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2.2 BERENICE DETETIVE: OBJETIVOS E MÉTODOS DE ESTUDO

2.2.8 Berenice detetive: reflexões de leitura

Retomamos agora alguns pontos discutidos neste trabalho, não com o intuito de concluir, mas tão somente de indicar o curso das reflexões até aqui exploradas.

Os vários aspectos construtivos de Berenice detetive, seja através do desenvolvimento e desfecho de seu enredo [um crime, seus motivos, os modos de matar, as múltiplas suspeitas, a investigação e solução do caso (quando os enganos são desfeitos e se e elaà aà e dade ],à sejaà pelaà atuaç oà deà suasà pe so age sà desta a do-se a atuação do gordo, o detetive protagonista desta narrativa, que se vincula à tradição de detetives cerebrais como Sherlock Holmes ou Hercule Poirot), apontam para o pertencimento desta narrativa, de pleno direito, ao gênero policial, na sua vertente clássica ou de enigma, acrescida de traços da variante noir, devidos principalmente ao éthos de suas personagens adultas, o que alimenta a atmosfera crítica e fedo e ta àde uma narrativa que é, também, obra de literatura infantil.

Dentre os muitos jogos intertextuais presentes em sua composição, destacam-se – e permanecem conosco – aqueles fundamentais para a construção do(s) sentido(s) desta obra do autor: os relacionados com a maçã envenenada, com o mordomo Abreu e com frade João.

Como vimos, o mordomo Abreu, para além de ser referência aos mordomos do policial clássico dos séculos XIX e início do XX, é praticamente uma paródia de Barrymore, o mordomo inglês servil e sem direitos trabalhistas, sempre pronto a atender os seus quase se ho es ,àpe so age àp ese teàe àO cão dos Baskervilles, aventura de Sherlock Holmes. O espírito rebelde, irreverência, autoestima, ânsia por liberdade e a luta por seus direitos, marca registrada do mordomo Abreu, o recomendam como bom companheiro das crianças

da turma, que, por sua vez, são independentes em relação aos adultos e agem com autonomia, a maior parte do tempo.

Frade João, herdeiro de Frère Jean des Entommeures, representa o ideal socialista, seja nas causas que abraça, na camaradagem que demonstra, no gosto pela comida e pelo i ho,à uaseàse p eàt a sfo adosàe à a uete à o u it io,à ueàseàasso ia iaàaoà so hoà deàu aàidadeàdou adaàe à ueàtodosàpudesse à o e àse à est iç esàeàse àdis i i aç es à (RABELAIS, 1986, p.13), ideia que já se encontrava em Rabelais, sendo também relacionado, no plano extraliterário, à esquerda católica que teve importante papel de resistência à ditadura militar brasileira.

Este frade brigão, criativo e com disposição sempre aventureira é o principal companheiro das crianças da turma, e, como Abreu, não integra o elenco dos adultos, do ponto de vista da ideologia e do comportamento geral daqueles, parecendo mais serem legítimos participantes da turma do gordo. Cabe ainda dizer, a este propósito, que as leituras tanto de mordomo Abreu como de frade João se valeram também dos efeitos acumulativos obtidos através da relação intratextual, na medida em que as personagens aparecem em li osà a te io esà dasà á e tu asà daà Tu aà doà Go do ,à po à seà t ata à deà u aà s ie.à Essaà

i te te tualidadeài te a ,ào ia e te,à aleàta para as demais personagens fixas. A relação intertextual explícita com a maçã envenenada de Branca de Neve, presente oà odoà deà ata à doà assassi o,à t azà à to aà oà i uieta teà eà e t alà te aà dasà elaç esà venenosas no interior das famílias da classe média brasileira, cujas principais vítimas são as crianças.

A representação da mulher nesta narrativa, seja pelo tratamento que dispensa à personagem-título ou às demais personagens femininas, obedece a uma hierarquia entre os gêneros onde estas ocupam posição inferior. A começar pela participação de Berenice em sua aventura detetivesca, que termina em fracasso, seja porque ela vacilou em momento inoportuno, dando lugar a uma curiosidade naquele momento tola e perigosa, seja porque erroneamente pensou que o crime havia sido resolvido com as prisões de Marcio, Serapião e Ievardhu, ou ainda porque teria algo mais importante para fazer, o que está explicitado na frase do cônsul norte-americano (e que não sofre nenhuma contestação por parte dela) de ueà po à aisàpe ipécia de detetive que uma menina faça, nada a deixa mais contente do ueàu aà o e a à p.à .àTodoàoài pulsoà uestio ado à ueàp o o ouàBe e i eàeà oti ouà sua busca (e de toda a turma) pela solução do assassinato da escritora terminou ali, à beira

da piscina, com o deslumbramento por uma boneca americana. Tal desfecho faz pensar que, no fundo, Berenice não estava verdadeiramente envolvida no caso, que, como sabemos, revelou-se muito grave: faltou seriedade e aprofundamento à detetive que deu nome ao livro, mas não consistência.

A esse propósito poderíamos ainda acrescentar que as mais importantes e prestigiadas personagens de Berenice detetive são homens. Estes são também os mais simpáticos, os mais camaradas, os mais engraçados, com quem se pode contar, incluindo até o pai do gordo que, mesmo sendo meio blasé e depressivo, na hora H, dá uma carona ao filho que, embora não resolva todo o problema, coloca-o numa posição mais simpática para nós leitores do que a da mãe do gordo, que da ação propriamente dita não participa em nada, mas tenta, pelas costas do gordo, arranjar-lhe um namoro com outra garota, já que ela não gosta de Berenice, como já mencionamos anteriormente. Não há, entre as mulheres, personagens tão interessantes, amigas ou criativas quanto mordomo Abreu ou frade João. Sem mencionar o muito bem sucedido protagonismo do gordo que, pelo êxito de suas investigações, ainda que nem todas diretamente ligadas ao crime principal, é premiado ao fim da aventura com uma polpuda recompensa financeira. Semelhante representação dos gêneros reproduz as relações sociais desiguais vigentes entre os sexos e encerra esta narrativa numa ordem simbólica patriarcal.

Algumas marcas deste livro de 1987 delimitam seu texto historicamente àqueles anos limítrofes à ditadura militar que por longos 24 anos se impôs ao país, e à Guerra Fria, que, no campo internacional, dividiu o mundo em dois blocos antagônicos, [poderíamos citar, como exemplo dessas marcas, a menção de músicas proibidas pela censura emitidas pela rádio Lo t a deàPi hei os ,à a tidaàpeloàgo doàeàaàtu aà aà e su aàs àa a a iaàofi ial e teà oà Brasil com a constituição de 1988); uma livraria Capitu localizada na rua Pinheiros, livraria que não existe mais nem nesta rua nem em outro local da cidade; as óbvias alusões à Guerra Fria, pela presença dos cônsules americanos e soviéticos agindo, no início, em lados contrários, pela disputa da escritora-bióloga assassinada; a percepção de que ambos os lados davam respostas insuficientes às grandes questões humanas, como indicavam Olga, de Fernando Morais, e A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, os dois livros presenteados à escritora morta; e a distensão entre os dois blocos, que a confraternização entre M. Stanley e Nikiforovich, através do vinho e da sinuca, já parecia apontar.

No entanto, para além dessas marcas localizadas no intertexto histórico do Brasil dos anos imediatamente após o término da ditadura militar, inúmeros temas que foram compondo não apenas a atmosfera, mas a própria razão de ser desta narrativa, mencionados ao longo deste trabalho, tais como violência, ganância, ansiedade, autoritarismo, hipocrisia, poluição ambiental, distância entre as classes sociais, corrupção (suborno), relações venenosas no interior das famílias atingindo principalmente as crianças, e, até, o patriarcalismo, não perderam atualidade. Ainda retratam fielmente a sociedade brasileira, iniciada já a segunda década do século XXI.

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