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Do animal máquina ao pior dos vícios: a crueldade

CAPÍTULO I: CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA: EVOLUÇÃO

1.4. Do animal máquina ao pior dos vícios: a crueldade

Mas foi, sem dúvidas, com René Descartes (1596-1650), filósofo racionalista francês, que a crueldade com os animais chegou ao seu ponto mais alto.

O autor defendeu a tese mecanicista da natureza animal, influenciando, até hoje, o mundo da ciência experimental. Para ele, os animais são destituídos de qualquer dimensão

69 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 286. 70 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 287.

71 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais

(1500-1800), p. 29.

72 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais

30 espiritual, e embora dotados de visão, audição e tato são insensíveis à dor, incapazes de pensamento e consciência de si73.

Em sua obra clássica Discurso sobre o Método, afirma que o método é o caminho para garantir o sucesso do conhecimento. O conhecimento que o autor buscava era baseado na razão, fazia parte da corrente filosófica dos racionalistas. A razão para ele era uma característica que apenas os seres humanos possuíam, formulando o argumento “penso, logo existo”. Pensava que os animais não possuíam nenhuma razão, pois não eram capazes de pensar, de raciocinar. E uma prova de que não possuem nenhuma razão era a sua incapacidade de falar74.

Segundo Naconecy75, Descartes entendia que os animais não eram sujeitos morais

porque eram desprovidos de consciência:

Associou a moralidade à consciência, e esta às capacidades intelectuais superiores, como a racionalidade e a linguagem. Para Descartes, já que os animais não possuem uma mente (ou alma racional), eles não podem pensar, ter consciência e linguagem; portanto, eles não podem ter a experiência do sofrimento. Em outras palavras, os animais não podem sofrer porque eles não têm condições mentais para tanto. Eles são organismos não-pensantes, que operam apenas por instinto. A perspectiva cartesiana sustenta que, dado que os animais são irracionais ou desprovidos de consciência, e a dignidade depende inteiramente da razão, os animais não têm qualquer importância moral76.

Sob influência da mecânica, Descartes sustentou que tudo que consiste em matéria é governado por princípios mecanicistas. Desta forma, para Descartes os animais são meras máquinas, autômatos77. Não sentem prazer, nem dor, nem nada. Com esta teoria, os estudos

científicos em animais se tornaram amplamente difundidos.

Era um pensador claramente moderno. Mas era também cristão, o que influenciou suas convicções em relação aos animais. Afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio. Um problema óbvio que esta perspectiva colocava prendia-se com a nossa própria natureza. O corpo humano é composto por matéria e faz parte do universo físico. Portanto, podia pensar-se

73 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito. Tradução Pietro Nassetti. São

Paulo, Martin Claret, 2006, p. 57.

74 DESCARTES, René. Discurso sobre o método. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 63-4. 75 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 68. 76 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 68. 77 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 57.

31 que os seres humanos também deveriam ser máquinas cujo comportamento era determinado pelas leis da ciência78.

Mas conseguiu evitar a conclusão herética e desagradável de que os humanos são máquinas introduzindo a ideia de alma. Descartes afirmou haver não um, mas dois tipos de coisas no universo: as coisas do espírito ou alma e as coisas de natureza física ou material. Os seres humanos têm consciência, e a consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência com a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, disse Descartes, apenas os seres humanos possuem alma79.

Assim, na filosofia de Descartes, a teoria cristã de que os animais não têm almas imortais conhece a consequência extraordinária de eles também não terem consciência. Eles são, afirma Descartes, meras máquinas, autômatos. Embora possam guinchar quando são cortados por uma faca ou contorcer-se na tentativa de escapar ao contato com um ferro quente, isto não significa que eles sintam dor nestas situações, afirmou Descartes. São regidos pelos mesmos princípios que regem o funcionamento de um relógio e, se as suas ações são mais complexas do que as de um relógio, é porque o relógio é uma máquina feita pelos humanos, ao passo que os animais são máquinas infinitamente mais complexas, tendo sido criadas por Deus80.

Foi nesta época que a prática de experimentação em animais vivos se disseminou na Europa, uma vez que não existiam anestesias, estas experiências provocaram comportamentos nos animais que indicariam, à maior parte das pessoas, um sofrimento de dor atroz. A teoria de Descartes permitia que os experimentadores ignorassem quaisquer escrúpulos que pudessem sentir nestas circunstâncias. O próprio Descartes81 dissecou animais vivos como

forma de aumentar o seu conhecimento sobre anatomia, e muitos dos fisiólogos mais destacados do seu tempo declararam-se cartesianos e mecanicistas.

O mais forte argumento a favor da posição cartesiana era que ela constituía a melhor racionalização possível para o modo como o homem realmente tratava os animais. A visão alternativa deixava espaço para a culpa do homem, ao reconhecer que os animais podiam sofrer e suscitava dúvidas sobre os motivos de um Deus permitir que os bichos sofressem tais misérias.

78 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. 79 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. 80 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 291.

32 Mesmo porque admitir que os animais tivessem sensações era fazer do comportamento humano algo intoleravelmente cruel82.

Mas Descarte encontrou opositores de peso. É de Montaigne (1533- 1592) que partem as primeiras críticas dentre os filósofos modernos contra a prática de atos cruéis contra animais. Em seu livro Ensaios, disse que a virtude é coisa diferente e mais nobre que as inclinações para a bondade que nascem em nós e que entre os vícios havia um que detestava particularmente: a crueldade. Montaigne dizia que aos homens devemos justiça, mas aos animais devemos solicitude e benevolência:

Mas, ainda que tudo seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede83.

Para ele a falha que temos em nos comunicar com os animais tanto pode ser atribuída a nós, humanos, como aos animais. Reconhecia que os animais podem nos achar tão irracionais como nós os achamos. Os animais entendem-se perfeitamente, e não só os da mesma espécie, mas também os de espécie diferente. Quanto aos animais que não têm voz, valem-se de movimentos com significações específicas. Em seu entendimento a maior parte do trabalho realizado pelos animais é superior à dos humanos, que não conseguem imitá-los com êxito84.

O autor afirmou que entre os vícios, o que mais detestava era a crueldade85.

Esclarece o filósofo que os sanguinários com os animais revelem uma natureza propensa à crueldade, “quando se acostumaram em Roma com os espetáculos de matanças de animais, passaram aos homens e aos gladiadores”86. Também se declarou abertamente contra a caça de

animais, achando tal atitude muito desagradável e os caçadores sanguinários:

82 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais

(1500-1800), p. 45.

83MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial,

1972, p. 208.

84 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 215. 85 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 205. 86 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207.

33 Quanto a mim, nunca pude sequer ver perseguirem e matarem um inocente animal, sem defesa, e do qual nada temos a recear, como é o caso da caça ao veado, o qual, quando sem fôlego e sem forças, e sem mais possibilidade de fuga, se rende e como que implora nosso perdão com lágrimas nos olhos: ‘gemendo ensanguentado pede mercê’. Um tal espetáculo sempre me pareceu muito desagradável. Se pego algum animal vivo dou-lhe a liberdade87.

O filósofo deixou claro que se nossa suposta superioridade poderia permitir que aprisionássemos os animais, também permitiu que escravizássemos outros seres humanos, o que demonstra a generosidade superior dos animais, que nunca escravizaram outros de sua espécie88.

Salientou que os franceses se julgavam superior aos estrangeiros por não compreenderem sua língua, seus trajes e seu comportamento, e concluiu que “condenamos tudo o que nos parece estranho e também o que não compreendemos. E por esse prisma julgamos os animais”89. Por fim, ponderou o autor que a guerra, a mais pomposa das ações humanas, que

tantos se vangloriavam, ao invés de provar sua superioridade só demonstrou sua imperfeição. “Em verdade, a ciência de nos entrematarmos, concorrendo para a destruição da espécie, não me parece uma prerrogativa que os bichos nos possam invejar”90. E deixou evidente que “não

é por virtude de um raciocínio judicioso, mas unicamente por orgulho e obstinação que nos sobrepomos aos animais e nos afastamos de sua companhia”91.

Outro autor que criticou duramente Descartes foi Voltaire (1694-1778), em seu Dicionário Filosófico. Argumenta que a alma é aquilo que anima. Não sabemos mais que isso, pois nossa inteligência é limitada92. Critica o fato de alguns filósofos atribuírem alma vegetativa

às plantas e alma instintiva aos animais, pois se neles existe um ser, deve haver uma forma, que é a vida. “Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa.

87 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 88 MONTAIGNE, Michel. Ensaiosp. 219. 8989 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 89 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 221. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 224. 91 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 229.

92 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

34 Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens ideias combinadas, e dizes espírito”93.

Ninguém sabe o que é o ser chamado espírito. Para ele, Deus nos deu a inteligência não para penetrar na essência das coisas, mas para nos conduzirmos pela senda do bem. “Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.94

A discussão sobre a existência ou não da alma do animal não faz sentido, uma vez que o homem não tem base para definir o que é alma. Para Voltaire, Deus é a alma que anima toda vida. Assim, contesta o pensamento de Descartes sobre os animais com os argumentos que passo a transcrever pela sua importância:

IRRACIONAIS

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam!

Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige?

[...]

Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrar- te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum?

93 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015.

94 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

35 Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.

Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-me- eis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol.

As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois da Sorbonne ninguém.

As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos, nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes o que é alma material: precisam convir em que é a matéria que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material... Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à matéria. E não saem desse círculo.

[...] Não podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal: a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é uma substância nem corporal nem incorporal.

A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole. Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar.

[...] Tinha razão o filósofo que disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe95.

Estes e outros pensadores, líderes e figuras religiosas defenderam a bondade para com os animais. Mas a sistematização e o aprofundamento dos argumentos produzidos em torno do estatuto moral dos animais só ocorreu nas últimas décadas do século XX. Formou-se uma nova área da filosofia, a chamada Ética Animal, cuja literatura partilha uma ideia orientadora: os animais possuem direitos. Pugna-se, desse modo, pela implementação de um respeito igualitário dirigido a eles.

95 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

36 Algumas das figuras de proa da Ética Animal contemporânea são os filósofos: Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione amplamente reconhecidos como grandes defensores atuais dos direitos dos animais. Mas antes de analisar os três filósofos mencionados é importante mencionar rapidamente Humphry Primatt e Jeremy Bentham, os quais construíram a base para a argumentação filosófica em pró dos animais que temos hoje.