• Nenhum resultado encontrado

2.2 BERENICE DETETIVE: OBJETIVOS E MÉTODOS DE ESTUDO

2.2.5 Relações intertextuais em Berenice detetive

2.2.5.2 Os anões acendem lâmpadas

Não se restringem à maçã envenenada as referências, nesta narrativa, à Branca de Neve. Elas reaparecem quando Berenice e Abreu chegam ao chalé:

No jardinzinho da frente havia um tanquinho seco e, no meio do tanquinho, a estátua de um cupido que devia esguichar água pela boca, antigamente.

Na varandinha, as estátuas de três anões da Branca de Neve, fumando enormes cachimbos. A boca dos cachimbos era o lugar de porem lâmpadas.

Abreu e Berenice se colocaram ao lado da casa, perto de uma janela fechada por uma veneziana podre.

(MARINHO, 2002a, p. 112)

Tal jardinzinho, como sabemos, é a antecâmara do chalé de um dos vilões, no interior do qual, naquele momento, ele se encontra com os demais bandidos em conciliábulo.

A cena é pintada com elementos que ressaltam sua decomposição, exaustão e desertificação. A ninguém terá escapado que o cupido não cumpre mais sua função, ele já não esguicha mais água. A veneziana está podre. E nos cachimbos dos três anões de Branca de Neve se colocam lâmpadas.

N oà s o,à e t eta to,à l padasà ueà p o o e à is oà ouà isio a iedade ,à pala aà e te didaà a uià o oà aà i uezaà deà i agi aç o,à aà afinidade para com mundos utópicos, fa t sti os à FERREIRA,2004).

Além de caracterizar o local onde os criminosos se reúnem (lembremos que um deles tentou de fato matar a escritora com a maçã com arsênico e os outros dois o chantageiam por julgá-lo culpado), tais elementos de ambientação parecem-nos também se referir, jocosamente, à instrumentalização da literatura infantil: os anões de Branca de Neve, fortemente associados à literatura e à cultura dirigidas às crianças, como é notório, estão nesse inóspito jardinzinho sendo utilizados para uma finalidade que lhes é estranha, servindo aqui a um propósito meramente pragmático, e não mais fantástico ou ficcional.

2.2.5.3 Mordomo Abreu (e os direitos trabalhistas)

A aristocracia inglesa é tão esnobe e preguiçosa que até para cometer um crime manda que seu mordomo o faça.

Bernard Shaw

Vou procurar esse mordomo, ele vai vomitar

tudo que ele sabe.

Policial da delegacia de Pinheiros em Berenice detetive

A simples presença de um mordomo em Berenice detetive, bem como em outros livros da turma do gordo, desde o surgimento da personagem em O livro da Berenice, obra de 1984, já tem algo de paródico em relação ao gênero policial. Mordomos são abundantes no policial clássico inglês, caracterizados, às vezes, de modo sinistro, ou mesmo sendo os culpados dos crimes narrados ali. O abuso teria motivado S. S. Van Dine a formular, entre as suasà i teà eg asàpa aàes e e àest iasàpoli iais ,àu aà ueà eza aà oàfaze àdoà o do oà ouà deà ual ue à out oà e p egadoà do sti oà oà ulpado,à po à se à e pedie teà f ilà e à de asia .à‘ep oduzi osàaàsegui àaàtalà eg aà ºà àdeà“.“.àVa àDi e,à o àosà o e t iosà e à itálico) de Paulo Medeiros e Albuquerque:

C iadosà―àtaisà o oà o do os,à aletes,àgua dasàflo estais,à ozi hei osàeàafi sà―à não devem ser escolhidos pelo autor como culpados. Isso é uma questão de princípio, pois constitui solução fácil em demasia. Mostra-se insatisfatória, leva o leitor a achar que desperdiçou o tempo. O culpado deve ser a criatura de idida e teà e e edo aà ―à algu à ueà deà odoà o u à oà esta iaà so à

suspeita, pois se o crime foi obra sórdida de um trabalhador braçal, o autor não o deveria apresentar em livro. (Também discutível. S. S. Van Dine parte de um ponto

errado. O que ele chama criados ou pessoal doméstico pode ter seus problemas com a vítima como outro qualquer. Houve um tempo, no início do policial, fim da época vitoriana na Inglaterra, em que alguns autores apontavam, de preferência, elementos da criadagem como criminosos. A tal ponto que G. Bernard Shaw, certa feita o e ta do o fato, disse ue a a isto a ia i glesa é tão es o e e p eguiçosa ue até pa a o ete u i e a da ue seu o do o o faça . Hoje, mesmo nos romances ingleses, a criadagem entra na linha de possíveis suspeitos como todos os demais. Caso contrário seria uma limitação – como quer S.S. Van Dine – desse jogo entre o autor e o leitor. Por outro lado o próprio Van Dine, em seu romance O Caso Garden (The Garden Murder Case), faz de Miss Beeton, enfermeira da família e, portanto, bem próxima da criadagem, a criminosa.)

(ALBUQUERQUE, 1979, p. 27-28)

Dispensemos comentários sobre o que S. S. Van Dine pensa dos trabalhadores açaisàeàdaà iadage ,àeà olte osàpa aàaàpe so age àdeàJo oàCa losàMa i ho.à

Oà o do oàá eu,àe ide te e te,à à e oàdaà iadage àdaàfa íliaàdoàgo do,à representante esta da afluente classe média brasileira dos anos 1970. Mas é um mordomo sindicalizado, que conhece seus direitos e, às oito da noite, pontualmente, encerra o que quer esteja fazendo, nem que seja terminar de servir a última porção de um prato do jantar. No mais, ele veste-se descontraidamente, chegando a usar, na narrativa aqui analisada, uma arrojada saia masculina de lona, do Maneco Rezende, tem sonhos de surfar profissionalmente, no Havaí, gosta do Lou Reed, tem um Buggy Coyote e anda lendo Spinoza (o filósofo, não o delegado). Muito diferente de um de seus ancestrais literários, o mordomo Barrymore (Barrymore e Abreu são quase anagramas), que encontramos em O cão dos

Baskervilles, uma das aventuras de Sherlock Holmes, do escocês Conan Doyle:

Barrymore fora levar nossas malas aos quartos e voltara. Estava diante de nós, com o ar respeitoso de um criado bem treinado. Era um sujeito de aparência extraordinária, alto, bonito, com uma barba preta quadrada e feições pálidas e distintas.

―àQue à ueàoàja ta àsejaàse idoài ediata e te,àse ho ? ―àEst àp o to?

―àDe t oàdeàalgu sà i utos.àOsàse ho esàe o t a oà guaà ue teà osà ua tos.à Minha mulher e eu, Sir Henry, teremos muito prazer em ficar com o senhor, até que tenha organizado o serviço, mas verá que, sob as novas condições, a casa precisará de um grande número de empregados.

―àQueà o asà o diç es?

―àQue oàdize ,àse ho ,à ueà“i àCha lesàle a aà idaà uitoà eti adaàeà ueà sàdoisà dávamos conta de tudo. O senhor, naturalmente, há de querer companhia e precisará modificar o serviço.

―àQue àdize à ueà o àeàsuaà ulhe àp ete de àsai ? ―à“o e teà ua doàfo àdeàsuaà o e i ia,àse ho .

―àMasàsuaàfa íliaàest à o os oàh à iasàge aç es,à oàest ?àEuàse ti iaà uito,àseà começasse minha vida, aqui, quebrando uma velha tradição.

Creio ter distinguido sinais de emoção no rosto pálido do mordomo.

(DOYLE, 1981, p. 65-66)

Só distinguimos semelha tesà si aisà deà e oç oà oà osto à doà o do oà á euà quando este sai ruidosa e alegremente de férias, no fim do livro:

Ouviu-se uma buzinada de oitocentos mil decibéis que deixou todo mundo zonzo. Era o Buggy Coyote do Abreu, com a prancha de surf amarrada ao lado, que saía pelo portão.

―à T hauà p o s,à es a osà doà t a alho.à Oà e i oà est à deà f ias,à ouà su fa à e à Garopaba os trinta dias da lei, e levo um atestado médico frio aqui, que me garante mais quinze dias justificados.

(MARINHO, 2002a, p. 156)

Antes desta cena final, ao longo do livro, mordomo Abreu foi considerado suspeito pela polícia de Pinheiros, que, como veremos a seguir, certamente desconhece as regras de Van Dine:

O investigador disse ao subdelegado:

―àI te ogueiàoà o do o.àMost ouàu aàpe so alidadeài st elàeài atu a. ―àTe à a aàdeàd ogado?à―àperguntou o doutor José.

―àIssoàeleàte .àá daàdeàsaia.

―à Deà saia!à Éà u à a o al,à e ta e teà i iadoà e à o aí a,à dese a i houà aà menina. Assisti uma palestra do psiquiatra francês Claude Olievenstein. Ele mostrou que os menores, alunos de escolas, já usam normalmente a cocaína. Fiquei muito impressionado.

―àVouàsegui àoà“e api oà―àdisseàoài estigado .

―à“igaà―àdisseàoàsu delegadoà―àTe osà ueà o side a àtodasàasàpistas.àMasà ossoà caminho não é por aí, o Joaquim Serapião é homem honesto, considerado, essas crianças estão delirando. O caminho certo é investigar as amizades deste mordomo, os lugares que freqüentava, ouvir os alcagüetes. Vou pedir ajuda ao Secretário da Segurança para botarmos dez investigadores neste rumo.

(MARINHO, 2002a, p. 123)

A estupidez da polícia está presente nos livros do gênero desde Assassinatos da rua

Morgue, de Edgar Allan Poe e, em Berenice detetive, é elemento tanto de humor e paródia

quanto de crítica social.

Mordomo Abreu pode ser lido como paródia dos bem-comportados mordomos do policial clássico inglês, com os quais (como ocorre nas paródias) antagoniza ideologicamente.