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A cultura exílica situa-se na interseção e nos interstícios de outras culturas (Naficy, 1993, p. 2). O discurso exílico tem de lidar com a problemática de lugares múltiplos. A desterritorialização que o exílio produz tem criado “outros mundos e conhecimen­ tos” de pessoas

desafetadas,

que voluntária ou involuntariamente não estão ou não querem fixar-se a uma só identidade. Os exilados, segundo Naficy, têm a possibilidade de criar identidades híbridas e culturas sincréticas que simbólica e materialmente tomam empres­ tadas de ambas as culturas, a do passado e a do presente, o que para Salman Rushdie faz parte do processo de tradução pessoal.

Em seu artigo autobiográfico “Pátrias imaginárias” (“Imaginary homelands” ), Rushdie enfatiza que escritores como ele, exilados, emigrados ou expatriados, podem ser perseguidos por um sentimento de perda, uma necessidade de recuperação do passado, de reencontro consigo mesmos, correndo o risco de se tornarem estátuas de sal (Rushdie, 1992, p. 10). Mas como eles não são mais capazes de re­ conquistar o que se perdeu, tenderão a criar ficções, não cidades ou vilas reais, mas aquelas invisíveis,

pátrias imaginárias,

criações “ima­ ginativamente” verdadeiras. No entanto, como o escritor adverte, verdade imaginária é, simultaneamente, louvável e duvidosa.

A natureza parcial dessas memórias, sua fragmentação, sua imprecisão, seu caráter hesitante e desproporcionado, é o que as fazem, para Rushdie, ser tão evocativas quanto valiosas: “Os cacos de memória adquirem um

status

maior, uma ressonância maior, porque são restos; a fragmentação faz coisas triviais parecerem sím bolos, e m undanidades adquirirem qualidades m ísticas.” (Rushdie, 1992, p. 12). O exílio exige uma auto tradução por parte

do autor. Tradução, para Rushdie, quer dizer na sua maneira exílica de se expressar uma dualidade de línguas e de espaços memoriais. Isso, a princípio, é um ganho adquirido pela proficiência de vá­ rias línguas e culturas literárias daquele que escapa de uma só identidade estática e fixa. O exílio torna-se assim uma experiên­ cia positiva do conhecimento e da alteridade que ultrapassa a negatividade estéril e improdutiva, dando vazão a uma riqueza de narrações e histórias. Segundo Rushdie, o exílio é gerador de uma errância positiva, enraizada, de cruzamentos literários, um encon­ tro com o Outro, e uma rejeição ao espaço recluso.

A palavra ‘tradução’ vem, etimológicamente, do latim: carregar através. Depois de termos sido carregados pelo mundo afora, nós somos

homens traduzidos.

Supõe-se normalmente que algo sempre se perde na tradução; eu me atenho, obstinadamente, à noção de que algo também pode ser ganho. (Rushdie, 1992, p.

17, grifo nosso).

A perda ou o ganho dessa tradução de sensibilidades e sen­ tidos se verifica na impossibilidade ou incapacidade de não po­ der se comunicar através de uma imbricação e multiplicidade de línguas, culturas ou mídias. O cinema intercultural e o de exílio permitem a exploração de fronteiras imaginárias, principalmente através da intermidialidade e de uma percepção consciente dos clichês e da mídia. No filme filipino

Todo Todo Teros

(2006), de John Torres, o digital é usado como recurso narrativo e como materialidade midiática. A manipulação e a presença da imagem são constantes e tratadas como uma ameaça terrorista. A imagem se torna complô e ameaça de um mundo cada vez mais inserido den­ tro de uma problemática globalizada. O terrorismo se torna assim

não uma ameaça real para a pobreza, miséria e subserviência filipina, mas uma figura de estilo e tratamento estético sobre a banalização da globalização.

Já no filme palestino

Paradise now

(2005), de Hany Abu-Assad, o terrorism o não é uma alegoria da globalização, e sim uma legitimação da resistência identitária e de luta contra a opressão. O terrorismo é algo imanente na cultura palestina e mundial de hoje, por razões distintas. No filme, a realidade toma proporções maiores que a própria ficção, e o questionamento de o que é real ou fictício se torna sem sentido, pois a real devastação do espaço torna impossível qualquer tipo de

ficção.

A presença material da atualidade dos escombros torna-se materialidade fílmica. É como se o ilogismo da situação palestina num m undo globalizado e m o­ derno fosse inumano, incompreensível, inaceitável e “não narrati­ vo”. O discurso pessoal e político confunde-se com as noções de Estado-nação, povo e cultura, como no longo m onólogo do per­ sonagem central, Said (Kais Nashif), antes de embarcar para Israel com uma bom ba atada a seu corpo:

Uma vida sem dignidade não vale nada. Sobretudo, quando ela nos lembra, dia após dia, nossa humilhação e nossa fraqueza. E o mundo observa tudo isto, covardemente, indiferente. Se a gente se encontra sozinho em face dessa opressão, a gente deve encon­ trar um meio de pôr fim a essa injustiça. Eles devem entender que se não há segurança para nós, não haverá tampouco para eles. Eles convenceram o mundo todo, e a eles mesmos, de que eles são vítimas. Como pode o ocupante ser vítima? Se eles endossam o papel de opressor e de vítima, eu não tenho outra escolha que a de ser, ao mesmo tempo, vítima e assassino.

A ameaça iminente de sua integridade física e da cultura de seu povo é incorporada literalmente pelo personagem através de

um ato incompreensível de resistência e alteridade. Ele se afirma

integralmente, corpo e mente. A cultura do Outro, ou seja, a israe­ lense, está presente-ausente na tela de uma maneira sutil, subjacente e onisciente. Essa tensão e opressão entre culturas legitima o dis­ curso pessoal do personagem e o torna imediatamente político e identitário, como um rompimento de barreiras e auto afirmação. O ato extremo de se imolar junto com o Outro revela também, no filme, a impossibilidade de continuar a sustentar uma imagem ou história que não o corresponde.

Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema de gênero, que por décadas vem aprisionando e impedindo temas como a migração e a colonização, e estabelecer uma real e complexa noção do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do migrante pelo cinema clássico influencia na maneira, por exemplo, de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exílio.

Se fizermos uma analogia entre gênero cinematográfico, com suas estruturas, tipos e normas, e uma caixa, essa imagem nos dá uma ótima possibilidade de pensarmos as estratégias dos cinemas emergentes e interculturais nas suas tentativas de romper com es­

tas embalagens e se conceberem “fora da caixa” ( outside the box).

Os filmes In this world (2002), de Michael W interbottom,

e Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mesclam os gêneros cinemato­

gráficos, documentário e drama, e colocam a “caixa” não como uma simples metáfora, mas como uma prática concreta do contra­ bando de imigrantes. Os filmes mostram alternativas desesperadas dos migrantes para cruzar as fronteiras, submetendo-se à exploração

dos atravessadores que os contrabandeiam de forma ilegal através de contéineres pela Europa.

No filme de Winterbottom, dois jovens escapam da miséria e da guerra do Afeganistão pagando atravessadores, a fim de po­ derem cruzar as fronteiras de vários países ocupados e em guerra e conseguirem chegar a Londres. Eles tomam os caminhos mais difíceis e inusitados, como cruzar desertos, atravessar montanhas durante a noite ou viajar dentro de um contêiner sem luz e com

pouco ar. Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mostra o contrabando

de imigrantes africanos para a Irlanda em caminhões-baús de car­ ga tóxica.

O neoliberalismo econômico abriu as portas para a globalização de produtos e serviços, inclusive a importação e a exportação ilegal

de mão de obra barata. Os migrantes tornam-se commodities eco­

nômicas, objetos transnacionais (Marks, 2000; Herr, 2007). Esse movimento do mundo conhecido (lugar de origem) ao mundo ainda não conhecido (exílio) representa movimentos através de

um apparatus do estado em que uma pessoa é transportada e radi­

calmente deslocada de seu espaço. A caixa é a transição, o transpor­ te, uma jornada impossível de ser representada. Enquanto o cinema de gênero age como fornecedor de fantasia e desencadeador da diferença, a representação de pessoas imigrantes repousa numa tensão entre fantasia e experiência da realidade (Herr, 2007). Com essa realidade difícil de apreender é que os filmes emergentes ten­ tam estabelecer uma ponte. Assim, a busca é por uma estrutura narrativa aberta, como uma ferramenta para opor ou deslocar um olhar profundamente alienado.