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1. As “cervejas de Salazar e Caetano”

1.5. Uma estabilidade relativa: os efeitos de um crescimento ilusório

1.5.3. O sector cervejeiro e a economia portuguesa nas vésperas da Revolução

Compreender a economia da Revolução pressupõe um conhecimento enquadrado dos sinais, das características, das mudanças que marcaram o período pré- revolucionário. A evolução dos acontecimentos nos mais variados domínios permite- nos identificar alguns traços que considero marcantes, e que, na área económica, se podem dividir em duas fases, com um ponto de ruptura em 1957, após a realização do II Congresso da Indústria Portuguesa. Se na primeira fase tínhamos um modelo económico assente na estabilidade financeira, no planeamento a médio prazo, privilegiando o sector agrícola e algumas indústrias complementares e que sacrificava a modernização pela estabilidade social, o final da década de 50 vai significar uma recusa deste modelo de transição, fundando as bases do crescimento e desenvolvimento

67 MARTNS, Maria Belmira. Sociedades e grupos em Portugal. Lisboa: Estampa, 1973.

68 MARTINS, Américo Central De Cervejas: 50 anos de actividade. Lisboa: Central de Cervejas, 1985. 69 MARTNS, Maria Belmira. Sociedades e grupos em Portugal. Lisboa: Estampa, 1973, p. 45.

económico numa nova política industrial, que remetia para a exportação os novos horizontes, procurando contrariar a política de substituição de importações. Entre as variáveis em jogo podem ainda destacar-se a guerra colonial que marcou os anos 60 e 70, bem como os ventos de mudança que se faziam sentir no contexto internacional relativamente à descolonização; a adesão a estruturas internacionais e de cooperação, como a NATO, a ONU e a EFTA, não negligenciando os motivos de tais adesões; a crise petrolífera de 1973, entre uma série de outros leitmotivs.

A importância destas questões, por vezes aparentemente residuais, só é correctamente formulada quando analisadas a longo prazo, enquadradas no contexto mais abrangente da situação económica que assinalou todo o período revolucionário português, até porque muitos destes pontos estarão presentes e constituirão focos de tensões e discussões económico-políticas durante o PREC (cf. dicotomias: estabilidade- desenvolvimento, intervencionismo-liberalismo, isolamento-abertura, africanismo- europeísmo, agricultura-indústria, etc.). Assim sendo, a questão da estabilidade financeira, que se insere num campo de debate maior entre finanças (percepcionada como conservadora) e economia (numa óptica de transformação), tornou-se peça-chave da política económica salazarista, que se foi alicerçando e transformando “em algo para além do campo da opção política circunstancial, adquirindo um estatuto virtualmente mítico”70, conduzindo ao atraso do desenvolvimento económico e industrial do país.

Augusto Mateus fala da importância das relações entre as dinâmicas interna e externa para se perceber a evolução estrutural da economia portuguesa. Deste modo, a internacionalização da economia portuguesa neste período de análise pode ser descrita como limitada, pois era dominada por “movimentos de mercadorias com base em vantagens comparativas limitadas”, no quadro da EFTA. Esta situação coexistia com a “manutenção da relevância do comércio colonial”, num sistema fechado ao investimento estrangeiro71. No plano interno, à manutenção de salários reais baixos,

somou-se a debilidade da estrutura económica e a pouca apetência para assumir riscos, podendo ser observado pelo peso das várias actividades industriais. O bloqueamento a estratégias e planos de desenvolvimento económicos ousados é das questões mais

70 LOPES, Ernâni Rodrigues. “O desenvolvimento económico-social desde o pós-guerra 45 e a integração

europeia. Dilemas portugueses.”, in Portugal e a Europa: 50 anos de integração. Lisboa: Verbo, 1996, p. 27.

71 MATEUS, Augusto. “O 25 de Abril, a transição política e as transformações económicas", in O País

interessantes, que terá consequências não só nesse período, mas também durante o

processo revolucionário em curso. Ainda assim, e contrariamente ao discurso ruralista

de Salazar nos anos 50, houve uma tendência, que Silva Lopes considera natural, para a industrialização, mas nos moldes que os capítulos anteriores foram demonstrando.

O crescimento económico português na década de 60 foi notável em termos absolutos, mas em termos relativos a espectacularidade do mesmo é minimizada. Na realidade, o desenvolvimento da década de 60 acontece simultaneamente com uma verdadeira quebra ou crise na agricultura, evidenciada no êxodo rural, bem como no aumento da emigração para países europeus (ex. França), caso único por toda a Europa devido à quebra de população na metrópole, que baixa de “8,89 para 8,61 milhões (- 3,1%) nos anos 60”72. António de Sousa Franco, de forma bastante sistemática, aponta

os sinais de crise que se começam a evidenciar a partir de 1967 (com base em dados do Banco de Portugal), e se podem representar do seguinte modo:

i. “Atenuação das taxas de crescimento das exportações e dificuldades de continuar a tradicional política de substituição de importações;

ii. Incremento do défice comercial, compensado, na balança de pagamentos correntes, pelas remessas de emigrantes;

iii. Afrouxamento do ritmo de crescimento do investimento industrial; iv. Aparecimento de taxas de inflação progressivamente mais fortes;

v. Dificuldade de o Estado suportar os gastos de infra-estrutura, devido ao peso das despesas da guerra, com deterioração da qualidade e eficiência do aparelho do Estado;

vi. Diminuição dos salários reais em 1971, 1972 e 1973”73.

Os indícios de uma crise complexa do modelo económico do Estado Novo também não surgem isoladamente. Pelo contrário, eclodem acompanhando a evolução europeia, já se fazendo sentir algumas mudança sociais em Portugal, nomeadamente com a emergência de uma nova classe média, que rejeitava o carácter rural do Estado e “não desejava mais do que ser «europeia»”74. Apesar deste “período glorioso” em

termos económicos, José da Silva Lopes diz-nos que Portugal encontrava-se na cauda da Europa75. Todas as alterações no tecido económico que aqui tenho dado conta, estão

72 LOFF, Manuel. “Fim do colonialismo, ruptura política e transformação social em Portugal nos anos

setenta", in Portugal: 30 anos de democracia (1974-2004). Porto: Editora UP, 2006, p. 155.

73 FRANCO, António de Sousa. “Economia", in Portugal, 20 anos de Democracia, ed. António Reis.

Lisboa: Círculos de Leitores, 1994, pp. 173-174).

74 MAXWELL, Kenneth. A construção da democracia em Portugal. Lisboa: Presença, 1999, p. 40. 75 LOPES, José da Silva. A economia portuguesa desde 1960. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 15.

bem perceptíveis no quadro relativo à evolução do emprego em Portugal elaborado por Américo Ramos dos Santos76:

1960 1973

Emprego Total 3 112 000 3 124 300

Emprego PIB Emprego PIB

Sector primário 43,6% 25,1% 26% 12,2%

Sector secundário 28,7% 36,5% 36,7% 51,7%

Sector terciário 27,7% 38,4% 37,3% 36,1%

A crise petrolífera de 1973, que conduziu ao aumento exponencial do preço do crude (quadruplicou, aumentando de três para doze dólares/barril), a par da contracção económica, da pressão inflacionista e da desregulamentação do sistema monetário internacional, colocou um ponto final na época áurea do crescimento económico europeu, com implicações para a economia portuguesa.

As sucessivas tentativas dos elementos tecnocratas77 do governo de Marcello

Caetano não conseguiram suster a degradação do regime e do modelo económico subjacente, sobretudo pela acção da velha guarda salazarista, os ultras do regime. As palavras que se seguem, de Fernando Rosas, traduzem na perfeição o fracasso da mudança política – a última evolução na continuidade, a última transição falhada:

“o marcelismo era, na realidade, a expressão do triunfo tardio de uma corrente reformista dentro do Estado Novo, surgida no rescaldo da II Guerra Mundial, e que, em 1968, após acidentes vários e algumas oportunidades ingloriamente perdidas, chegava finalmente ao poder. Iria deixar fugir, também, desta feita, como veremos, a última chance de conduzir o regime por um processo de transição”78.

O processo de industrialização que ocorreu nos anos 60 acabou por se tornar, de certa forma, disfuncional e desarticulado da realidade, por não conseguir ultrapassar alguns obstáculos e imobilismos que se mantinham do passado, não querendo com isto negligenciar todas as transformações essenciais que gerou na sociedade portuguesa. Mas, que industrialização seria esta que vivia de mãos dadas com o condicionamento industrial? Como modernizar com um processo de industrialização que parece rejeitar a competitividade interna e externa, num sistema fechado e com condições de produção

76 SANTOS, Américo Ramos dos. “Abertura e bloqueamento da economia portuguesa", in Portugal

Contemporâneo, 1958-1974, ed. António Reis, vol. V. Lisboa: Publicações Alfa, 1989, p. 131.

77 Tais como Rogério Martins, Xavier Pintado, João Salgueiro e Vasco Leónidas.

78 ROSAS, Fernando. “O Marcelismo ou a falência da política de transição no Estado Novo", in Do

artificiais? Nesta conjuntura global, realça-se o surgimento de um número reduzido de grupos económico-financeiros hegemónicos que, fazendo uso das palavras de Ernâni Rodrigues Lopes, “[constituem] a base organizacional dos segmentos dinâmicos da economia portuguesa”79 – são os chamados sete magníficos, que controlavam os sectores industriais de maior produtividade, taxa de lucro e capacidade tecnológica, bem como os sectores básicos e a banca80.

Enquadrada neste cenário, a indústria cervejeira portuguesa, sendo um sector com forte contribuição para o crescimento industrial do país81, sobretudo a partir dos anos 60, em que engrossa os cofres do Estado com largos montantes de capital provenientes do imposto sobre o produto, parece representar minimamente as aparentes contradições da(s) política(s) económica(s) do Estado Novo, apesar de se encontrar, não raras vezes, em posições de vanguarda em vários domínios – veja-se a investigação científica, o marketing, a formação técnica, etc. No fundo, tal como a economia portuguesa, o crescimento deste sector, em termos absolutos é relevante, mas em termos comparativos acaba por ficar aquém da evolução da indústria cervejeira mundial, sobretudo no que diz respeito ao volume de produção e à exportação. No plano do crescimento, contrariamente à situação de outros sectores, a indústria da cerveja não conheceu uma situação de real declínio ou desaceleração no final da década de 60 / início de 70, mas na vertente financeira a situação não é a mesma, como teremos oportunidade ver. O sector cervejeiro – e praticamente toda a indústria de processos – constitui-se como um dos principais núcleos de desenvolvimento industrial, não ultrapassando alguns vícios e problemas estruturais da indústria portuguesa, nomeadamente a exploração de mão-de-obra pouco qualificada e a recusa da tecnologia e inovação.

79 LOPES, Ernâni Rodrigues. “O desenvolvimento económico-social desde o pós-guerra 45 e a integração

europeia. Dilemas portugueses,” Portugal e a Europa - 50 Anos de Integração (1995): 25-45, p. 32.

80 ROLLO, Maria Fernanda. “A industrialização e os seus impasses,” in História de Portugal: o Estado

Novo (1926-1974), ed. José Mattoso, vol. 7, 8 vols. Lisboa: Estampa, 1998, p. 421.

2. Economia da Revolução: contextualização