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Capítulo 5: O Movimento Hip Hop

5.2. B boys, DJs, Rappers e Grafiteiros interagindo em São Paulo

5.2.2. A Fala dos “Manos” – o Rap

Foi justamente nas equipes de break que surgiram os primeiros rappers no Brasil, como Thaíde, Mano Brown e Rappin’ Hood. Ao longo dos anos 80, os grupos norte-americanos de rap e as suas referências da África, de Malcom X, dos Panteras Negras, de Martin Luther King presentes nas músicas, nos videoclipes e nas capas dos discos tornam-se familiares aos jovens brasileiros que circulavam no centro de São Paulo. Ali, além de “dançar o break e “rimar” ao ritmo de palmas e batidas nas tampas das lixeiras da estação de metrô – na falta das pick-ups dos DJs (...) trocavam fanzines com letras traduzidas de rap e pequenas biografias sobre artistas e líderes do movimento negro americano” 234.

Esta troca de informações foi fundamental para que o grafite, o rap e o break, além de serem formas de diversão desta juventude, desenvolvessem o caráter político, de mobilizadores sociais, que caracteriza o espírito da cultura Hip Hop. Informações estas que não eram transmitidas pelo processo educacional

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Depoimento de um jovem, Panikinho, extraído do trabalho de Scandiucci (2006, p. 12). 234

formal: havia uma lacuna sobre a experiência da população negra mundial (a Diáspora Negra) que seria preenchida por uma postura autodidata destes jovens. A partir das lutas políticas e dos símbolos de origem afro-americana presentes nos clipes, nas capas de discos de rap norte-americano dos anos 80 (muito politizado nesta época, com destaque para o Public Enemy, NWA), o interesse para a realidade dos negros do país era despertado.

“Dizem que o negro brasileiro tem de encontrar sua própria identidade, saber quem foi Zumbi. Mas Zumbi não deixou nada escrito, sua história foi contada pelos brancos, nem dá para saber até hoje qual a verdade ou não a respeito dele. Por isso é que a gente estuda o que os americanos escreveram. Eles mostram como nós podemos nos organizar, de forma e contra o que temos de lutar...No Brasil não há negros que tenham deixado essa herança. Quando a gente começou a ouvir Public Enemy, ler autobiografia do Malcom X, vimos que a situação dos negros nos EUA era parecida com a nossa.

Parecida, mas não igual”235

Inicialmente um interesse sobre a história dos escravos e dos negros brasileiros, um processo que foi traduzido para os termos locais e contemporâneo na tentativa de se entender ““como as coisas chegaram a ser o que são””236, culminando com as letras mais ‘agressivas’ dos rappers brasileiros que retratavam a brutalidade da crise social dos anos 90. Um “autodidatismo” que, naturalmente, se refletia e se difundia nas letras dos rappers (Silva, 1999).

As longas letras de rap, permeadas por gírias locais, retratam o universo da periferia. Um universo do qual a mídia e o poder público se afastaram. Os rappers com suas narrativas e denúncias sobre o mundo da periferia, em nenhum momento, procuram amenizar os desdobramentos da desindustrialização e dos rumos político-econômicos que o país seguiu a partir dos anos 90. A dramaticidade da crise social que se engendrou - sintetizada nas chacinas, na violência policial, no racismo, na miséria, na segregação urbana, etc. - é exposta a partir do ponto de vista de quem as vivencia cotidianamente. Jovens privados dos

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Depoimento de KLJay Apud Pimentel, 1999, p. 111 236

sistemas de apoio social, saúde, educação e segurança do Estado não hesitam em enfrentar o discurso político de que as desigualdades sociais do Brasil estão sendo reduzidas. Ao mesmo tempo em que denunciam, permanecem como referência para os milhares de jovens que vivem “do lado de cá” da ponte.

Uma fala que aborda os “desajustados, drogados, favelados, ladrões, meninos de rua, detentos, ex-detentos, toda uma legião de deserdados da cidade mais rica ao sul do equador”237 não como vítimas, mas retratando sua humanidade emergindo como protagonistas de suas histórias e memórias (Azevedo e Silva, 1999)238. Cantam sobre os “últimos pensamentos de um homem que acaba de ser baleado, depois de seguir a carreira de um amigo no crime e ter sido acusado, pelo resto do bando, de entregá-lo à polícia (...) o último dia na vida de um ex- presidiário que tenta se readaptar e criar o filho dignamente, mas acaba sendo acusado injustamente de um roubo nas redondezas e é executado pela polícia que invade sua casa de madrugada”239.

O Hip Hop ao permitir que os jovens elaborem uma interpretação sobre suas realidades sociais, compreendam parte da história que, muitas vezes, não é ensinada nos bancos escolares. Incentiva a busca de informações e também desenvolve o sentimento de coletividade - o “pertencer” a um lugar, a uma posse, a um grupo de rap, de break ou de grafite – cria um espaço onde esses jovens são ouvidos, vistos, notados, repercutindo, naturalmente, na auto-estima dos mesmos (Scandiuci, 2006). Um movimento que “afirma a identidade do jovem de periferia, propõe a ação, o auto-aperfeiçoamento, a expressão e o didatismo (....) capaz de aglutinar em torno de si dezenas, talvez centenas de milhares de jovens que se

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Azevedo e Silva, 1999, p. 80 238

Aqui podemos fazer um parênteses. Esta situação é muito diferente da que ocorria nos anos 60 e 70 no Brasil, quando a vanguarda artística e intelectual de classe média e de esquerda abordava em seus trabalhos a realidade e a vida das classes menos privilegiadas. Atualmente, sujeitos “do povo” – favelados, desempregados, subempregados, drogados - ao chamarem a atenção para o cotidiano da periferia, são, efetivamente, sujeitos do discurso e da luta por melhorias deste cotidiano (Herschmann, 2003). Curiosamente, o trecho de uma recente música “Subúrbio” lançada por Chico Buarque – ídolo consagrado de toda esta geração desse período se faz bem interessante: “Dança teu funk, o rock,/ Forró, pagode, reggae/ Teu hip hop/ Fala na língua do rap/ Desbanca a outra/ A tal que abusa/ De ser tão maravilhosa”.

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tratam por “manos”, deixando transparecer essa espécie de fé tênue que lhes traz a sensação de fraternidade”240.

Neste sentido, o tratamento de “mano” entre os integrantes do Hip Hop não é gratuito, como bem nos lembra Kehl (1999). Indica a intenção de igualdade (em contraposição da identificação de líder ou ídolo) dos que procuram fazer da “consciência” a arma para virar o jogo da marginalização. As letras de rap contêm um forte apelo ao semelhante, “fique esperto, fique consciente – não faça o que eles esperam de você, não seja o “negro limitado” (título de uma das músicas dos Racionais MCs) que o sistema quer, não justifique o preconceito dos “racistas otários””241. Seja através da música, da dança ou de imagens, a mensagem é a mesma: “consciência” e “atitude” – orgulho da raça negra e lealdade para os irmãos de etnia e de pobreza.

A “atitude” que os “manos” tanto prezam responde também pelo “fim da humildade do sentimento de inferioridade que tanto agrada a elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão – ou seja: do medo – de nossa “boa gente de cor””242. A importância do Hip Hop reside na sua “capacidade de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a exclusão”243.