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O escritor brasileiro João Carlos Marinho nasceu em 1935, no Rio de Janeiro, formou- se em Direito em 1962, na Faculdade do Largo São Francisco da USP, e morou em Guarulhos (onde tinha um escritório de advocacia trabalhista) até 1987; passando, depois disso, a viver aà idadeàdeà“ oàPaulo,ào deàs oàa ie tadosà uaseàtodosàosàli osàdaàs ieàdasà á e tu asà daà Tu aà doà Go do ,à dasà uaisà Berenice detetive, obra do corpus deste trabalho, é um exemplar.

Marinho estreou na literatura infantil com O gênio do crime, título que inaugurou a série.

Era o ano de 1969. A ditadura militar, que havia se instalado no poder em 1964, acabara de decretar, na agourenta e sinistra noite da sexta-feira 13, em dezembro de 1968, o AI-5 (Ato Institucional nº 5).

Tal decreto deu poderes extraordinários e absolutos ao presidente da república. Possibilitou ao regime, arbitrariamente, fechar o Congresso, cassar políticos, suspender direitos constitucionais entre os quais a garantia de habeas corpus (proteção judicial que assegura o direito de liberdade de locomoção a pessoa ameaçada por atos abusivos do poder), aplicar censura prévia à imprensa, instituir a liberdade vigiada, proibir reuniões e manifestações, prender opositores sem julgamento, afastar funcionários públicos e enviar para a reserva militares dissidentes, prender e perseguir artistas e intelectuais, efetuar prisões preventivas, confiscar bens de supostos corruptos, praticar e ocultar crimes de tortura e assassinato. (BRASIL. Ato Institucional nº 5; HABERT, 2003; PILAGALLO, 2004; RISÉRIO, A. et al., 2005)

Segundo depoimento da escritora Maria Rita Kehl, este decreto

[...] encerrou precocemente nossa promissora década de 1960. Embora o regime militar tenha começado em abril de 1964, durante os quatro anos seguintes o país ainda não tinha abandonado as grandes esperanças inauguradas no curto período do governo João Goulart. Não eram esperanças propriamente revolucionárias, mas as reformas sociais e estéticas que se tentava implantar traziam ares de revolução para um país que se modernizava tão tardiamente como o nosso.

O AI-5 sufocou toda essa efervescência15, fechou o congresso, prendeu as lideranças estudantis reunidas em Ibiúna, fez muita gente sair às pressas do país; autorizou prisões sem julgamento e facilitou que muitos assassinatos fossem abafados.

(KEHL, 2005, p. 31-32)

Com todos estes instrumentos de exceção, o AI-5 deu início aos Anos de Chumbo, o período mais duro e radicalizado da ditadura militar.

Nesse clima de autoritarismo e de violenta repressão a qualquer sinal de rebeldia, e de submissão ao ideário norte-americano, seja com relação ao projeto político-econômico ouà ài pla elà açaàaosà o u istas ,àMa i hoài o a a,àpo doàe à e a,à o ài o iaàeà non

sense, na obra inaugural e nas seguintes, crianças agindo com independência, inteligência,

correndo riscos de vida, e parodiando elementos e clichês do gênero policial.

Em O gênio do crime, o gordo16, que tem à época, como o resto da turma, dez anos de idade, co segueà seà sai à elho à aà i estigaç oà doà ueà oà aio à deteti eà doà u do ,à Míste à Joh à “ ithà Pete à To ,à oà D.I.à deà deteti eà i i to ,à u à es o sà o idoà aà uís ue,à paródia de Sherlock Holmes. Com o desfecho do caso, Míster tira as letras D. I. da porta de seu helicóptero, porque já não é mais invencível.

Desde o início do regime militar se praticou a tortura no país. Porém, a partir do AI-5, ela será exercida com maior desenvoltura. No livro que inaugura a série, o gordo acaba aprisionado pelos falsificadores de figurinhas que seguia. Estes ameaçam dissolver o gordo u aà a hei aà deà ido,à pa aà oà dei a à pistasà u à o oplata,à u aà fala gi ha,à u aà fala geta .àE,àpa aàfaze àoàgo doà o ta à o oà hegouàat àeles,àsu ete -no à tortura:

Almeidinha segurou forte o gordo. Bolachão quis se livrar mas o grandão tinha mão de pilão e atarraxou o gordo na cadeira. Atlas enfiou o alicate na unha do gordo, a do dedão, apertou e foi puxando para cima.

Dor assim o gordo nunca tinha sentido; a vista escureceu tudo e ele gritou:

15

A efervescência que a autora se refere é a série de ações culturais e políticas gestadas nos anos 60 no Brasil. Entre elas, o método de alfabetização de adultos de Paulo Freire, a Teologia da Libertação, o movimento estudantil, o teatro de José Celso Martinez Corrêa, de Gianfrancesco Guarnieri, o cinema de Glauber Rocha, a música de Chico Buarque, de Caetano Veloso, de Geraldo Vandré, a arte de Hélio Oiticica... (KEHL, 2005, p. 31-32)

16 “e p eà ueà oàde o e àdestaàteseà osà efe i osà àpe so age à go do ,àes e e e osàt oàso e teàaàpala aàgo do,àe à

minúscula e sem qualquer destaque, como tem preferido seu autor, em todos os títulos que publicou. Quanto ao nome da s ie,àopta osàpo àg afa à ásàa e tu asàdaàTu aàdoàGo do ,à o oà o staàe à e e tesàedições.

─ Chega! Eu falo.

O chefe fez um sinal e Almeidinha afrouxou o alicate; o dedo estava inchado e pingava sangue, mas não deu tempo de arrancar fora a unha, só deslocou um pouco. (MARINHO, 2005, p. 101)

Já não se trata, como se vê, da criança protegida da literatura infantil brasileira situada entre Lobato e os anos 70. Escreve Nelly Novaes Coelho:

Em finais da década de 70 (que coincidiam com a deterioração do governo militar instalado desde 1964), os ventos transformadores atingem a Literatura Infantil. A liberdade criadora que se havia atrofiado no período imediato após Lobato volta a fecundar a criação destinada à criança. Desvinculada de quaisquer compromissos pedagógicos (e mesmo insurgindo-seà o t aà oà di e io is oà did ti o à ueà predominara nos anos anteriores), a nova literatura infantil/juvenil obedece às novas palavras de ordem: criatividade, consciência da linguagem e consciência

crítica. (COELHO, 2000b, p. 130, grifos da autora)

João Carlos Marinho é um dos representantes dessa nova literatura. Ainda que a trama de O gênio do crime não faça referência direta ao regime de exceção naquele momento instalado no campo extraliterário, e as cenas com a promessa de fazer o corpo do gordo desaparecer e a da tortura estejam humoristicamente tonalizadas, as lemos como alusões às práticas do regime, e da qualificação destas como atos de bandidos.

Por outro lado, cenas de tortura e sadismo com o intuito de se arrancar informações de agentes secretos ou de criminosos não são alheias à tradição do policial, principalmente nas vertentes hard-boiled/noir e na de espionagem. Exemplos seriam os métodos de Mike Hammer, o detetive de Spillane, ou situações vividas por James Bond, de Ian Fleming, como

e io a osà oà apítuloà AAIINNVVEESSTTIIGGAAÇÇÃÃOOCCOOMMEEÇÇAA::SSOOBBRREEOOGGÊÊNNEERROOPPOOLLIICCIIAALL . .

Em 1971, um ano após a seleção brasileira de futebol conquistar a Copa do Mundo de 1970, portanto, e no clima ufanista e de euforia popular que se instalou no país, Marinho publicou O Caneco de Prata (MARINHO, 2002b .à Esteà li oà osà o ida iaà aà u aà leitu aà alegórica: na vertigem e non sense de sua narração fragmentada, onde se cruzam várias hist ias,àpodeà esidi àu aài age àdoàB asilàdosàte posàdoàp eside teàM di i à LáJOLOàEà ZILBERMANN, 1991, p. 142).

São nesses tempos do presidente Médici, os mais duros do regime militar, que a economia brasileira conheceu uma notável expansão. O período ficou conhecido como o do

O chamado milagre brasileiro consistiu em série de medidas que propiciaram grande industrialização do país e rápida expansão econômica, através de capitais estrangeiros e grandes investimentos estatais em indústrias de base, estimulando a ascensão de uma classe média que passou a desfrutar de um padrão de consumo mais elevado (eletrodomésticos, automóveis, financiamento imobiliário, mercado de capitais). Tais medidas econômicas não acabaram com as desigualdades sociais, pelo contrário, aumentaram a concentração de renda, já que, entre outros problemas, elevou a dívida nacional, promoveu inflação e compensou desta última só as classes mais favorecidas economicamente, coibindo aumentos salariais para as camadas mais pobres. (HABERT, 2003; PILAGALLO, 2004)

Conforme Pilagallo (2004), na época recorria-se a uma metáfora para explicar esta concentração de renda: o bolo precisaria crescer para depois ser repartido. Enquanto isso, as classes mais favorecidas abocanhavam os pedaços maiores.

A representação literária da família do gordo caracteriza-a como pertencente às classes que ficaram com os maiores pedaços do bolo, a partir dos anos 70 do século XX, passando a gravitar em torno de um modelo de vida consumista e competitivo, de procedência norte-americana.

De acordo com Lajolo e Zilbermann (1991, p.142-143), João Carlos Marinho acaba por fazer crítica à sociedade brasileira, violenta, consumista, desigual e injusta, de modo indireto, sem apelar para um tom condenatório como também sem incluir em seu texto as camadas mais pobres da população, preferindo lançar mão de recursos mais sutis e estritamente literários, entre os quais, a redundância, a naturalidade ao descrever os exageros de violência e também os artefatos tecnológicos sofisticados, o non sense e a ironia.

Assim, a percepção das diferenças entre as classes sociais não está ausente do texto de Marinho, como lemos, a seguir, num trecho do ensaio onde Edmir Perrotti analisa O

Caneco de Prata, mas que julgamos abranger as demais obras do autor:

Ope ioà oàe t aàe àla ho eteà―àdisseàaàBe e i e. ―àPo à ueàse à ueàope ioà oàgostaàdeàla ho ete?

―àEuàa hoà ueàope ioà oàgostaàdeà a ho oà ue teà o à osta daà―àdisseàoà Bi ui ha. à

A referência a cisões entre classes sociais é um dado novo na literatura brasileira para crianças e jovens. Até os anos 70 prevaleceu uma visão idealizada da sociedade que fazia de conceito de Pátria elemento aglutinador e dissimulador de

todos os conflitos de interesses que caracterizam a sociedade de classes. Assim, talvez pela primeira vez, os grupos sociais mostram-se em estado de contradição... (PERROTTI, 1986, p. 94, grifo nosso)

Em Sangue Fresco, publicado em 1982, o norte-a e i a oà “hipà O Co o s,à o à oà empréstimo de um banqueiro suíço e com dinheiro de dois sócios, um japonês e um alemão, e detentor de 51% das ações, fundou a Flesh Blood Corporation,à e p esa àlo alizadaà u à acampamento na Amazônia onde, a partir de março de 1980, passou a aprisionar e manter no campo de concentração ali construído as crianças paulistas bem nutridas que mandava sequestrar, com a intenção de lhes extrair e vender o sangue no mercado internacional. O gordo e a turma também serão sequestrados e enfrentarão o vilão, dessa vez com a ajuda do Frade João, personagem provavelmente representante da esquerda católica que desempenhava importante papel de resistência à ditadura militar, ainda no poder no ano de publicação deste livro. (MARINHO, 2006a)

O Livro da Berenice (MARINHO, 2006b) tem sua primeira edição em 1984. Será este o últi oàli oàdeàMa i hoàdasà á e tu asàdaàTu aàdoàGo do àaàse àpu li adoàde t oàdoà i loà militar (1964- .àEsteà àta àoàa oàdasà di etasàj ,à ujaàe e daàse iaàde otadaàe à 25 de abril de 1984, e ano da criação do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (PILAGALLO, 2006, p. 93).

Nestaàa e tu a,àBe e i eàest àes e e doà Ni gu àfazà i haà a eça ,àli oà ueàoà milionário grego Papoulos Scripopulos vai roubando assim que é datilografado, através de u à o pli adíssi oà siste aà i fo ti o.à Talà pe so age à o eçouà o oà atedo à deà carteira na linha Penha-Lapa, depois lançou-seàe à eg iosài o ili ios ,àseàap op ia doàdeà uma praia no litoral norte de São Paulo, expulsando e ameaçando de morte os caiçaras e vendendo o loteamento classe A para milionários americanos e europeus. Outra referência à grilagem de terras é feita pelo Frade João, que lá pelo fim do livro manda telegrama da Amazô iaà a isa doà esta à p esoà po à te à sidoà alu iadoà pelosà g ilei osà a os,à ueà i e à ti a doà te asà dosà í dios ,à ueà oà e e a à po à suaà atuaç oà e à defesaà destes.à ái daà ueà nenhum destes dois episódios sejam centrais em O Livro da Berenice, caracterizam e delimitam claramente os campos que estão em oposição nesta narrativa.

O simples resumo dos enredos ou os comentários sobre os livros de João Carlos Marinho até aqui realizados, bem como os estudos de críticos literários anteriormente

citados, apontam para a contínua relação da obra do autor com os intertextos histórico, político e social do Brasil daqueles anos. Buscamos, até aqui, tão somente estabelecer, em breves anotações, essa constante.

Berenice detetive, obra do corpus deste trabalho, será tratada mais detalhadamente

nos próximos segmentos deste capítulo. Os demais títulos do autor serão citados, se necessário, para elucidar aspectos desta obra.