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CAPÍTULO I: CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA: EVOLUÇÃO

2.2. Teorias éticas: qual o seu significado?

2.2.3. Biocentrismo

Para esta visão, a natureza é titular de direitos304, postulando um valor intrínseco

para a natureza e rejeitando uma diferença de tratamento entre seres humanos e não humanos.

A passagem de uma cosmovisão antropocêntrica para a ecocêntrica não se fez sem que decorresse muito tempo nos processos de mudança. Isto é patente na história das ciências que se ocupam do meio ambiente. Cabe registrar ainda que na Ética, que é um saber normativo de cunho filosófico – como também o direito em parte o é -, verificou-se uma evolução conceitual e prática bastante rápida305.

O biocentrismo pode ser definido como uma corrente filosófica, com reflexos diretos na esfera jurídica, pela qual o homem deixa de ser o centro do Universo e se depara com limites na utilização dos outros seres vivos que compõem a vida terrestre.

O respeito a outras formas de vida, derivado muitas vezes da aceitação de uma Ética Ambiental, passa a figurar como premissa básica na relação do homem com o seu entorno. Com o foco voltado para a “vida e todos os aspectos a ela inerentes, surgiu o biocentrismo. O valor vida passou a ser um referencial inovador para as intervenções do Homem no mundo natural”306.

O biocentrismo defende uma ética da vida, pois para esta corrente todo ser vivo, animado ou inanimado, tem valor moral em função das atividades biológicas que são normais à espécie a que ele pertence, nas condições normais para aquela espécie (incluindo crescimento, sobrevivência e reprodução). Todo ser vivo persegue seu próprio bem conforme a sua própria natureza, o que torna antiético impedir o desenvolvimento de qualquer ser vivo. Plantas e micro- organismos merecem respeito moral e temos obrigações éticas para com eles307.

Existe na doutrina muitas formas de biocentrismo, que se modificam conforme sua amplitude em defender as mais variadas formas de vida. O biocentrismo global, por exemplo, desenvolveu-se “a partir da ética da vida, na qual todo ser vivo, animal ou vegetal, está

304 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 23.

305 MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 113. 306MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 116. 307 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 64.

100 incluído”308. Logo, privilegia as totalidades e processos naturais irredutíveis aos seus

componentes.

Enquanto o biocentrismo mitigado privilegia determinadas formas de vida na qualidade de entidades individuais, decorrendo o valor do sistema ambiental do valor intrínseco de cada indivíduo vivo, o biocentrismo global confere a consideração moral à coletividade ecológica, e não a cada indivíduo individualmente, reconhecendo a importância dos conjuntos sistêmicos como um todo309.

Trata-se de um biocentrismo mais radical, “que parte do reconhecimento da natureza como um conjunto interdependente e do lugar do ser humano nesse conjunto, para chegar a normas em relação ao meio ambiente”310.

Valoriza a vida enquanto tal, mas não individualmente, e sim como totalidades complexas e estruturais de processos bióticos, tem como ponto de referência não os indivíduos, mas a comunidade biota.

Compreende o ser humano como um elo a mais no encadeamento vital dos ecossistemas. Ele não detém um papel fundamental na comunidade biótica. Depende os mesmo processos vitais como qualquer ser vivo.

A fragilidade dessa tendência é a redução biológica do ser humano e o esquecimento de que o ser humano diferente dos outros seres vivos tem um confronto cultural com o seu meio ambiente. Ele constrói um entorno humano ao lado e em relação com o meio natural. Esse entorno cultural é uma necessidade do ser humano e não necessariamente está em dissonância com o ecossistema natural311.

Essa corrente é diferente do Ecocentrismo ou Holismo, para qual as espécies, processos e ecossistemas naturais têm valor moral já que também têm uma tendência natural para perseguir seu próprio bem. Em função disso, é razoável falar de seu “bem-estar” e “saúde”,

308 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma

titularidade para além dos seres humanos, p. 55.

309 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma

titularidade para além dos seres humanos, p. 55.

310 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 26. 311 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 79.

101 ou mesmo reconhecê-los como “vivos”. Uma espécie como um todo, uma montanha e o nosso planeta merecem respeito moral e temos obrigações para com eles312.

Apesar das inúmeras nomenclaturas para a teoria biocêntrica, o que todas têm em comum é o alargamento da dignidade que passar a abranger os animais. Mas, pode-se dizer que o pensamento do direito dos animais, insere-se na visão do biocentrismo mitigado (ou ecologia superficial), pois se considera a ética de cada animal de forma separada e individual, não envolvendo o todo. Nesse sentido, Daniel Braga Lourenço assevera que o foco da doutrina dos direitos dos animais está na “ética animal” e não na “ética da vida” (que privilegia o todo em detrimento da individualidade)313.

A concepção biocêntrica se dividiu com o passar dos anos. Surgiu uma visão biocêntrica radical, também denominada ecologia profunda, advinda do termo inglês deep ecology, criada por Arne Naess. Após a segunda guerra mundial o impacto ambiental provocado pela sociedade industrial começou a chamar a atenção. Frente a isso, Naess denominou de ecologia superficial as ciências ambientais que se preocupavam principalmente em remediar os sintomas causados pelo desgaste ambiental, controlar a contaminação e procurar formas sustentáveis de extração das reservas naturais.

Em contraste com essa ecologia superficial ele desenvolveu a filosofia da ecologia profunda que busca não só tratar os sintomas, mas mudar as causas culturais que causam degradação ambiental, criticando os sistemas políticos, estilos de vida e valores éticos da sociedade industrial.

A ecologia profunda defende que toda vida, por si só, deve ser preservada, ou seja, cada vida tem um valor intrínseco que lhe é inerente, não podendo ser retirada por outro ser, prega a mudança da perspectiva antropocêntrica, a redução do consumo, da produção de bens e serviços, que devem estar em desconformidade com a necessidade da sociedade e não com a

312 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 64. 313 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas.

102 rentabilidade. Socialmente não deve haver uma hierarquia na qual o homem se coloque em escala superior ou destacada, mas, sim, uma nova concepção de solidariedade314.

O movimento da Ecologia Profunda foi bem recebido e ganhou considerável adesão no meio acadêmico estadunidense, que se destacou com nomes como Bill Devall, Alan Drengson, George Sessions, Michael Zimmerman e Fritjof Capra.

Para Naess, a Deep Ecology consiste em formular questões mais profundas, num despertar de uma consciência ecológica, interrogando:

Porque julgamos tão importantes o crescimento económico e níveis elevados de consumo? A resposta convencional seria apontar para as consequências económicas da ausência de crescimento. Mas [na Deep Ecology] perguntamos se a sociedade actual satisfaz necessidades humanas básicas como o amor e a segurança, e o acesso à Natureza e, ao fazê-lo, pomos em causa os pressupostos subjacentes à nossa sociedade.

Perguntamos que sociedade, que educação, que forma de religião, são benéficas para toda a vida no planeta como um todo, e perguntamos mais ainda que precisamos nós de fazer de modo a efectuar as mudanças necessárias315.

Portanto, para a deep ecology há soluções para a crise ambiental, mas estas exigem uma mudança radical das percepções, pensamento e valores sociais. O desafio lançado por esta nova perspectiva é o estabelecimento de um equilíbrio dinâmico entre a auto-afirmação e a integração. Ela propõe, então, uma expansão do “eu” até a identificação com a natureza, sob a alegação de que o cuidado fluirá naturalmente se o “eu” for ampliado e aprofundado de modo que a proteção na natureza seja sentida e concebida como proteção dos próprios seres humanos. Sobre este aspecto, Capra destaca que a implicação desta proposta é de que “o vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e o comportamento correspondente não é uma conexão lógica, mas psicológica”316.

314 CHALFUN, Mery. Paradigmas filosóficos-ambientais e o direito dos animais. Revista brasileira de direito

animal, Salvador, v. 6, ano 5, jan./jun. 2010, p. 209-246.

315 Naess apud Devall, B. et Sessions, G. Ecologia Profunda – Dar Prioridade à Natureza na Nossa Vida.

Águas Santas: Edições Sempre-em-pé, 2004, p. 95.

316 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 29.

103 Defende uma inversão completa de perspectiva, não é a terra que pertence ao homem, é o homem que pertence à terra, como acreditavam os antigos317. O homem deixa de

ser a medida de todas as coisas, é descentrado e recolocado na linha de uma evolução, sem qualquer privilégios. Adota-se o ponto de vista da natureza, e se reconhece o direito subjetivo dos animais318.

A ecologia profunda afirma que não se pode reduzir a crise ambiental exclusivamente a um conflito ético, pois ela requer uma mudança de paradigmas conceituais e na percepção da configuração do mundo. É preciso superar a concepção do ser humano como espécie dominante e separa do mundo319.

Por mais que no discurso ambientalista – jurídico e não jurídico – seja sempre defendida com entusiasmo, segundo Sarlet e Fensterseifer “tal entendimento não reflete as construções jurídicas e respectivos mecanismos normativos dos quais dispomos hoje para promover a tutela e promoção do meio ambiente”320.

Os autores buscam uma “abordagem conciliatória e integradora dos valores humanos e ecológicos, como duas facetas de uma mesma identidade jurídico-constitucional”321.

A principal crítica à ecologia radical diz respeito a sua operacionalização, uma vez que, é incontroverso o fato de que o Direito foi feito pelo e para o homem, dessa forma, tendo- se a natureza como sujeito de direito, isto é, a “natureza sujeito”, toda e qualquer forma de reivindicação de direitos para a natureza será feita com a intervenção humana, o que por si só descaracteriza o naturalismo defendido pela perspectiva ecocentrista.322

Ademais, há quem defenda que o “abuso” da referência aos direitos fundamentais e a proliferação de sujeitos de direito realizadas pela deep ecology poderão implicar numa perda

317 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 13. 318 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 14. 319 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 33.

320 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e

proteção do ambiente, p. 42.

321 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e

proteção do ambiente, p. 43.

104 de crédito de ambos, como numa inflação monetária, onde a abundância de um signo implica, inevitavelmente, a sua desvalorização323.

Por fim, Ost destaca que se no antropocentrismo clássico tínhamos a dualidade sem qualquer ideia das relações e das identidades, com a hierarquia e exploração em primazia, na deep ecology nós herdamos a unidade sem qualquer ideia das diferenças, com o confusionismo e o reducionismo em primazia324, o que significa dizer que, para o autor, ambas as correntes

perdem-se no erro do radicalismo.