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O cérebro e a bunda de um detetive: investigando Jaime Bunda

3.2 JAIME BUNDA, AGENTE SECRETO: OBJETIVOS E MÉTODOS DE ESTUDO

3.2.4 O cérebro e a bunda de um detetive: investigando Jaime Bunda

...mas ele era um investigador cerebral, não um homem de ação. Pensamento de Jaime Bunda

Juntamente com a estrutura, o ambiente e os temas da narrativa, como vimos no 1º capítulo deste trabalho, a caracterização do detetive é de grande importância na construção do gênero policial, como também em sua filiação a determinadas variantes genéricas.

A tradição do policial confere aos detetives certos traços relacionados com seu modo de operar, diletantismo ou profissionalismo, resultados atingidos durante a investigação de um caso, suas excentricidades, autonomia, iniciativa, ousadia e imunidade, entre outros atributos.

Jaime Bunda tem um nome que remete, a um só tempo, a James Bond e à sua própria e volumosa bunda. A esta se deve culpar pelo epíteto jocoso, obtido durante um jogo de vôlei numa aula de educação física quando Jaime não saltava como o treinador a ha aà ueàeleàde ia.à – Jai e,àsalta.à“altaà o àaà u da,àpo a! ,àg itou-lhe aquele. Jaime não saltou, mas a alcunha ficou. Assim pelo menos é o que nos conta o primeiro narrador, e não temos motivos para desconfiar dele (PEPETELA, 2003, p. 11).

Se, naqueles idos, Jaime já demonstrara falta de vocação para correr, saltar, ou seja, para praticar qualquer atividade física, isso não diminuirá quando no exercício da profissão de detetive nos SIG (Serviços de Investigação Geral). Mesmo para conseguir esta colocação, não deve ter se movimentado muito, pois conseguiu a vaga por ser parente do D.O. (Diretor Operativo), que mandou contratá-lo evitando asà fo alidadesà deà p a e ,à u o a iasà i pediti asàdoà o ateàaoà i e à PEPETELá,à ,àp.à .à

Voltando à bunda deste detetive, e lembrando que nomes também caracterizam personagens, nos deteremos um pouco nesta palavra.

Bu da ,à o oàseàsa e,à àaà egi oàglútea,àasà degas,àta àoà us,àpo àe te s o.à No Brasil, além do sentido usual, tem uso pejorativo: ordinário, de baixa qualidade, sem valor. A abonação que colhemos no Dicionário Houaiss Eletrônico da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2009) pa aà talà a epç oà à u à li oà u da .à “eà pespegadoà aà u aà pessoa,à sig ifi a à Jo o- i gu ,à i di íduoài sig ifi a te ,à sujeitoà àtoa .à

Oà es oàdi io ioà osàd ,àe àu aàsegu daàa epç oàdaàpala aà u da ,àeàta à pa aàaàpala aà u do ,àoàsi i oà o i u do ,à ueàse iaàoài di íduoàpe te e teàaoàg upoà banto, de língua umbundo, habitante da região ao sul do rio Cuanza, de Angola, e também, aisàespe ífi oàpa aàoà o uloà u do ,àaà desig aç oàge i aàdeà eg oàdeàá gola ,à e à como o modo preconceituoso de se referir à língua falada pelo povo bundo como

est opiada àeà i o eta .à

Doà ui u doà u da ,à aà pala a,à tidaà po à Jo geà á adoà o oà aà aisà elaà daà língua, é de origem angolana.

Todas essas ressonâncias que o termo pode provocar apontam desde já para conteúdos paródicos e irônicos associados ao detetive em questão.

E os gaiatos narradores de Jaime Bunda, agente secreto não só descrevem a lentidão dos movimentos de Jaime devido a sua pesada bunda, como também comentam que os excessos gastronômicos do detetive são os cuidados que ele toma para mantê-la.

Outros aspectos imediatamente derivados do nome da personagem, e que remetem às paródicas relações entre Jaime Bunda e James Bond, serão abordados posteriormente.

Na tradição do gênero, o modo de operar do detetive, ou seja, a estratégia da qual ele se vale para solucionar os casos que investiga, pode ser, como já mencionado, o a io í ioàa alíti o,àoà ueàfa iaàdeleàu à deteti eà e e al ,à ueàp i ilegia iaàoàpe sa ento pa aàdes e da àosà i es.àÉàoàtipoà ui aàdeà a io i a ,à ujosà elho esàe e plosàse ia à

Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Ou pode ser ele do tipo noir/hard-boiled, que prefere a ação violenta, pouco afeito à resolução de intrincados quebra-cabeças, metendo-se na perseguição dos criminosos, usando punhos, armas, músculos. Aqui poderíamos citar Sam “pade,à deà Ha ett,à à eà Mikeà Ha e ,à doà “pilla e.à Ouà podeà usa à aà i tuiç o ,à o oà Missà Marple, de Agatha Christie, ou Maigret, de Simenon.

Os métodos não ortodoxos ou não ocidentais, como a vidência ou imposição de mãos, como faz em Jaime Bunda, agente secreto dona Filó, a quimbanda interlocutora dos espíritos das águas, se situam fora do gênero policial, em todas as vertentes até aqui mencionadas, de enigma, noir ou espionagem.

Jaime Bunda, ele mesmo, considera-seàdeteti eà e e al .à

A ironia é flagrada por seus leitores, pois a autoimagem deste detetive é enganosa. Não o vemos aplicar-se a uma linha de raciocínio metódica ou a buscar a solução através da lógica, convertendo-seà aà itadaà ui aàdeà a io i a àf iaàeàa alíti a,à o oàosàp i ipaisà detetives da vertente clássica ou de enigma o fariam. Não irá ele resolver o caso de seu p i ei oàli oàusa doà todosàditosà e e ais .àNe à es oà esol e àoà aso que tem em mãos, embora acabe por acaso descobrindo outro delito, de grandes proporções. Quanto ao todoàdeàJai eàBu da,àesteàseà eduzà àete aà a pa a :àsegue-se o suspeito, troca-se de vigilantes, coloca-se um boné para disfarçar, liga-se para o departamento de trânsito ou prefeitura para levantar nomes, espiona-se um sujeito 24 horas por dia até que se consiga apanhá-lo em alguma coisa. Lembra mais os procedimentos descritos por Dashiell Hammett da rotina de seu trabalho como detetive na agência Pinkerton, e que este levou para o policial noir. Seria, então, Jaime Bunda, um detetive do tipo hard-boiled/noir, um violento homem de ação, valendo-se de fortes punhos e armas de fogo?

Mais uma vez, a resposta seria não.

Em Jaime Bunda, agente secreto, em termos dos paradigmas do gênero policial quanto a caracterização do detetive, temos uma equação que não fecha.

Pois o mundo no qual Jaime Bunda mergulha, um mundo distópico, de engrenagens podres, corrupto e injusto, é noir, mas este detetive não tem nada dos detetives durões do

hard-boiled americano, sujeitos de punhos pesados e miras certeiras, pois tem dificuldade

Também não tem ele maiores habilidades com armas de fogo, ao ouvir o estampido de uma, no meio de um cerco policial contra o armazém de Bubacar, urina nas calças e se supõe atingido pelo tiro, e já a perder sangue.

O que o aproximaria dos detetives do noir/hard-boiled é o gosto pelo uísque, copos bem cheios, com gelo. Isto o faz visitar seguidamente, e mais vezes do que seria necessário, o gabinete de Kinanga no Ministério do Interior, onde o uísque é farto e de boa qualidade. Ki a ga,à oà poli ialà deà a eçaà azoa el e teà so ialista ,à po à seà se ti à p essio adoà peloà Jaime, que se apresenta como agente do Bunker, redobra esforços para capturar o criminoso. Kinanga contará com a ajuda de dona Filó, que imporá as mãos no banco dos carros suspeitos e indicará aquele onde Catarina esteve, apontando assim como culpado o filho de um deputado, que, de fato, confessa o crime. Bunda teve aqui papel indireto.

Quanto aos demais traços, já foi assinalada anteriormente a não imunidade de Jaime Bunda enquanto detetive, decorrente do modo de apresentação do enredo, em que a história e a ação se fundem. De fato, Jaime Bunda não tem imunidade, a estrutura do enredo permite que ele corra riscos, ele pode sofrer acidentes ou até morrer. Nosso detetive, como se sabe, primeiro apanhará da amante Florinda, quando ela descobre que Jaime pagou Antonino para bater em seu marido. Depois, levará uma surra de pau que lhe quebrará uma perna, fazendo-o acabar a narrativa engessado, como o herói de Janela

indiscreta (Rear Window, 1954, EUA), de Hitchcock.

Nenhum dos dois fatos teve algo a ver com sua ação detetivesca. A derradeira foi vingança do marido de Florinda e seus comparsas. O estado lamentável em que ele se encontrará ao final do livro não pode ser reputado a seu heroísmo, mas à falta dele.

A excentricidade dos detetives é traço acrescentado a estes principalmente na escola clássica ou de enigma, para humanizar detetives que do contrário se assemelhariam a máquinas.

Ora, Jaime Bunda é demasiadamente humano, pouco necessitaria de tais acréscimos. Ele não executa instrumentos musicais, nada coleciona e não tem excentricidades, embora a bunda exagerada pudesse ser colocada nesta categoria. Mas Jaime pode ser considerado e t i oà oàse tidoà ueàLi daàHut heo àd à àe p ess o:à e -cêntrico, o que está fora do e t o à HUTCHEON,à ,àp.à .àá gola o,à eg o,à o a doàdeàfa o à oà ua ti hoàdoàtioà Jeremias (que fica mais próximo do centro de Luanda do que a casa materna, no Sambizanga), detetive estagiário, sem dinheiro, no trabalho usa computadores obsoletos e

carros que nem rádio têm, amante de uma mulher casada que prefere o próprio marido, u dudo,àJai eàest à fo aàdoà e t o ,à asà a ge sàdoàpode ,àai daà ueà o t aàaà o tade.à

Outro ponto de grande importância nas narrativas policiais é a infalibilidade do detetive. Esta é inquestionável nas narrativas de enigma e nas de espionagem aos moldes de Ja esà Bo d,à ―à seusà deteti esà ouà age tesà se p eà e o t a à osà i i osos,à o segue à explicar a realidade de forma total, restabelecem a ordem social que fora quebrada com o i eà ―à eà elati izadaà ouà at à sà ezesà egadaà e à o asà doà noir, pois nem sempre seus detetives apanham os criminosos ou conseguem dar explicações conclusivas ou tranquilizadoras sobre o caso que enfrentam. Jaime Bunda, ele mesmo, acredita na infalibilidade dos detetives:

E agora estava finalmente com um caso bicudo nas mãos. Um crime sem indícios. O crime perfeito? Nunca há crime perfeito, a justiça sempre triunfa, o Mal será vencido, tinha aprendido estas verdades absolutas nesses livros. Pois bem, ia mostrar que os seus ídolos Spilane, Chandler ou Stanley Gardner estavam cheios de razão e não há crimes perfeitos, há é investigadores imperfeitos.

(PEPETELA, 2003, p. 29)

No entanto, com relação ao caso do assassinato de Catarina Kiela Florêncio, a ato zi ha ,à Jai eà Bu daà i à falha ,à o fo eà osà a e tadosà p og sti osà deà do aà Fil ,à obtidos através dos búzios e dos rastros dosà a a guejosà aàa eia:à Masàu aà oisaàeuàsei,àtuà não vais des o i à PEPETELá,à ,àp.à .à

A qual crime estaria se referindo dona Filó, ao da menina Catarina ou àquele relacionado com o senhor T?

Jaime Bunda, de fato, não solucionou o assassinato da ato zi ha ,à ueàfoià esol idoà pelo Kinanga e pela própria dona Filó, com a acusação ao filho do deputado, que confessou tudo. Também não conseguiu implicar o senhor T, que parecia ser o mandante e principal beneficiário do golpe que pretendia aplicar contra a economia de seu próprio país, o segui doà apa ha ,à p o a el e te,à ape asà osà seusà e e uti os à p i ipais,à “aidà eà Bubacar. Portanto, para além das firulas da mídia ou da repartição, que destacam sua atuação no caso das kwanzas falsas, Jaime Bunda não foi detetive infalível em nenhum dos crimes que enfrentou.

Jaime não se envolverá no caso da catorzinha ou posteriormente no do senhor T por diletantismo ou passatempo, como os detetives amadores da vertente de enigma. Jaime é,

uei a osà ouà o,à u à p ofissio al ,àt a alhaàpeloà sal io,à ai daà ueà talà t a alhoà uitoà oà ag adeà eà oà e haà deà u à e tusias oà i te te tual ,à diga osà assim. Também não é um pa ti ula ,à asàu àfu io ioà o t atadoà deà odoà oà uitoào todo o,àj àsa e os à de uma instituição policial do Estado angolano. Bunda é funcionário público, um agente secreto, um policial, como também o são (para citarmos dois que muito têm a ver com o detetive angolano) James Bond e Inspetor Maigret.

E, como falar de Jaime Bunda enquanto personagem se não se levar em consideração a sua formação como detetive, realizada não nos treinos ou provas de uma academia de polícia ou de agentes secretos, mas nas páginas dos livros policiais? Sobre tais relações intertextuais, falaremos em seguida.