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1. As “cervejas de Salazar e Caetano”

1.4. A reorganização forçada por um convite inesperado: o sector cervejeiro e a

1.4.2. Balanço da indústria cervejeira no final da década e a nova abertura do

Importa, para contextualizar esta realidade, transmitir as dificuldades que o tecido empresarial do sector cervejeiro diagnosticava. Para tal, foi imprescindível a leitura de um relatório sobre a indústria das bebidas, realizado por uma comissão composta por Bernardo Lancastre Mendes de Almeida (conde de Caria), Humberto Pelágio e Abilino Vicente, com o apoio da Corporação da Indústria e da Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos, que fez parte de um relatório preparatório do Plano de Investimentos para 1965-6756. É um dos poucos documentos em que é realizada uma

análise mais detalhada da evolução deste sector, com apreciação crítica dos problemas das indústrias em questão, propondo, inclusive, caminhos a seguir. Incompreensível é, no entanto, a quase nulidade de informações sobre a indústria cervejeira no Plano Intercalar de Fomento, apesar do despacho de 1960 se incorporar nele, sobretudo por este ter sido, de todos os planos, aquele que verdadeiramente ensaiou o planeamento económico global, com estruturação sectorial. São, sobretudo, os relatórios preparatórios – da corporação da indústria e o do Ministério da Economia – que nos elucidam acerca das matérias dominantes em torno do debate sobre o sector: a questão da promoção da cultura de cevada dística e lúpulo face à necessidade urgente de reduzir o seu custo; o regime de aplicação do imposto de consumo, que havia subido em 1961 para 2$10/litro com o início da guerra em Angola, “verdadeiro travão à expansão dos

56 O Plano de Investimentos para 1965-67 constitui um dos vários relatórios preparatórios para o III Plano

de Fomento (1968-1973), que compunha estudos elaborados por diversos grupos de trabalho da Comissão Interministerial do Planeamento e Integração Económica, nos vários sectores da economia portuguesa.

consumos continentais e possibilidades de exportação”57; bem como o problema da indústria de embalagens e garrafas, visto como um “sério embaraço para a Indústria Portuguesa”58, mas cuja solução estava já em andamento, com a montagem de uma nova fábrica de garrafas (constituição da Cive – Companhia Industrial Vidreira que agrupava a Empresa Produtora de Garrafas, a Guilherme Pereira Roldão, a Ivima e a Crisal), resultado da política de diversificação iniciada pela SCC com base em dois eixos: «o mercado da sede», que a levara aos refrigerantes, ao vinho comum e às águas minerais, e a indústria de embalagens, nomeadamente de vidro”59. Falava-se, de igual modo, da carência de uma regulamentação dos preços praticados pelo comércio retalhista, que “estrangulava a indústria”, e da abolição dos direitos de exportação para a cerveja, “1,5% do valor médio por grosso”60. Afigurava-se já um novo receio: a provável concorrência do produto estrangeiro, então expresso nas conclusões do relatório preparatório do plano de investimentos para 1965-67, onde se rejeitavam as alternativas do crescimento lento, pois as únicas vias que se poderiam percorrer eram a do “crescimento rápido que aproveite eficazmente os factores até agora sub-empregados (...) ou a crescente absorção desses factores pelas economias estrangeiras”61. Consequentemente, vemos do lado dos industriais o desejo de serem estabelecidos prémios de exportação, bónus à navegação nacional para fretes internacionais e seguros, como já se observava em alguns países. Ainda assim, há que considerar a existência do anexo G da Convenção de Estocolmo, que salvaguardava a indústria portuguesa no que tocava às pautas aduaneiras.

As direcções que a indústria apontou remetem para dois conjuntos de ideias, que confluem nos seus propósitos, isto é, o cumprimento do despacho ministerial de 1960, que asseguraria a não concessão de novos alvarás e o papel da Associação de Cervejeiros, que seria o esteio desta mesma luta, como grupo de pressão, ainda que justificando tais opções pelo projecto animador da exportação e do desarmamento

57 PORTUGAL. CORPORAÇÃO DA INDÚSTRIA. Plano Intercalar de Fomento 1965-1967. Acções de

política industrial na indústria transformadora. Lisboa: s.n, 1964, p. 29.

58 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Indústria da Alimentação e das Bebidas (classes 20 a 21): Relatório

Preparatório do Plano de Investimentos para 1965-67. Lisboa: Ministério da Economia, 1964, p. 4.

59 RIBEIRO, José Félix et al. “Grande indústria, banca e grupos financeiros,” Análise Social XXIII, n.º 99

(1987): 945-1018, p. 1004.

60 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Indústria da Alimentação e das Bebidas (classes 20 a 21): Relatório

Preparatório do Plano de Investimentos para 1965-67. Lisboa: Ministério da Economia, 1964.

61 PORTUGAL. PRESIDÊNCIA DO CONSELHO. SECRETARIADO TÉCNICO DA PRESIDÊNCIA

DO CONSELHO, Relatório preparatório do plano de investimentos para 1965-1967. Estudos gerais

(Metrópole), 2a parte. Caracterização presente da economia portuguesa e projecções do seu

aduaneiro. Como era referido no final deste relatório, não se esperavam obstáculos. “A indústria arrancou já para o objectivo Exportação. E não pode voltar atrás”62.

Para mais rapidamente atingir os mercados externos, a SCC e a CUFP criaram, em 1966, um Gabinete Comum de Exportação, cuja estratégia inicial passava pela entrada em mercados específicos, nomeadamente onde existiam grandes comunidades de emigrantes portugueses. Nos moldes da cooperação, acreditavam que resolveriam eficazmente os problemas que assolavam a indústria com acções concertadas no campo da publicidade, da investigação de novos produtos e da prospecção e estudo de mercados. Iniciaram, no mesmo ano, a exportação para Gibraltar e para os Estados Unidos. O relatório do Conselho de Administração da CUFP relativo a 1970 referia que “a concorrência pela inovação é mais importante do que a concorrência de preços e quantidades”.

O quadro que se segue dá-nos uma panorâmica comparativa do sector em 1953 e em 1962:

Sector cervejeiro em 1953 e 1962

1953 1962

Estabelecimentos em actividade 4 4

Valor da produção em contos (preços de venda ao retalhista) 79 750 203 500

Pessoal operário remunerado 716 848

Materiais consumidos (contos) 35 216 68 961 Valor acrescentado (contos) = valor da produção aos preços de venda (custo

industria - mão-de-obra) 66 075 161 406

Capital fixo (contos) 172 000 320 000

Distribuição regional da produção a preços de venda ao retalhista (contos)

Lisboa 49 198 123 641 Coimbra 11 000 33 000 Porto 19 552 46 859

Fonte: Tabela retirada de MINISTÉRIO DA ECONOMIA, Indústria da Alimentação e das Bebidas (classes 20 a 21):

Relatório Preparatório do Plano de Investimentos para 1965-67 (Lisboa: Ministério da Economia, 1964), p. 8.

O balanço desta década não pode ficar concluído sem que se decomponha detalhadamente o despacho de 1968, a confirmação final da mudança de estratégia governamental no que toca ao sector cervejeiro, isto é, “utilizar o condicionamento industrial, [através da autorização de instalação de novas empresas], para romper os

62 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Indústria da Alimentação e das Bebidas (classes 20 a 21): Relatório

equilíbrios estabelecidos há décadas em sectores fortemente concentrados”63. Desde a orientação de Ferreira Dias, em 1960, até à data de promulgação deste novo despacho, não há uma evolução unívoca quanto aos pedidos de instalações. Em 1963, Lúcio Tomé Feteira requer a autorização para instalação de uma unidade fabril de cerveja, mas esta é rejeitada. A partir daqui, só em 1966/67, como mostra a tabela 1 do anexo B, se dá uma renovada afluência de pedidos, com o argumentário comum da existência de posições monopolistas no sector, que estarão na base de discussão do referido documento.

O despacho parece, na sua essência, sofrer de um problema de coerência, uma vez que desconsidera as críticas encetadas por alguns industriais acerca do monopolismo, dizendo que esta situação pode ser corrigida por ajustes pautais, não implicando necessariamente o licenciamento de novas fábricas, cujos investimentos poderiam ser nefastos para o sector. Mas, simultaneamente, com base na capacidade nominal de produção do sector, estabelecida em 170 milhões de litros/ano, e dadas as previsões de alcance desse número em 1972, no que toca ao consumo, considera-se proveitosa a entrada de uma ou várias empresas no mercado cervejeiro, desde que obedeçam às exigências emanadas do anterior despacho e que produzam refrigerantes e garrafas (apenas um dos requerentes cumpria estes objectivos – Supersumos). No entanto, a entrada em laboração da nova fábrica só estaria prevista para o ano de 1972, face às recentes previsões da produção e do consumo. No fundo, este despacho reflecte uma certa abertura à iniciativa privada, através de uma tentativa de liberalização económica, que pretendia enfrentar os problemas decorrentes da concorrência externa.

Entretanto, em 1969, a Supersumos, juntamente com outros accionistas, incluindo a Mahou, sociedade espanhola de assistência técnica, e a influência do Conde de Caria com o apoio do Banco Pinto e Sotto Mayor, constitui, a 27 de Março de 1969, a Cergal – Cervejas de Portugal (capital social de 60 000 contos), que fixa a localização da sua fábrica no distrito de Lisboa (Venda Seca, Belas), com uma produção anual de 25 000 000 litros.

63 RIBEIRO, José Félix et al. “Grande indústria, banca e grupos financeiros,” Análise Social XXIII, n.º 99

1.5. Uma estabilidade relativa: os efeitos de um crescimento ilusório