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Capítulo 3: A Violência e a Criminalidade Urbana

3.4. Os Limites do Sistema de Justiça Criminal

3.4.3. Os Problemas na Condução do Processo Judicial Criminal

Antes de avançarmos, seria interessante apontarmos que a instituição policial é também responsável pelas instâncias preparatórias dos processos que são levados ao Ministério Público, onde serão apreciados pelos promotores públicos que poderão solicitar novas investigações policiais, o arquivamento por insuficiências de provas ou poderão apresentar a denúncia. “Caso a denúncia seja aceita pelo juiz, instaura-se o processo para apuração de responsabilidade penal, oportunidade em que o indiciado no inquérito policial se transforma em réu perante a Justiça penal”146. Os intrincados e morosos labirintos, o reduzido número de juízes por habitantes da cidade147 e o reduzido número de varas em cada cidade brasileira representam importantes entraves à consecução da Justiça no país, agravados pela discriminação sofrida por réus com certas marcas sociais, onde as origens socioeconômicas e a cor da pele pesam, e muito, no desfecho dos processos criminais (Zaluar, 1998).

No Brasil, ao mesmo tempo em que muitos crimes deixam de merecer sanções penais, não significa que a Justiça criminal seja pouco rigorosa. Crimes contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro nacional, por exemplo, que costumam ser realizados pelas camadas mais favorecidas da população, são crimes cujas instâncias de controle e de punição são muito menos prováveis de ocorrerem do que quando se trata de crimes associados às camadas mais desfavorecidas da população, como roubos e homicídios (Sposato et al., 2005).

A impunidade penal representa uma faceta da crise do sistema de justiça criminal, mas que pela carência dos dados estatísticos previamente abordada não

146

Adorno, 2002b, p. 96-97 147

No Brasil, há cerca de um juiz para cada 23 mil habitantes, enquanto na Alemanha há um para 3,5 mil e nos EUA um para cada 9 mil (Silva Filho e Gall, 2002).

pode ser bem dimensionada no Brasil. Enquanto a Inglaterra apresenta uma elevada taxa de esclarecimento de crimes violentos, principalmente homicídios (a taxa é de 90%), estima-se que no Estado de São Paulo a taxa de esclarecimento dos homicídios varie entre 20% e 30% (Lemgruber, 2002). Adorno (2002a) faz referência ao trabalho de Castro148 que aponta que dos homicídios praticados contra crianças e adolescentes em 1991 na cidade de São Paulo, apenas 1,72% dos crimes denunciados tiveram uma sentença condenatória, transitada em julgado, em 1994. Em 1999, dos 10 mil processos instaurados para apuração de responsabilidade penal em homicídios que passaram pelo Primeiro Tribunal de Júri, 70% foram arquivados.

Frente a descrença nas instituições promotoras de justiça, os cidadãos buscam, cada vez mais, saídas que passam ao largo de soluções por intermédio das leis e que dependam do funcionamento do sistema de justiça criminal. Os linchamentos149 e a resolução de conflitos por conta própria150 são apenas algumas manifestações desta descrença, mais acentuada entre a população pobre e marginalizada.

“As leis no Brasil não se constituem, para largas parcelas da população, em fortes razões para ação, em algo que se deva levar em conta no momento da tomada de decisão. Para aqueles “abaixo da lei” (...) que têm seus direitos sistematicamente violados pelo Estado e pelos outros membros da sociedade, com a omissão ou conivência do Estado em punir estas violações, não há razão para se confiar na lei ou seus agentes e muito menos para leva-la em conta. Para os privilegiados, o direito também não é

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Castro, M.M. P. de. 1996. Vidas sem valor: um estudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça.Tese de Doutorado em Sociologia. PPGS/FFLCH-USP, 279p.

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Os linchamentos representam o abismo entre a expectativa da população diante de crimes graves – principalmente quando envolvem crianças e adolescentes em tentativas ou o atos consumados de estupro, ou roubos e homicídios dolosos de pessoas queridas na comunidade - e o funcionamento do sistema de Justiça. O linchamento do “culpado” – julgado, condenado e executado pela família, amigos e vizinhos da vítima – sintetiza uma forma coletiva de revolta popular, a justiça privada com as próprias mãos (Adorno, 2002a, 2002b; Zaluar, 1999).

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Os grupos de extermínio são organizados para a execução sumária e sistemática de suspeitos de cometimento com crimes – quase sempre moradores da mesma localidade - , cujos membros mais recorrentes são cidadãos comuns, moradores de bairros populares, comerciantes locais e policiais. A ação destes membros, que apelam para uma solução radical, extralegal e fatal é, usualmente, aprovada pelos moradores de tais localidades como forma de compensar a ineficiência do sistema de Justiça (Adorno, 2002a, 2002b; Zaluar, 1999).

algo tremendamente importante para se levar em conta na hora de se praticar uma ação ou tomar uma decisão, uma vez que, normalmente,

podem conquistar seus objetivos inclusive contra o direito”151

Os trabalhos de Adorno (1996, 2002b) e de Sposato et al. (2005) (que compara a percentagem dos indiciados com a dos condenados e absolvidos nos crimes de roubo e de homicídio) apontam que as sanções da justiça criminal alcançam preferencialmente os negros e os migrantes, comparativamente às sanções aplicadas aos cidadãos brancos, procedentes das classes médias e da alta sociedade.

Adorno (1996) em seu trabalho “Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa” permite o vislumbramento da desigualdade das sanções aplicadas a cidadãos negros e brancos, corroborando com a hipótese de que se o crime não é praticado apenas pela população negra, o “privilégio” da punição parece se concentrar sob esta população152. Com base nos dados sobre os roubos qualificados (37,9% da amostra de crimes violentos: roubo, tráfico de drogas, latrocínio, tráfico qualificado, estupro) na cidade de São Paulo em 1990, o autor observa que à discriminação socioeconômica, soma-se a discriminação racial na Justiça criminal.

Nas prisões em flagrante, há uma maior incidência de réus negros (58,1%) do que de brancos (46,0%), refletindo a maior vigilância policial sobre a população negra do que sobre a população branca. Entre os réus que respondem às acusações em liberdade, há também uma maior proporção de réus brancos (27,0%) comparativamente a de réus negros (15,5%).

Este contexto discriminatório do rigor da lei perpassa outros aspectos do sistema jurídico penal brasileiro, que coloca a cor/raça da pessoa como um

151

Vieira, 1999, p. 45

152

O mesmo pode ser observado em países desenvolvidos, como os EUA onde “há um consenso quanto aos efeitos provocados pelo efeito discriminatório das agências encarregadas de conter a criminalidade: a intimidação policial, as sanções punitivas e a maior severidade no tratamento dispensado àqueles que se encontram sob tutela e guarda nas prisões recaem preferencialmente sobre “os mais jovens, os mais pobres e os mais negros”. São estes os grupos justamente desprovidos das imunidades conferidas para as complexas organizações delinqüentes envolvendo cidadãos procedentes das classes médias e elevadas da sociedade” (Adorno, 1996, p. 1). Mas nestes países estas práticas não são reforçadas por uma alto grau de impunidade, como no Brasil.

poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça. De todos os réus brancos que apresentaram provas testemunhais, 48% foram absolvidos e 52% condenados, entre os negros que valeram deste recurso, 28,2% foram absolvidos enquanto 71,8% foram condenados. Adorno (1996) observou também que os réus negros dependem mais da assistência jurídica proporcionada pelo Estado153 (62% contra 39,5% dos réus brancos).

Sobre o desfecho do processo, observou-se uma maior proporção de réus negros condenados (68,8%) do que de réus brancos (59,4%). Entre os réus negros que recorrem à assistência jurídica proporcionada pelo Estado, 57,6% são condenados, enquanto 39,5% dos réus brancos são condenados. Este tipo de assistência jurídica responde pela absolvição de 60,9% dos réus brancos, contra 27,1% dos réus negros.

Pela realidade desvelada nos dados citados, mesmo que um pouco defasados, a flagrante crise do Estado em uma importante articulação do sistema de justiça criminal pode ser vislumbrada. Adorno (1996) bem aponta a elevada freqüência com que o argumento de que “sendo mais pobres, os réus negros tendem a ser mais vulneráveis aos rigores das leis penais e mais desfavorecidos diante dos tribunais de Justiça criminal”154 é utilizado. Mas esta argumentação que aponta a diferenciação no tratamento dos réus brancos e negros assentada na maior inserção de cidadãos negros em estratos socioeconômicos mais desprivilegiados - e não como fruto de racismo – não se sustenta ao se comparar as variáveis socioeconômicas dos réus brancos e negros.

Adorno (1996) observa que ambos os réus parecem ser recrutados dos mesmos estratos socioeconômicos, compostos majoritariamente por grupos de trabalhadores de baixa renda, pauperizados, ao que vem se associar à baixa

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Dez anos após a publicação desse artigo de Adorno, foi criada a Defensoria Pública em São Paulo, com um atraso de quase duas décadas em relação à previsão constitucional de 1988. Antes disso, os serviços de assistência jurídica eram realizados pela Procuradoria de Assistência Judiciária com auxílio de advogados privados. Segundo Gonçalves (2006), “o orçamento destinado à Defensoria Pública, bem como o número de profissionais alocados nessa instituição, é irrisório se comparado com os números atinentes ao Judiciário e ao Ministério Público, o que reforça o círculo vicioso que exclui boa parte da população pobre do acesso aos serviços públicos no Brasil”. 154

escolaridade155. O autor ainda desconstrói a hipótese de que os negros são tendencialmente mais inclinados à prática de crimes violentos do que os brancos, uma vez que não se observa diferença, estatisticamente significativa, entre a proporção de réus masculinos brancos e negros. Observa, já em 1990, que tanto os réus brancos (84,9%) quanto os réus negros (85,2%) se concentram nos estratos jovens da população (18 a 30 anos, uma população que representava apenas 19,4% da população do município).

A problemática de acesso à Justiça é explícita. E quando dizemos acesso à Justiça estamos nos referindo “a possibilidade material do ser humano conviver em uma sociedade onde o direito é realizado de forma concreta, seja em decorrência da manifestação soberana da atuação judiciária do organismo estatal, seja, também, como reflexo da atuação das grandes políticas públicas a serem engendradas pela respectiva atuação executiva (...) que prestigie a vida, a dignidade e o respeito incorruptível aos direitos fundamentais do homem. Enfim, o enaltecimento do valor da justiça como referência a ser seguida”156. A partir do momento em que há uma defasagem entre a letra da lei e as práticas judiciais que contemplam as diferenças raciais, de gênero, de renda, de idade, de ideologia política e religiosa “transformando reputações privadas em públicas”157, que faz com que muitos padeçam no inferno prisional, não se pode afirmar que o principio constitucional da igualdade esteja sendo exercido, explicitando, mais uma vez, a debilidade do Estado brasileiro.