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BOLETINS DE OCORRêNCIA: REPRESENTAÇõES, DISCURSOS E ImAGENS

É importante compreender que o relato dos boletins de ocorrência é um registro realizado por um profissional, a partir da interpretação do que foi narrado pelos homens ou denunciado por suas companheiras. Nesse sentido, possui limitações tanto porque sua descrição é pobre, como pelo fato de que sobre os relatos se faz interpretações, de modo

que, muitas vezes, elas só permitem sentidos de aproxima- ção a respeito dos fatos denunciados. Este ato de narrar na forma escrita, é uma interpretação que passa pelo modo de entender e de escrever a respeito do conteúdo da narrativa apresentada pelas mulheres sobre o que os homens fizeram. Estes homens, neste tipo de fonte, estão sendo produzidos pelo contar dos fatos, da parte da vítima e, pela costura in- terpretativa escrita, da parte dos técnicos dos serviços do atendimento, principalmente, pelo profissional que escuta as mulheres, que as acolhe, que recomenda ações e as acom- panha. Olhando a partir deste lugar, existe um silenciamen- to da voz do masculino. Ele se produz como agressor, mas com falta da narrativa escrita do seu relato, por ele mesmo, e na sequência por meio das tomadas de decisões que são, normalmente, realizadas pelos operadores do direito, psicó- logos, assistentes sociais, polícia e por uma quantidade de atores que interagem com a situação de denúncia. Este fato acaba por construir um relato da violência que não faz os elos da relação em questão e, portanto, deixa de gerar conteúdos à compreensão da violência. Isto é conivente com o que Mil- ler (1995) afirma, que o indivíduo é para si não algo que ele criou, mas, sim, o que os outros lhe atribuem ou como os ou- tros o tratam. Ou seja, o homem agressor é constituído como tal, pelos outros, pelo olhar de quem viveu a agressão e pelo profissional. Ele está ausente como voz de si, não é agente de si na narrativa, não vem a constituir-se por ele mesmo no ato de narrar-se. No momento do boletim de ocorrência são produzidos os argumentos discursivos que o instituem como agressor sem que ele seja escutado. Isto condiciona toda a forma como se irá proceder na sequência, dando pouca vi- sibilidade às razões, aos argumentos, às experiências e aos

caminhos de identificação com uma cultura ou com práticas estruturais violentas que o narrador poderia ajudar a com- preender por meio de sua própria narrativa.

Em violência doméstica, a estratégia de escutar e o relato do boletim de ocorrência têm sido considerados necessários, e de fato o são, para que se possa aplicar a lei, no presente es- tado de coisas – mas esta aplicação é limitada na medida em que, a partir dela, se estabelecem ações sempre orientadas por fatos tomados como consumados. Na medida em que se considera como ponto de partida o relato da vítima, que tam- bém é assim produzida pelo serviço, excluindo-se, portanto, os pontos de conteúdos de caráter relacional. Esta forma de proceder faz, quase que simplesmente, a pobre providência de separar a mulher de quem a agrediu. Depois, ela fica nas mãos de Deus, e ele, ressentido, doente com a denúncia, pode ficar mais violento, frequentemente, passa de agressor à vin- gança. Isto se faz, porque se está diante de um homem que é construído como violento antes do atendimento e também na representação do serviço de atendimento à vítima, no mo- mento da denúncia, ao mesmo tempo, se está constituindo uma série de representações e de realocações sobre a mascu- linidade destes homens que os circunstanciam como violen- tos, sem interagir de fato com eles.

Discutir e entender a relação violenta exige mais do que constituir vítima e opressor. Estes aspectos se complexificam, sobretudo, quando os homens fazem seu autorrelato. Este au- torrelato também é escrito e também sofre interpretação da parte do profissional que o registra. Esta interpretação e seu sentido já estão construídos e estão dentro de um quadro de perspectiva de que aquele homem é um agressor e, portan-

to, já é parte de um fenômeno que foi separado da relação de agressão, sem que tenha sido realizada uma escuta de ordem mais relacional.

Na sequência, destacamos alguns aspectos a fim de se repensar como são realocadas estas representações do mas- culino e de sua agressão, no momento da confecção da nar- rativa. Elas são produzidas em um contexto de publicização da violência vivida por mulheres, que também se encontram em situação de vulnerabilidade, com medo, em uma fase em que ainda não sabem o que vai acontecer com elas. Não estão de todo conscientes das suas próprias condições de dificul- dades para narrarem-se e para entenderem-se como denun- ciantes dos companheiros e das vivências de agressão que já têm história longa.

Ao fazê-lo, produzem-se descrições de masculinidadevio- lenta, agressiva, nervosa, pouco afeita ao diálogo, ou nada pro- vedora. Não apenas para ilustrar, apresentamos algumas delas. Primeiro, o que é produzido como sendo da companheira de Pietro e que passou para o texto na forma em que o profissional o escreveu. Assim se copiou do boletim de ocorrência:

Afirma que o mesmo é nervoso e lhe agride verbalmente, e nunca che- gou a lhe agredir fisicamente.

Ainda outro aspecto dá conta de uma violência de or- dem moral:

Diz que o mesmo lhe xinga de vagabunda, puta, etc. Também a ame- aça de agressão física. Isto ocorre faz tempo e o convívio entre ambos está complicado.

Outro rol de questões diz respeito ao uso moderado de bebida alcoólica. A esposa de Ciro afirma que:

O marido não ajuda em casa e quando recebe o salário gasta em be- bidas e jogo.

Ela se posiciona como dependente dele se sente aprisio- nada e a respeito escreveu:

Não entrou com o processo de separação porque tem medo e está se sen- tindo aprisionada, violentada. Chorou muito durante o atendimento.

Ela, segundo texto escrito, se reporta a outras violências sofridas:

Relata a comunicante que o autor é seu marido e que ele ateou fogo na residência onde morava com ela, resultando na perda total de seus bens e da casa. Conforme certidão de ocorrência nº X – 3º Bata- lhão do Bombeiro Militar.

A companheira de Ari diz que:

Sofre violência doméstica, principalmente psicológica, desde o início do relacionamento.

Novamente, o uso de álcool; e neste caso, ele não tem emprego fixo. Neste relato, além das ofensas morais que são dirigidas a ela e aos filhos, assim diz o escrito do profissional no boletim:

O referido não trabalha, não providencia o sustento da família, além de ficar no bar embriagado, diariamente, e depois chega em casa, ofende e agride fisicamente as crianças.

A companheira de Antenor ressalta diversas idas e vin- das na relação com seu companheiro. Diz o profissional que escreveu o texto:

Alega que muitos desses retornos foram ocasionados pelas vulnerabi- lidades sociais que enfrentou, e continua a enfrentar, vendo na figura do companheiro o provedor do lar. A mulher foi agredida após de- fender seu filho de uma surra que ele estava levando. Ao fazê-lo, “An- tenor passou a agredi-la com socos na região do abdômen. Afirma que o mesmo é “atendido pelo CAPS-AD. [...] diz que não acredita na polícia. [...] e que também deseja separar, mas ainda não teve tempo de procurar uma casa para morar. [...] estava muito abalada.

Sobre a companheira de Moisés, assim se diz:

Verbalizou que a situação está delicada”. O fato se agravou desde que o “oficial de justiça esteve na sua casa com a medida de afastamento do lar; não conversa mais com seu ex-marido”. Como o companheiro não saiu de casa, assim diz o relato: “está sob uma situação muito tensa. [...] foi agredida verbalmente e ameaçada pelo autor supra- citado, que é seu ex-marido”. Neste caso, ainda se escreve que “a co- municante possui vários registros contra o autor. Relata ainda que o autor é usuário de drogas.

Nestes textos podemos observar que a violência tem uma dimensão ampla, é tanto física como moral e psicológica. Está dirigida às mulheres e às crianças e é construída no dia a dia, quase sempre por razões cotidianas, seja por causa da presen- ça de drogas ou de bebidas, gerando conflitos na família ou no entorno,ou por ausência de provimento do lar, ou por causa das desconfianças de ordem moral, que são expressas quan- do chamam suas companheiras de vagabundas. Estes aspec-

tos dão conteúdo amplo aos pontos que se intersectam com a experiência destes homens em relação a suas companheiras. Eles fazem agressões físicas, mas, sobretudo, fazem violência moral e psicológica, o que seguramente também é mais difícil de identificar, porque esta dinâmica da violência é também a expressão mais sutil dos conteúdos simbólicos, sob os quais ela se alicerça, e da efetividade do peso simbólico destes discursos sobre a energia, a moral e os sentimentos das mulheres.

Acredita-se que os homens, autores de violência, ao fe- rirem verbalmente suas companheiras, procuram atingir sua honra, de modo que eles vampirizam sua energia. Esta ofensa à honra pode ser interpretada enquanto um marcador cultu- ral, baseado na honra do masculino, e como um importante meio prático e discursivo do controle social masculino sobre os corpos e as atitudes das mulheres nestes contextos. Trata- -se de violência sobre os corpos, mas, sobretudo, de violên- cia sobre a moral. A agressão moral ofende, especialmente, quando é realizada pelo pai ou pelo marido, ou pelo irmão. No caso da esposa ofende também porque é o efeito de um poder; se a mulher é pensada como mãe, é colocadano espa- ço do intocado, do sagrado e do que não pode ser profanado. Esta representação é causa e efeitode um poder (FOUCAULT, 1993). Se a ofensa é chamar de vagabunda, e é dirigida à es- posa ou à filha, pelo marido, irmão ou pai – torna-se altamen- te ofensiva e emocionalmente degradante, porque ocorre no seio de relações familiares, exatamente no lugarem que, pelas representações invocadas e pelas subjetividades construídas, na relação a respeito do que deveria ser uma família, ela não poderia ocorrer. Este lugar da família, e que foi construído com representações a respeito da fidelidade, da honra, do cuidado, da naturalização da mãe como a que ama e suporta,

virtudes ligadas ao bem, ao respeito, ao amor, são parte dos grandes ideiais românticos e das representações que alimen- tam agressões. A agressão é, portanto, parte do veneno da própria representação sobre o bem.

Nesta dinâmica, o prazer ou a possibilidade de que esta mulher viva sua sexualidade e que tenha autonomia estão ex- cluídos, não só da cabeça desses homens, mas também da ca- beça das mulheres. A mãe troca seu corpo pelos filhos, a pros- tituta troca seu sexo. Definir a mãe e a mulher/esposa como puta é lembrar para si mesmo que elas têm sexo; por isso, se incomodam, e é melhor então desonrar com agressão moral do que encarar a sexualidade, como do campo do direito e da re- lação comsexo bom e justo, para o qual também eles não estão preparados. A ofensa moral, embora não explicitada sempre, é portadora de um conteúdo que dói mais forte e aparece em quase todas as situações dos relatos. As mulheres que, nesse contexto, são parte de processos de socialização estigmatizan- te, subjetivam-se em normas culturais que em nada as ajudam a viver o sentido da condição de lutar para buscar experiências sobre si mesmas e sobre o mundo que as cerca, que as liberem dos processos de subjetivação dependente. Experiências que sejam mais positivas e incisivas do ponto de vista da emancipa- ção pessoal e social ainda são almejadas.

Além desses aspectos, observamos, nas cinco situações relatadas, alguns pontos em comum, tais como: o uso de álco- ol (entre quatro deles), as agressões psicológicas (presentes em todos os relatos anteriores), a dependência econômica do com- panheiro, a violência presente também contra os filhos. Cha- mou a atenção, ainda, em uma das narrativas, a descrença com relação à justiça (“todavia diz que não acredita na polícia”). Po- demos visibilizar alguns pontos que demarcam características

dos homens autores de agressões, a partir das verbalizações das mulheres. Elas verbalizam que se sentem aprisionadas, violentada psicologicamente, em todos os relatos dos boletins de ocorrência e dos históricos. Isso nos permite pensar que o sentimento de posse sobre a companheira, entendido como ca- racterística de uma masculinidade violenta, é uma das formas utilizadas pelo homem para manter a mulher sob seu poder.

Alguns elementos já podem ser destacados, tais como: o fato de a mulher não confiar na segurança pública, as dificul- dades para se sustentar, sobretudo se não possui outra resi- dência, a ausência de condições econômicas, o medo e a pre- ocupação em como vai dar conta de cuidar dos filhos. O fato de mudar-se para outra residência está associado a outros problemas como: mudança de creche para os filhos, escola e, por vezes, local de trabalho. Nesta condição são reforçadas as estruturas de posse, as dificuldades à tomada de decisão, e se reproduzem estruturas de dependências econômicas e emocionais entre os envolvidos em situação de violência. O conflito, por vezes, também é banalizado.

SUBjETIVIDADES mASCULINAS POR ELES mESmOS: