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4. A nacionalização da indústria cervejeira

4.1. O processo reivindicativo e os conflitos sociais

4.1.2. Guerra de comunicados

O mês de Fevereiro inaugura uma troca de comunicados/acusações entre a Administração da SCC e as Comissões de Trabalhadores que se estenderá até Março, patente em grande parte da imprensa escrita da época (Diário de Lisboa; A Capital; O

Primeiro de Janeiro; Jornal do Comércio; O Comércio do Porto; Jornal de Notícias; Diário Popular; República; Diário de Notícias e Século). Neste espaço, procurarei dar a

conhecer os principais argumentos de ambas as partes, utilizando para o efeito as notícias recolhidas na imprensa, as principais fontes para compreender a forma como decorreram as negociações.

Aos comunicados da Comissão de Trabalhadores, literalmente vertidos nos jornais, segue-se a resposta da Administração, datada de 10 de Fevereiro, que circula

153 Esta guerra era a representação singela da luta na sociedade entre o programa de Melo Antunes e um

programa mais à esquerda, ainda que por definir.

pela imprensa nos dias subsequentes. Esta vem contrariar as posições dos trabalhadores, assentando a sua argumentação em cinco vectores essenciais: (i) condições de trabalho, remunerações e regalias da empresa estão acima da média nacional; (ii) processo reivindicativo orquestrado, similar ao que ocorreu noutras empresas; (iii) ilegalidade da ocupação e acesso a documentos privados; (iv) rejeição de diálogo por parte dos trabalhadores; (iv) desresponsabilização pela gestão155.

As Comissões de Trabalhadores da Sede, da Trindade, de Vialonga, de Coimbra e do Porto, de forma conjunta, reagem prontamente e violentamente ao comunicado da Administração. Pela primeira vez, os trabalhadores recorrem a provas factuais como forma de ataque ao patronato: desde a questão do levantamento, em 1974, de 100 mil contos a título de honorários, gratificações e dividendos, às regalias pessoais (crédito ilimitado no supermercado da empresa, combustível para o sistema de condicionamento de ar das casas, os 18 750$00 por mês para gasolina, etc.)156. Rejeita-se a ideia de que os

administradores estavam privados da sua actividade normal, e que a situação poderia ser completamente regularizada logo que estes dessem seguimento ao compromisso estabelecido quanto aos três pontos em falta (vencimentos dos administradores, redução do número de administradores e a não distribuição de lucros e gratificações de 1974). Relativamente à possibilidade de esta situação danificar a política de investimentos da empresa, a Comissão recorda que a generalidade dos investimentos efectuados à data não correspondeu aos interesses dos trabalhadores, constituindo mais uma das faces da “má gestão”. A sabotagem económica começa a ganhar forma segundo os trabalhadores, desde logo pela tentativa de “assustar os fornecedores” e pela coacção nos bastidores157. O comunicado finaliza com o reforço da necessidade de

nacionalização:

“Passemos em claro o atestado de incompetência que a Administração concedeu ao Governo Provisório, aos Governo de Inglaterra, da França e de tantos outros Países do Mundo “ocidental” e “oriental” ao considerar a nacionalização como negativa.

155 O Primeiro de Janeiro, 11/02/1075, p. 5.

156 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo do Conselho da Revolução, Correspondência não

classificada do Secretariado Coordenador, Vol. 73, n.º 206, Assuntos Económicos e Sociais e Empresas, Processo 73/15, Comunicado n.º 12 da Comissão de Trabalhadores da Sociedade Central de Cervejas.

As recentes nacionalizações em Portugal provam o contrário e estão a dar lugar a um crescente pedido dos Trabalhadores de importantes empresas, como garantia que é de sobrevivência e de fortalecimento”158.

A Administração reforça as suas constatações num novo comunicado que vem a público no dia 14 de Fevereiro, logo depois de o Diário Popular ter difundido uma notícia que indicava que alguns elementos das comissões de trabalhadores haviam recebido ameaças de morte através de chamadas anónimas159. Este episódio é

confirmado na Vida Mundial, ao que se anexam excertos de postais do mesmo teor:

“Vocês empregados burgueses revisionistas têm 6000$00 de ordenado mínimo e portanto a barriguinha cheia e querem atirar poeira aos olhos do povo português indo para a TV reclamar que nem macacos a nacionalização da S.C.C. que vos enche a barriga. Tenham é vergonha e repartam connosco o que ganham imediatamente”.

“Para p... como você vai este aviso: se algum trabalhador desta fábrica for despedido é por sua causa, sua p... Prepara-se para apanhar um enxerto de porrada, porque vai apanhá-la, disso esteja certa, seu coiro. Dizer mal dos patrões que melhor pagam neste país, desavergonhada. O teres ido à televisão dizeres mentiras fica-te caro”.160

O Conselho de Administração reitera o carácter exemplar da Sociedade Central de Cervejas, assente num equilíbrio financeiro e numa política de investimento sustentado, defendendo a teoria de que o conflito se havia desencadeado porque o sector cervejeiro não estava referenciado no Plano Melo Antunes. Por outro lado, faz uma retrospectiva dos benefícios concedidos aos trabalhadores no período anterior ao 25 de Abril, nos quais as comissões de trabalhadores tiveram uma participação importante. É retomada, agora de forma mais vincada, a tese de que o movimento que emergiu no dia 31 de Janeiro se enquadrava numa estratégia montada por sectores afectos ao PCP, desiludidos pela moderação do Programa Económico, aprovado no dia anterior aos conflitos na SCC, e que não previa a nacionalização do sector cervejeiro, bem como de outros sectores onde vieram desabrochar situações idênticas.

Numa entrevista concedida à Vida Mundial, um elemento da Comissão de Trabalhadores aborda todo o processo reivindicativo em torno da SCC. No eixo central da análise centra-se a posição dos trabalhadores relativamente às nacionalizações: “o

158 Ibid.

159 Diário Popular, 14/02/1975, p. 11. 160 Vida Mundial, 20/02/1975, p. 23.

Estado deve intervir nas grandes empresas lucrativas e atacar os monopólios”161. Noutra

frente, um representante do sector comercial refuta esta mesma concepção, porque a nacionalização acarretaria uma “baixa de produção”, já que se o funcionário “se sentir na pele de funcionário público, faz como ele, isto é, como recebe pouco, pouco faz”162.

O sector comercial é contra a nacionalização da empresa, mas a favor do controlo desta pelos trabalhadores, em moldes que não foi possível apurar durante a investigação.

A posição da Sociedade Central de Cervejas na estrutura económica do Estado Novo é também analisada. Salienta-se o facto de a situação de monopólio ter concedido à SCC benefícios de economia de escala, isto é, com uma produção de 240 milhões de litros, obtinha custos de produção baixos. Os avultados lucros eram investidos noutras empresas, contribuindo para a degradação financeira da SCC, que ia assim incrementando a sua dependência face à banca nacional.

A Comissão Coordenadora anuncia, pela primeira vez, a intenção de promover um “saneamento político e de competência”, afastando os trabalhadores que estavam comprometidos com o antigo regime, e desmobilizando a rede policial existente, consubstanciada na ligação à PIDE. Neste sentido, a ajuda concedida pelo MFA, que envia técnicos para fazer uma análise à SCC, é extremamente fulcral, como teremos oportunidade de ver.

Maria Antónia Palla, jornalista que conduz a entrevista, encerra o debate em torno da Central de Cervejas com uma curiosa interrogação/afirmação: “Abolir a propriedade privada ou controlá-la? A resposta ultrapassa em muito os trabalhadores da Sociedade Central de Cervejas”163. Mas será que ultrapassa?

O arrastar da situação – tanto do ponto de vista da actuação da administração como da posição “divisionista” do sector comercial – provocou a marcação de um novo plenário, para o primeiro dia de Março, que teve lugar em Sacavém, a pedido da Comissão do Prior Velho. As principais decisões emanadas dessa Assembleia – que, segundo a Comissão de Trabalhadores de Vialonga, contou com a presença de elementos provocatórios – postulavam uma lógica de continuidade reivindicativa sem inversões dramáticas no seu discurso. A Administração deveria outorgar poder a dois administradores, que seriam autorizados a entrar na empresa até uma posterior decisão

161 Ibid, p. 19. 162 Ibid.

da Junta de Salvação Nacional sobre a intervenção estatal, que vinha sendo trabalhada por uma comissão de inquérito nomeada a 20 de Fevereiro. Via-se obrigada a apresentar o relatório da gestão referente a 1974 e a proceder aos actos de gestão necessários ao normal funcionamento da empresa. Os trabalhadores definiram o dia 06 de Março como data final para uma resposta da Administração, caso contrário seriam automaticamente saneados164. Num comunicado lançado a 04 de Março, a Administração mostra-se

favorável ao diálogo, rejeitando todas as acusações, colocando-se no papel de vítima de um embuste de maiores dimensões, que iria conduzir a empresa “a uma crise irreversível e irrecuperável”, desde logo pela impossibilidade de execução do plano de investimentos previsto para 1975165.

Durante esta constante troca de acusações, desde 20 de Fevereiro que se encontrava em funcionamento uma Comissão de Inquérito Oficial à SCC, pedida pelos trabalhadores à Junta de Salvação Nacional. Foi através desta que a JSN apresentou às comissões de trabalhadores uma proposta de gestão temporária para a empresa, que previa a formação de uma administração formada por representantes dos accionistas e elementos de confiança dos trabalhadores. Após a reunião entre as Comissões de Trabalhadores de Vialonga, Sede, Trindade, Coimbra e Porto, estes contrapropõem: Administração provisória composta por dois representantes dos actuais accionistas – sendo que um destes pode ter a confiança do Banco Espírito Santo – e três representantes da JSN; o Conselho Fiscal contaria com três representantes eleitos pelos trabalhadores, que funcionaria paralelamente com um órgão de controlo e fiscalização nomeado pela JSN. O caderno reivindicativo serviria de guia-base para todos os órgãos que viessem a ser criados.