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Maior que Maigret, o detetive da Surété, é Simenon, o Maigret da alma humana

Otto Maria Carpeaux

O belga Georges Simenon (1903-1989) começa a escrever em 1920, e, até 1930, publica diversos romances populares, aventuras ou melodramas, num ritmo industrial (que jamais abandonará), e utilizando diversos pseudônimos. A partir de 1931 surge a primeira

história protagonizada pelo comissário Jules Maigret, no romance Pietr-le-Letton, onde o belga assina seu nome verdadeiro.

Diferentemente do policial da escola inglesa clássica ou de enigma que se preocupava tão somente com a resolução do problema quase geométrico proposto pelo crime (e que era resumido na expressão whodunit), e diferentemente da escola norte- americana do noir que privilegiava a ação, com maior ou menor crítica social, Simenon parece mesmo pertencer a uma tradição francesa que deve mais a Balzac do que a Edgar Allan Poe.

Conforme a dupla de autores e teóricos franceses do gênero policial, Boileau- Narcejac:

No começo de sua carreira, Simenon não pensou em discutir as regras que pareciam reger, desde Van Dine, o romance-problema. Escreveu novelas (Les 13

énigmes, por exemplo, ou Le petit docteur) que respeitam a técnica, agora

tradicional, do romance policial. Mas não era homem de crer por muito tempo que a vida surge de uma investigação conduzida conforme os mandamentos da lógica. Que esta seja útil, que sirva até de armação à narrativa, assim seja. Nada de mais apaixonante do que chegar, passo a passo, a um culpado. Mas resta uma pergunta que não tinha sido feita: por que ele? Os autores, antes de Simenon, consideravam terminada a tarefa do detetive quando ele tinha posto a mão no ombro do assassino e dito: é ele, porque todos os índices o indicam. Sem dúvida! Mas por que ele e não um outro?

(BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 55)

De fato, o que o comissário Maigret busca é compreender a alma humana, ele não julga, quer entender. Ele nada tem do justiceiro violento e moralista de certa escola norte- americana, e nem o maniqueísmo da escola inglesa do enigma ou da espionagem à la James Bond. Pacífico, amante de um bom copo de cerveja e salsichões, casado com a rosada e agradável senhora Maigret, Jules Maigret tem uma vida pequeno burguesa, tranquila e regrada, o que cria um contraponto interessante na construção de uma personagem que não se esquiva seja de mergulhar nos desvãos da alma humana ou de fazer crítica social.

O comissário Maigret não é detetive amador ou particular, ele é um funcionário público, trabalha na Sureté, a chefatura de polícia de Paris. Tais dados acrescentam às narrativas policiais de Simenon certos traços da verte teà oti aà poli ial à aquela que descreve o trabalho de uma equipe de polícia durante uma investigação), mas não as confundem com esta, que abre mão do mistério, centrando-se no processo policial de captura de um criminoso que de antemão já se sabe quem é.

Do ponto de vista estrutural, as narrativas de Maigret não seriam muito diferentes das de enigma, incluindo-se aqui o mistério referente à identidade do criminoso, o inquérito e a revelação final, como nas histórias de Agatha Christie, por exemplo. Mas o interesse de Simenon vai além da aferição de pistas e busca de um culpado, como observa Cawelti:

Simenon então cria uma estrutura eficiente de detecção e mistificação com a revelação final adiada até o final. Embora esta estrutura seja menos intrincada e evidentemente marcada por desafios explícitos ao leitor do que em Christie e Sayers, ela é de muitos modos mais envolvente porque se torna uma investigação a respeito das complexidades e ambiguidades humanas. As mais importantes deduções não são explanações de pistas materiais, mas inferências sobre como o caráter humano e o contexto social interagem para criar uma cadeia de ações. Poirot chega à solução do mistério quando ele compreendeu o modo pelo qual determinadas pistas apontam infalivelmente para um culpado específico, mas a solução de Maigret reflete a capacidade para fazer sua imersão intuitiva na atmosfera social de um crime e dos personagens envolvidos gerando um momento de iluminação racional e moral. Consequentemente, o poder principal da engenhosidade de Simenon no gênero do detetive clássico é sua praticamente única habilidade para fazer-nos compartilhar da síntese das percepções intelectuais e morais de Maigret, de sua descoberta não apenas do culpado, mas da significação moral do crime. Mesmo na mais complexa história de Agatha Christie, o culpado permanece uma pessoa má que cometeu uma ação ruim especialmente engenhosa.

(CAWELTI, 1976, p. 129-130, tradução nossa). 8

Não é por acaso que a mais marcante característica de Simenon seja a capacidade de criar atmosferas, em todos os sentidos da palavra, como destaca Otto Maria Carpeaux: “i e o àsa eà ia àaàat osfe aà o alàassi à o oàaàso ialàeàaà eteo ol gi a Cá‘PEáUX,à 1984, p. 2273).

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Thus Simenon creates an effective structure of detection and mystification with the final revelation held until the very end. Though this structure is less intricate and clearly marked by overt challenges to the reader than Christie and Sayers, it is in many ways more engrossing because it becomes an inquiry into human complexities and ambiguities. The most important deductions are not explanations of material clues, but inferences about how human character and social background interact to create a certain chain of behavior. Poirot arrives at a solution to the mystery when he has grasped theà a ài à hi hàtheàpa ti ula à luesàpoi tàu e i gl àtoàaàspe ifi à ulp it,à utàMaig et sàsolutio sà efle tàtheà apa it àto make his intuitive immersion in the social atmosphere of a crime and the characters involved yield a moment of rational a dà o alàillu i atio .àThusàtheà hiefàpo e àofà“i e o sàa tful essài àtheà lassi alàdete ti eàge eàisàhisàp a ti all àu i ue ability to make us share Maig et sàs thesisàofài telle tualàa dà o alàpe eptio s,àhisàdis o e à otào l àofàtheà ulp ità utàofà the moral significance of the crime. Even in the most complex story by Agatha Christie, the culprit remains an evil person who has committed a particularly ingenious bad deed.

1.5GÊNERO POLICIAL E SOCIEDADE: INTERTEXTUALIDADES, REPRESENTAÇÕES DA MULHER E