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1.2 O NOIR AMERICANO: CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS

1.2.2 O pesadelo noir: como a sombra persegue o corpo

Os trabalhos mais importantes de Dashiell Hammett, como Safra Vermelha, O falcão

Maltês e A chave de vidro, foram publicados entre 1929 e 1932.

Mas Hammett não fez tudo sozinho. O noir foi criação de diversos autores que, a partir dos anos 20, publicaram regularmente um novo tipo de histórias nas páginas de Black

Mask, no estilo chamado hard-boiled, e mais tarde, nos anos 50, as narrativas criminais dos paperback originalsà deà to sà fo te e teà fatalistasà eà so ios.à Essasà hist iasà seà

diferenciavam em vários aspectos dos policiais clássicos ou de enigma da escola inglesa. Dentre esses autores poderíamos citar, além do próprio Hammett, e não necessariamente colaboradores de Black Mask, Carrol John Daly, Erle Stanley Gardner, James Cain, Raymond Chandler, Horace McCoy, Mickey Spillane e David Goodis.

E àseuàe saioà Theà“i pleàá tàofàMu de ,àCha dle ,à aà ealidade,àteo izouàso eà esta mudança, datando-a como iniciada com a obra de Hammett. Foi uma quebra abrupta da delicadeza do romance policial clássico, especialmente do crime baseado em razões psicológicas individuais como a avareza e a vingança. A corrupção social, especialmente entre os ricos, tornou-se então o tema central, junto com a brutalidade, um reflexo não só da mudança dos valores burgueses provenientes da Primeira Guerra Mundial, como do impacto do banditismo organizado.

(MANDEL, 1988, p. 63-64)

Diferentemente da narrativa de enigma, que se estruturava sobre duas histórias já ocorridas, a primeira, do crime, a segunda, da investigação, a narrativa noir funde as duas hist ias.à N oà à aisàu à i eàa te io àaoà o e toàdaà a ati aà ueàseà o ta,àaà a ati aà oi ideà o à aà aç o .à Oà noir u aà osà à ap ese tadoà so à aà fo aà deà e ias:à aà p ospe ç oà su stituià aà et ospe ç o .à Essaà o aà fo aà deà est utu a à o relato coloca o investigador ou protagonista no centro do acontecimento narrado, logo, ele não possui a imunidade do investigado àdaà a ati aàdeàe ig a.à [...]à ão sabemos se ele chegará vivo ao fi àdaàhist ia à TODO‘OV,à ,àp.à ;àp.à ;àp. .à

Também decorrente da estrutura de ação centrada no presente é a criação do efeito de suspense. Não há mais mistério a adivinhar, como nas narrativas de enigma, que partiam do efeito para a causa. Nosso interesse se centra aqui no que ainda vai acontecer.

O detetive não trabalha por diletantismo, mas pelo dinheiro. Ele é um profissional e, no mais das vezes, é um homem pobre. Sua visão de mundo, de modo geral, é carregada de amargura, cinismo e ironia.

Em contraste com o detetive das narrativas de enigma, ele não é infalível e pode, além de não solucionar o problema para o qual foi contratado, provocar os problemas.

Ao contrário dos infalíveis Holmes e Dupin, que, no limite, conseguiam desvendar um caso sem sair de uma poltrona, Spade [o detetive de Hammett] não acredita nessa possibilidade e afirma que, às vezes, nem mesmo um conjunto de indícios, quase completo e indiscutível, revela-se útil quando confrontado com o real. Ainda pensando na atividade do detetive em Hammett, ao contrário do clássico romance de enigma, onde a versão final dos fatos desvendados pelo protagonista é se p eà um exercício de desambiguação ,à uma explicação conclusiva t a uilizado a , temos que, como colocou S. Marcus, o relato, a explicação proposta pelo detetive ao fim da história,à não é mais passível – nem se destina a ser – do que as histórias que lhe foram contadas por todas as partes interessadas, culpadas ou inocentes,à oà de o e à deà seuà t a alho . Não existe verdade final, indiscutível, inquestionável, uma interpretação acima de qualquer suspeita. Toda interpretação é uma entre outras possíveis.

(REIMÃO, 1983, p. 60-61)

Ainda que a estrutura de história única da narrativa noir seja bastante diferente daquela de dupla história da narrativa policial clássica, não é sobre esse processo de apresentação diferente que se constitui a narrativa noir,à asàsi à uitoà aisà e àto oàdo meio representado, em torno de personagens e costumes particulares; por outras palavras, sua característica constitutiva são seusàte as à TODO‘OV,à ,àp.à .à

Há um célebre texto de Marcel Duhamel, que, em 1945, na França, apresentava ao público a série noire, um novo tipo de narrativa policial ambientada em seu país e calcada no novo tipo de romance policial norte-americano. A série também publicava, pela primeira vez em francês, as histórias norte-americanas que só então chegavam ao mercado francês, impossibilitadas antes pela guerra. A denominação da série acabaria por batizar a variante até no país de origem, e o texto enumera as suas mais importantes características:

O leitor desprevenido que se acautele: os volumes da Série Noire não podem, sem perigo, estar em todas as mãos. O amante de enigmas a Sherlock Holmes aí não encontrará nada a seu gosto. O otimismo sistemático, tampouco. A imoralidade, admitida em geral nesse gênero de obras, unicamente para contrabalançar a moralidade convencional, aí se encontra bem, como os belos sentimentos ou a amoralidade simplesmente. O espírito é raramente conformista. Aí veremos

policiais mais corrompidos do que os malfeitores que perseguem. O detetive simpático não resolve sempre o mistério. Algumas vezes nem há mistério. E até mesmo, outras vezes, nem detetive. E então?

Então resta a ação, a angústia, a violência – sob todas as suas formas especialmente as mais vis – a pancadaria e o massacre. Como nos bons filmes, os estadosà d al aà seà t aduze por gestos, e os leitores amantes da literatura introspectiva deverão fazer uma ginástica inversa. Há ainda o amor – de preferência bestial -, a paixão desordenada, o ódio sem perdão, todos os sentimentos que numa sociedade policiada só devem ser encontrados raramente, mas que aqui são moeda corrente, e são algumas vezes expressos numa linguagem bem pouco acadêmica, mas onde domina sempre, rosa ou negro, o humor.

(ALBUQUERQUE, 1979, p. 153)

Retomando a observação de Todorov de que aquilo que mais fulcralmente constitui as narrativas do tipo noir são os seus temas, e estes, como vimos, se relacionam com o

Zeitgeist da sociedade norte-americana relacionado com o pós Primeira Grande Guerra e

Grande Depressão, esta última ligada à quebra da bolsa de Nova York (1929), com seus consequentes desemprego, amargura e pessimismo, se pode observar, como faz Ernest Mandel, que, desde as origens,

[...] o romance policial norte-americano apresentou o crime como sendo muito mais integrado na sociedade como um todo do que entre os ingleses.

O tema é ainda a luta entre os interesses individuais e as paixões, embora os acontecimentos dos romances sejam menos artificiais, menos tangenciais à ordem burguesa como um todo, do que nos romances policiais ingleses. A paixão, a cobiça, o poder, a inveja, o ciúme e a propriedade não colocam apenas o indivíduo contra o indivíduo, mas crescentemente acarretam conflitos entre homens e grupos ou famílias, chegando até a revoltas contra o conformismo de classe. O crime torna-se um meio pelo qual se galga a escada social ou uma forma de se continuar a ser um capitalista apesar dos desastres financeiros. É a estrada que conduz do inferno ameaçado até a reconquista do paraíso. É o pesadelo que persegue o sonho americano como a sombra persegue o corpo.

(MANDEL, 1988, p. 79-80)