• Nenhum resultado encontrado

Dignidade para além da vida humana

CAPÍTULO I: CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA: EVOLUÇÃO

CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS ANIMAIS

4.2. Dignidade para além da vida humana

É de conhecimento de todos que a matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana tem sido conduzida essencialmente pelo pensamento de Immanuel Kant. Suas ideias servem de base para a grande maioria das conceituações jurídicas constitucionais da dignidade humana500.

Para Kant501 o ser humano não pode ser empregado como simples meio (não é um

objeto), mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, é o sujeito) em qualquer relação. Isso se deve ao fato que o ser humano possui valor intrínseco. Já que a ideia de fim em si mesmo está diretamente vinculada às ideias de autônima, de liberdade, de racionalidade e de autodeterminação inerentes à condição humana502.

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade.503

499 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/12/1565726-macaco-do-zoo-tambem-tem-

direitos-humanos-declara-corte-argentina.shtml>. Data de acesso: 04 de março de 2013.

500 Como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres

e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

501 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo;

Abril Cultural, 1974, p. 229.

502 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade

da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os

direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessário. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p.

175-205.

503 FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A dignidade e o animal não-humano. In: Molinaro, Carlos Alberto;

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade

da vida e os direitos fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum,

175 Assim, a dignidade da pessoa humana encontra-se como pedra basilar da edificação constitucional do Estado Democrático de Direito. Em suma, todo um leque de posições jurídicas subjetivas e objetivas, com a função de tutelar a condição existencial humana contra quaisquer violações do seu âmbito de proteção, assegurando o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada ser humano.

Mas o que significa a dignidade da pessoa humana? Para Sarlet seria:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos504.

Neste momento, a reflexão que se propõe é a necessidade do reconhecimento da dignidade da vida em geral, através da superação do paradigma teórico Kantiano, pois é possível questionar o excessivo antrocêntrismo que informa tanto o pensamento kantiano505, quanto a

tradição filosófica ocidental de um modo geral. Ressalta-se que este tema é complexo e existem as mais diversas posições sobre o assunto, tanto a favor, como contra506.

504 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62.

505 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. A. Pinto de Carvalho. São Paulo:

Editora Nacional, 1964. p. 436. A razão refere assim toda máxima da vontade, concebida como legisladora universal, a toda outra vontade, e também a toda ação que o homem ponha para consigo: procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela ideia da dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele próprio. No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade. [...] Ora, a moralidade é a única condição capaz de fazer com que um ser racional seja

um fim em si, pois só mediante ela é possível ser um membro legislador no reino dos fins. Pelo que, a moralidade, bem como a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que possuem dignidade.

506 “Tendo em vista o exposto, é melhor evitar o uso da expressão “dignidade animal” para expressar o valor que

os animais inegavelmente possuem. Primeiro porque esse valor não é intrínseco, como pretendido pelos animalistas, pois os animais não o compreendem; somente nós o percebemos, e mesmo assim em níveis tão variados que um consenso humano sobre a disponibilidade de suas vidas e os termos de sua utilização parece bastante improvável. Segundo porque a expressão carrega consigo uma carga axiológica indelevelmente ligada à situação existencial dos seres humanos, cujas possibilidades vitais são qualitativamente superiores às dos animais, porque sempre biográficas e abertas à liberdade. Ademais, é impróprio pretender que alguns animais são pessoas.

176 Barroso acredita que o valor intrínseco é o elemento ontológico da dignidade humana e se opõe a valores atribuídos ou instrumentais. A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de se comunicar são as características que conferem singularidade à espécie humana e dão aos humanos um status especial no mundo, distinto de outras espécies.507

Além disso, é, também, a origem de um grupo de direitos fundamentais, no qual se encontram: o direito à vida; o direito à igualdade perante e sob a lei; e o direito à integridade física e mental. A autonomia, segundo o autor, é o elemento ético da dignidade humana e é tida como base da vontade livre dos indivíduos, no sentido de autodeterminação. São condições da existência de autonomia: razão (capacidade mental de fazer decisões informadas); independência (ausência de coação, manipulação e carência severa); e escolha (a real existência de alternativas). Assim, é a capacidade de tomar decisões pessoais e escolhas na vida, baseadas na concepção de “bom” do próprio sujeito, sem influências externas indevidas.

A dignidade vista sob os preceitos clássicos deixa à parte sua dimensão ecológica e, por isso, cria-se uma dificuldade de concretização dos fundamentos da vida. Registra-se, dessa forma, a ponderação de Bittencourt:

O progresso material e o avanço tecnológico característicos da era moderna não foram acompanhados de sua contraparte ética. Com efeito, adquirimos um extraordinário índice de desenvolvimento técnico, mas nem por isso conseguimos desenvolver um padrão de organização social que efetivamente possa ser adjetivada como ‘civilizada’: tal padrão se realizaria, a rigor, somente a partir do estabelecimento da qualidade de vida, da convivência harmoniosa entre os indivíduos e a realização pessoal no mundo do trabalho e da própria existência privada.508

Ao contrário do que sustentam certos bioeticistas, a pessoa é uma aquisição axiológica e não apenas um condensado de características racionais que culminam na autoconsciência. De modo que, mesmo que alguns animais possuam autoconsciência e que alguns humanos não, é o reconhecimento que ofertamos aos segundos como seres de igual valor que os converte em pessoas, reconhecimento que, negado aos primeiros (inclusive pelos animalistas), os afasta de uma dimensão propriamente pessoal da existência”. LACERDA, Bruno Amaro. Animais como pessoas e “dignidade animal”. Scientia Iuris, Londrina, v.17, n.1, p.49-64, jul.2013.

507 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the

transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível

em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012. p. 32.

508 BITTENCOURT, Renato Nunes. Homem e natureza: um divórcio ético. Revista Filosofia, São Paulo, ano

177 Nesse contexto, a dignidade (da pessoa) humana constitui um conceito submetido a um permanente processo de reconstrução, cuidando-se de uma noção histórico-cultural em permanente transformação quanto ao sentido e alcance, o que implica sua permanente abertura aos desafios postos pela vida social, econômica, política e cultural, ainda mais em virtude do impacto da sociedade tecnológica e da informação.509

Mas, quando se fala em dignidade humana, também é possível se falar em dignidade animal, conferindo-os um valor inerente, ou seja, a fauna deixa de ser objeto ou um bem e passa a ser sujeito de direitos. A atribuição de dignidade aos outros seres vivos transporta a ideia de respeito e responsabilidade que deve pautar o relacionamento humano com as demais espécies animais510.

Se a dignidade consiste em um valor próprio e distintivo que nós atribuímos a determinada manifestação existencial – no caso da dignidade da pessoa humana, a nós mesmos -, é possível o reconhecimento do valor “dignidade” como inerente a outras formas de vida não-humanas511.

A dimensão ecológica da dignidade impõe restrições ao exercício de outros direitos fundamentais, fato que Canotilho denomina de “sentido jurídico-constitucional dos direitos fundamentais ecológicos”.512 Em uma obra recente, por exemplo, Luís Roberto Barroso admite

a possibilidade de que os animais tenham dignidade:

O que poderia ter sido suscitado, isso sim, seria o reconhecimento de dignidade aos animais. Uma dignidade que, naturalmente, não é humana nem deve ser aferida por seu reflexo sobre as pessoas humanas, mas pelo fato de os animais, como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria513.

509 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a

Constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 38.

510SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade

da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral, p. 191.

511SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade

da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral., p. 194-195.

512 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. In:

FERREIRA, Helinie Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (Orgs.). Estado de direito

ambiental: tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 31-46, p. 37.

513 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A

178 Para Barroso “há uma percepção crescente (...) de que a posição especial da humanidade não autoriza arrogância e indiferença frente à natureza em geral, incluindo os animais não-racionais, que têm seu próprio tipo de dignidade.”514

(...) porque tem o valor intrínseco em seu núcleo, a dignidade humana é, em primeiro lugar, um valor objetivo que não depende de nenhum evento ou experiência, e, assim, não necessita ser concedido nem pode ser perdido, mesmo em face do comportamento mais reprovável. Também, como consequência, a dignidade humana não depende da razão, estando presente no recém-nascido, na pessoa senil ou em pessoas incompetentes em geral515.

A adoção pelo antropocentrismo alargado pela Constituição Brasileira de 1988 pode ser o primeiro rumo à mudança de paradigma. Caminha-se para que seja reconhecido a todos os seres vivos um valor intrínseco conforme uma leitura mais ecológica do caput do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil. Borges e Oliveira ressaltam que “a vida humana continua sendo o critério ético fundamental, mas é preciso reconhecer que ela não existe isoladamente, e mais: que ela se inter-relaciona com todas as outras formas de vida do planeta”516.

Os juristas complementam o posicionamento acerca da crueldade contra os animais afirmando que a concepção de ampliação da dignidade humana para a dignidade ecológica reside na:

[...] ideia de dever moral de um tratamento não-cruel dos animais que deve buscar o seu fundamento não mais na dignidade humana ou na compaixão humana, mas sim na própria dignidade inerente às existências dos animais não-humanos. Tal reflexão pode ser ampliada para a vida em termos gerais, não se limitando à esfera animal.517

514 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the

transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível

em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012, p. 38.

515 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the

transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível

em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012.

516 BORGES e OLIVEIRA apud BITTENCOURT, Renato Nunes. Homem e natureza: um divórcio ético.

Revista Filosofia, São Paulo, ano V, ed. 62, p. 14-21, ago. 2011.

517 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade

da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade da vida e os direitos

fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum,

179 Seguindo essa mesma linha argumentativa, é possível afirmar que ao proibir as práticas cruéis ou que possam levar os animais à extinção a Constituição Federal vislumbra nessas condutas um conteúdo de indignidade. E mais, esse enunciado revela que ao se proteger a fauna inclusive contra a ação humana, a Constituição reconhece que os animais merecem uma tutela, o que vai muito além de uma visão meramente instrumental da vida animal. Ao reconhecer que os animais e a flora possuem uma função ecológica, a ordem constitucional reconhece a vida animal como fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo kantiano.

Nesse sentido, Morato Leite discorre com uma visível esperança de novas possibilidades hermenêuticas:

Mas como a interpretação da norma reflete muito do que se colhe da realidade cultural, incubadora dos nossos valores éticos, quem sabe um dia se verá no ‘todos’ do artigo 225, caput, uma categoria mais ampla e menos solitária do que apenas os próprios humanos.518

Mesmo diante do não reconhecimento de titularidade de direitos aos animais, seja a partir de uma concepção civilista – que por ora parece em descompasso com o Estado Socioambiental –, ou seja, derivada dos próprios fundamentos dessa espécie de Estado, não é possível negar a proteção aos animais, principalmente, em virtude do valor da vida que esses detêm. O fundamento desta proteção encontra sede na adoção do antropocentrismo alargado pela Constituição de 1988, o qual rejeita a visão puramente econômica e instrumental dos bens ambientais. Passa a imperar a ideia de interdependência entre homens e natureza, um dos objetos de análise da Ética Ambiental.

Para Trajano “ser cruel é tomado como uma violação da própria dignidade, cristalizando progressivamente uma fórmula da personalidade desses seres a informar que existe uma proibição direta ao tratamento insuficiente ou excessivo dirigido aos animais”519.

518 LEITE, José Rubens Morato et al. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, José

Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 77-458, p. 125.

519 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber

180 O autor ainda continua: a diferença e constatação de que os não-humanos têm um valor e não meramente é algo valorado molda a Carta de 1988 como um documento ímpar no cenário mundial, a figurar como um verdadeiro Estatuto Jurídico em favor de direitos para os animais520.

Evidencia-se que os seres humanos partilham uma relação moral comum com os demais seres do planeta, tendo deveres morais com eles, uma vez que conscientes de sua dignidade e de sua consideração, têm a obrigação de tratar os outros seres através do mesmo status que almejam.

A dignidade animal renova a relação entre o sistema de normas e o sistema de valores sociais, direcionando uma obrigação moral direta para com os animais, um dever de pós-humanidade, em que aqueles que o sentem não são os principais responsáveis por tal sofrimento, não sendo certo tratá-los indignamente, visto terem direitos, um crédito moral de não serem tratados de tal modo. Há um verdadeiro reconhecimento do valor inerente dos animais não-humanos, asseverando seu status de sujeito-de-uma-vida521.

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978 refere-se à dignidade animal em seu artigo 10º, embora não conceitue a palavra: “1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem. 2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal”.

Para que a dignidade seja possível de ser dada a outros seres vivos precisa ser conceituada de forma subjetiva, sendo ampliada através da aceitação do binômio dignidade/respeito. Dizendo que algo é digno de respeito estaremos outorgando dignidade àquilo que merece ser respeitado. O conceito subjetivo de dignidade pode assim ser atrelado ao animal não-humano, entendendo-o como partícipe da biosfera, como ser passível de respeito pelo papel que exerce nesse sistema global devendo ter sua integridade respeitada e defendida522.

Assim, pode-se dizer que em relação aos animais não humanos a dignidade residiria no fato do animal ser portador de valor inerente, em razão disso, ter interesse em não ser

520 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber

pós-humanista, p. 57.

521 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber

pós-humanista, p. 57.

181 agredido. Tratar bem os animais e respeitas seus direitos amplia a consciência e a esfera de consideração moral humana.523

O que se buscou demonstrar é que estabelecer regras jurídicas em favor dos animais envolve muito mais a moral e a ética do que propriamente o direito. E mais, a “aplicação do princípio da dignidade para além da vida humana representa um mínimo de cuidado para com os demais seres vivos, cuidado esse que extrapola a existência de interesse ou utilidade desses animais não humanos, mas sencientes em relação ao ser humano”524.

Quanto a Ingo Sarlet, pode-se concluir de forma resumida que, não obstante o conteúdo multidimensional da dignidade, segundo o autor, a dignidade da pessoa humana funda-se eminentemente na autonomia do ser humano, decorrente da sua racionalidade.

Barroso, por sua vez, além da autonomia introduz outro componente da dignidade, o de valor intrínseco, que, como visto, demanda inteligência, sensibilidade e capacidade para se comunicar. Os dois autores reconhecem que os animais possuem dignidade.

Recentemente um grupo de destacados cientistas emitiu a “Cambridge Declaration on Consciousness”, como resultado da Francis Crick Memorial Conference on Consciousness in Human and non-Human Animals, na Churchill College, da Universidade de Cambridge, onde se lê:

(...) evidências convergentes indicam que animais não-humanos possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados conscientes assim como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que humanos não são singulares na posse de substratos neurológicos que geram consciência. Animais não-humanos, incluindo mamíferos e aves, e muitos outros, inclusive polvos, também possuem esses substratos neurológicos.525

523 FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A dignidade e o animal não-humano, p. 143.

524 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais: proteção ou legitimidade do comércio da vida?.

In: Molinaro, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 286.

525 “Convergent evidence indicates that non-human animals have the neuroanatomical, neurochemical, and

neurophysiological substrates of conscious states along with the capacity to exhibit intentional behaviors. Consequently, the weight of evidence indicates that humans are not unique in possessing the neurological substrates that generate consciousness. Nonhuman animals, including all mammals and birds, and many other creatures, including octopuses, also possess these neurological substrates”. LOW, Philip et. al. The Cambridge

Declaration on Consciousness. Cambridge, 2012. Disponível em: <http://fcmconference.org/img/Cambridge

182 O importante a se observar de tudo isso, é que não é possível afirmar que os animais que são frequentemente explorados em laboratórios, e de tantas outras formas, não se encaixam no critério de valor intrínseco de Barroso.