anos da década de 1980 já se observava grupos de rap que abordavam temas como racismo, drogas e a emergência de novos atores sociais na cidade de São Paulo – meninos de rua, drogados, favelados, ladrões -, mas as letras eram, em grande medida, irônicas e algumas vezes bem-humoradas. Nesta época, as letras dos próprios Racionais MCs – cujas primeiras músicas foram gravadas por um selo alternativo de uma equipe de baile (a Zimbabwe) - foram consideradas muito pesadas, mas mesmo

230

Silva, 1998, p. 83 231

Neste mercado “paralelo” cujas origens remontavam as equipes de baile, se destacam a Kaskatas, a Zimbabwe e a Black Mad.

232

assim lançadas na coletânea de rap. A justificativa dada pelo produtor foi que os Racionais MCs passavam, nas letras, coisas que ele próprio havia vivido na sua infância (Silva, 1998).

O depoimento abaixo de um jovem integrante do movimento Hip Hop, apesar de longo, é interessante por sintetizar bem esta evolução das letras de rap:

“O que eu queria enfrentar eram essas coisas [racismo, discriminação]. Eu acho que isso deve ter acontecido com todo mundo dentro do hip hop. Porque na verdade eles [os primeiros rappers] começaram a trazer temas que eram temas comuns a todos os jovens da periferia, e sobretudo os jovens negros. Eu lembro que as temáticas foram mudando. Assim, por

exemplo, quando Os Metralhas começaram a falar sobre a questão da

abolição [do sistema escravista] e da questão da situação do negro no Brasil, isso e aquilo, a gente começou a pensar sobre essas coisas: “Pô, o que o cara tá falando é a mesma coisa que eu sinto, é a mesma coisa que eu penso, legal isso”. Aí quando veio, por exemplo, o Thaíde falando da situação, pelo fato também de ser negro, pobre e da periferia, ele começou também a abordar esses temas e você começou a ficar mais encucado, e de repente chega Racionais [MC’s] e começou a falar sobre a questão da violência policial com a juventude negra. Aí, meu, você fala: “Pô, vem um cara fala uma coisa, vem um cara fala outra” e era todo jovem negro que passava naquela época. Meu, a gente não podia sair na rua que a gente era abordado [pela polícia militar]. Você dobrava a esquina, podia estar dois, três, uma turminha, era complicado, os cara [policiais militares] paravam toda hora, era um inferno. E aí eles [os primeiros rappers] começaram a vim e eu falei: “Meu, os cara tão falando a verdade, é aquilo que eu quero falar”. Porque eu passava por aquilo e aquilo ficava entalado na garganta sem poder falar com alguém, sem poder carregar aquilo. [...] Uma coisa era você ir pra um show de rap, cada show de rap que eu ia, que eu ouvia não só as músicas, mas as frases nos intervalos de uma música e outra , por exemplo, frases dos Racionais [MC’s], do Mano Brown falando, do Thaíde falando sobre uma situação, como a gente tem que ser forte, isso e aquilo. Cara, aquilo te levantava a bola de uma forma, que você falava: “Pô, eu quero ser

igual a esse cara. Se esse cara é preto como você, automaticamente você

não está se negando”233.

Esta evolução se deve ao fato dos rappers serem verdadeiros intérpretes das transformações da vida urbana, promovendo uma leitura crítica da realidade social, possibilitando que as transformações urbanas dos anos 90 no país fossem por eles registradas. À medida que a crise econômica e, consequentemente, a crise social se exacerbava, o tom das letras de rap se tornava mais “pesado”.

As atividades de rua, os salões de baile, a produção de selos independentes, as rádios comunitárias, os grupos de break, de grafiteiros, de rap e as posses estabeleciam uma rede de atividades - a primeira vista fragmentadas - que possibilitou a consolidação do movimento Hip Hop em São Paulo e de seu potente discurso político que, nos anos 90, nos raps cantavam a brutalidade da crise social juvenil em São Paulo.