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estrutura e divisão interna de trabalho

2 Do nascimento à consolidação – 1944-

2.1. Bretton Woods

Em 1941, bem antes do final da segunda guerra mundial, o governo dos Estados Unidos iniciou a elaboração de propostas para o desenho uma nova arquitetura econômica internacional que se seguiria à paz (Aglietta & Moatti, 2002: 15; Eichengreen, 2000: 134). O objetivo fundamental era plasmar as condições que garantissem, ao mesmo tempo, o livre comércio para os produtos norte-americanos, a abertura dos mercados estrangeiros ao capital estadunidense e o acesso irrestrito a matérias-primas necessárias àquela que se tornara a maior potência econômica e militar do planeta (George & Sabelli, 1996: 32; Saxe-Fernández & Delgado-Ramos, 2004: 15).

A Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, ocorrida na cidade de Bretton Woods (New Hampshire, EUA), realizou-se em julho de 1944 nos marcos de uma assimetria de poder extraordinária. Quarenta e quatro delegações aliadas e associadas e um

país neutro (Argentina) atenderam ao convite do presidente Franklin Roosevelt (1933-1945), mas foram as negociações entre apenas duas delas que realmente definiram o fundamental (Kapur et al., 1997: 69). Como se sabe, os governos dos EUA e do Reino Unido mantiveram negociações informais desde 1942 encabeçadas por Harry Dexter White (assessor-chefe do Secretário do Tesouro dos EUA, Henry Morgenthau) e John Maynard Keynes (assessor principal do Tesouro britânico), aos quais foi delegada a elaboração de propostas concretas pelos seus respectivos governos (Aglietta & Moatti, 2002: 16-17). Num dos primeiros encontros privados com White, ainda em 1942, Keynes argumentou contra a realização de uma conferência e por negociações diretas e reservadas entre EUA e Reino Unido. Derrotado, Keynes se manifestou, num informe posterior ao Tesouro britânico, expressamente contra a participação de países considerados menos desenvolvidos em Bretton Woods. Para a diplomacia norte-americana, porém, era indispensável a realização de um grande encontro internacional que formalizasse um acordo multilateral (Kapur et al., 1997: 62).

As propostas norte-americana e britânica convergiam em alguns princípios básicos. Ambas consideravam indispensável a construção de um sistema de cooperação econômica baseado em regras e instituições de caráter multilateral que evitasse o cenário do entreguerras, marcado por políticas comerciais protecionistas e desvalorizações cambiais competitivas — a postura de “empobrecer o vizinho” (Eichengreen, 2000: 127; Gwin, 1997: 196). Na visão dos planejadores, era preciso erigir um sistema que encorajasse a estabilidade econômica, o pleno emprego, o livre comércio e o investimento internacional, vistos como condições para a conquista e a manutenção da paz e da prosperidade entre as nações. Ambos também defendiam a autonomia dos Estados para praticarem políticas econômicas que protegessem as economias nacionais de pressões financeiras internacionais. Essa abordagem conformava o

embedded liberalism, uma reação ao capitalismo liberal (laissez-faire) que marcou os anos

pré-guerra. Com forte apoio entre industriais, sindicatos de trabalhadores e políticos de orientação keynesiana, esse ideário enfrentava a oposição de grandes banqueiros privados e administradores dos bancos centrais que haviam dominado as políticas financeiras antes de 1931 (Helleiner, 1994: 49-50).

Todavia, EUA e Inglaterra divergiam profundamente no conteúdo e nos instrumentos que deveriam assegurar a materialização de tais princípios. Não era para menos. Afinal, a Inglaterra tencionava, antes de mais nada, assegurar a zona da libra esterlina como um espaço de interesses privilegiados, no qual os EUA teriam um papel menor, embora estivesse endividada e arruinada e necessitasse, de maneira crônica, de financiamento, que só os EUA, naquele momento, tinham condições de prover. Estes, por sua vez, almejavam o fim de

qualquer preferência inglesa no território do império britânico e, mais amplamente, a abertura dos mercados domésticos dos demais países às exportações de suas empresas e conglomerados industriais (Lichtensztejn & Baer, 1987: 27-34; Pauly, 1997: 82; Eichengreen, 2000: 138). Enquanto à primeira interessava minimizar a perda da força da libra e de prerrogativas políticas e comerciais, ao segundo era crucial afirmar a predominância do dólar como moeda internacional e âncora da projeção mundial do poder político-financeiro norte- americano.

As propostas de Keynes para o redesenho da arquitetura econômica internacional se concentravam em três pontos principais (Sanahuja, 2001: 48-50; Block, 1989: 82; Aglietta & Moatti, 2002: 17-19). Primeiro, a constituição de um marco mundial de cooperação monetária e financeira orientado à promoção do equilíbrio e do crescimento econômico, em cujo epicentro estaria a criação da União Internacional de Compensações (International Clearing

Union), uma espécie de banco central internacional com poder para emitir uma nova moeda

de reserva mundial (o bancor) em substituição ao ouro, mas a ele conversível. Sua função seria assegurar as regras internacionais em matéria financeira, prover liquidez à economia e operar ajustes simétricos e automáticos entre países com déficit e superávit no balanço de pagamento dos países. Os deficitários tomariam recursos da União em condições altamente favoráveis, a fim de evitar desvalorizações competitivas. Os superavitários pagariam um gravame e se estimularia a adoção de políticas expansivas (com o subseqüente aumento de importações) e/ou a exportação de capitais. Para cumprir sua missão, a União deveria dispor de um volume de reservas expressivo, algo em torno a cinqüenta por cento das importações mundiais. Segundo ponto, a criação de um fundo, originalmente concebido apenas para a reconstrução dos países atingidos pela guerra, mas depois ampliado para a promoção do desenvolvimento internacional, financiado pelos recursos da União Internacional de Compensações. Terceiro ponto, a criação da Organização Internacional de Comércio (International Trade Organization), dotada de amplos poderes para evitar a adoção de medidas protecionistas unilaterais e a flutuação dos preços das matérias-primas mediante acordos comerciais, gestão de reservas e intervenção nos mercados.

Quando começaram as negociações formais em 1943, as propostas de Keynes logo foram descartadas pelos EUA, por duas razões: de um lado, por implicarem a renúncia à soberania da sua política monetária — e à projeção mundial da mesma — em prol de um banco central internacional de fato; de outro lado, por penalizarem os países com superávit comercial, como era o caso — naquele momento, praticamente único — dos EUA (Sanahuja, 2001: 50; Block, 1989: 82-83). Assim, as propostas elaboradas por White constituíram a base

sobre a qual se deram as negociações assimétricas entre as duas potências (Lichtensztejn & Baer, 1987: 28-34; Aglietta & Moatti, 2002: 13-30; Peet et al., 2004: 58-61).

Em lugar de um “banco central internacional”, acordou-se, então, a criação de um fundo de estabilização monetária, que depois daria origem ao FMI. Tal organismo seria desprovido de mecanismos de ajuste globais em caso de superávit, de modo que todo o peso dos ajustes deveria recair sobre os países em situação deficitária. Resultado: o Estado norte- americano, antes mesmo da conferência, impusera a isenção de prestar contas sobre sua própria política econômica (Sanahuja, 2001: 51).

Ainda no mesmo ciclo de negociações ocorrido em 1943, em lugar de um fundo, acordou-se também a criação de um banco para a “reconstrução e o desenvolvimento”. Detalhe importante: o primeiro rascunho de White de uma proposta para um banco internacional, escrito em abril de 1942, não fazia menção ao “desenvolvimento”. O original se referia simplesmente a um “Banco de Reconstrução das Nações Unidas e Associadas” (Gardner, 1994: 168). Depois de circular para outros governos em novembro de 1943, o rascunho recebeu a expressão “e Desenvolvimento” acrescentada ao nome da instituição (Kapur et al., 1997: 57). Contudo, àquela altura, a proposta não angariava maior atenção e interesse. O centro das atenções era, de fato, o futuro fundo de estabilização, tanto assim que o Secretário de Estado dos EUA, quando convidou os governos para a enviarem representantes à conferência em Bretton Woods, disse que o encontro tinha “o propósito de formular propostas definitivas para um Fundo Monetário Internacional e, possivelmente, um Banco para Reconstrução e Desenvolvimento” (Mason & Asher, 1973: 12).

Convencido de que os investidores privados poderiam não prover o fluxo líquido de dólares necessário à reconstrução, a proposta de White concebeu um banco que garantisse títulos estrangeiros e, quando necessário, emprestasse diretamente para governos. Objetivo: encorajar o capital privado ao investimento produtivo, mais do que efetuar empréstimos (Gwin, 1997: 197). O capital inicial do banco chegaria a cerca de dez bilhões de dólares, uma quantia considerada adequada para aquela função de catalisação.

A mudança na correlação de forças políticas dentro dos EUA entre 1942 e 1944 — a perda de terreno do Partido Democrata nas eleições parlamentares de 1942, a ascensão de uma coalizão conservadora de republicanos e democratas meridionais e o expurgo, dentro do governo Roosevelt, de partidários do New Deal por dirigentes mais conservadores oriundos das finanças e da indústria — fez com que algumas das propostas originais de White sofressem revisão dentro do establishment doméstico e fossem descartadas antes mesmo da conferência de Bretton Woods (Gardner, 1994: 171). Entre elas, por exemplo, a criação de

uma moeda própria (chamada unitas), a realização de empréstimos a partir, exclusivamente, do seu próprio capital (e não de recursos tomados a partir da venda de títulos nos mercados financeiros privados), a missão de ajudar a estabilizar os preços das matérias-primas e, mais importante, o fornecimento de empréstimos contracíclicos no caso de depressão da economia internacional (Gardner, 1994: 169-70; Toussaint, 2006: 29-30). Tais propostas claramente projetavam a experiência do New Deal para o plano internacional, assentada no papel diretivo e regulador do Estado frente à atividade econômica. Nesse sentido, rechaçavam o laissez-faire e se identificavam com as idéias keynesianas.

Além disso, os banqueiros de Nova Iorque pressionaram para que as propostas de White deixassem claro em 1943 que um dos objetivos do acordo a ser alcançado em Bretton Woods seria a promoção do fluxo internacional de capital “produtivo”. Para os britânicos, isso implicava a limitação do seu direito de controlar os movimentos de capital dentro na zona da libra esterlina. Em defesa desse direito, Keynes contou com o apoio do Banco da Inglaterra, o que fraturou a aliança entre os banqueiros de Nova Iorque e Londres em torno da finança desregulada forjada antes dos anos trinta (Helleiner, 1994: 44-46).

Os trabalhos durante a conferência foram organizados em três comissões: a primeira, presidida por White, dedicou-se à elaboração do acordo sobre o FMI; a segunda, presidida por Keynes, encarregou-se do futuro banco internacional; a terceira, a cargo do mexicano Eduardo Suárez, debruçou-se sobre a constituição de outros meios de “cooperação financeira” (Nações Unidas, 1944). O centro das atenções girou em torno da primeira comissão. Nela se movimentaram os atores principais e dela saiu o produto que condensou o nível mais elevado de negociação. A segunda despertou relativamente pouco interesse. A terceira, com efeito, foi bastante marginal. Coube a Morgenthau presidir a conferência13.

Logo no primeiro dia, Washington anunciou a sua posição em um comunicado para a imprensa:

O propósito da conferência está (...) por inteiro dentro da tradição estadunidense e é completamente alheio a considerações políticas. Depois desta guerra, os Estados Unidos querem a utilização total de suas indústrias, fábricas e fazendas; emprego pleno e constante para seus cidadãos, em particular seus ex-militares; e paz e prosperidade completas. Para isso é preciso um mundo com um comércio vigoroso e este somente pode ser alcançado se as moedas são estáveis, se o dinheiro conserva seu valor e se

13 Sobre as negociações políticas feitas antes e durante a conferência, o livro do diplomata norte-americano

Richard Gardner (1994), publicado originalmente em 1956, continua sendo a referência mais completa. Consulte-se, também, Block (1989), van Dormael (1978), Lichtensztejn & Baer (1987), Aglietta & Moatti (2002) e Peet et al. (2004). Especificamente sobre as disposições da conferência para o Banco Mundial, cf. Mason & Asher (1973) e Kapur et al (1997).

as pessoas podem comprar e vender com a certeza de que o dinheiro que recebem na data de vencimento terá o valor que contrataram, e a isto se deve a primeira proposta, a do Fundo de Estabilização. Uma vez que tenhamos valores seguros e estáveis, o próximo passo será promover a reconstrução mundial, retomar o comércio normal e pôr fundos à disposição das empresas solventes, o que demandará, por sua vez, produtos estadunidenses. Daí a segunda de um Banco de Reconstrução e Desenvolvimento (U.S. Department of State, 1948: 1148 apud Peet et al., 2004: 66-67).

Quase todo o trabalho preliminar para a proposição do futuro banco havia sido feito dentro do governo estadunidense, razão pela qual a futura instituição figurava como uma proposta essencialmente norte-americana (Mason & Asher, 1973: 12-13). Muitos países, incluindo o Reino Unido, abstiveram-se de tomar iniciativa em relação a esse aspecto do plano White, porque não esperavam estar depois da guerra numa posição que lhes permitisse fazer contribuições significativas. A delegação britânica, em particular, só mudou de opinião e passou a apoiar fortemente o banco quando compreendeu — diante da negativa dos negociadores norte-americanos em aprovar a concessão de crédito sem contrapartida financeira — que precisaria de fundos para a reconstrução. Na abertura da conferência de Bretton Woods, Keynes reconheceu o fato de que o documento-base para a criação de um banco internacional se devia “antes de tudo à iniciativa e à capacidade do Tesouro dos Estados Unidos” (apud Mason & Asher, 1973: 13).

O resultado final de Bretton Woods materializou e simbolizou a hegemonia norte- americana na reorganização política e econômica internacional do pós-guerra (Hobsbawm, 1995; Gowan, 2003; Tabb, 2004; Woods, 2006). Produto de uma mudança drástica na estrutura de poder internacional, institucionalizou uma nova ordem monetária baseada no dólar, razão pela qual a política econômica dos EUA centralizaria a criação de liquidez e forjaria as condições da expansão e da internacionalização do capital estadunidense. Criaram- se organizações financeiras de tipo multilateral que expressavam a desigualdade de poder configurada no sistema internacional. Por outro lado, as provisões do acordo em favor do controle de capitais refletiram a vitória dos embedded liberals contra os banqueiros de Wall Street (Helleiner, 1994: 50; Block, 1989: 89-90).

O FMI nasceu com caixa relativamente modesto para a época (US$ 5 bilhões), mas com regras já bastante restritivas, ratificando o esquema segundo o qual as obrigações de ajuste se limitariam aos países deficitários. O sistema de votação adotado se baseava na subscrição desigual de capital (cotas), sob controle firme dos EUA e seus aliados ocidentais. Sua missão: regular os tipos de câmbio e contribuir para a estabilidade financeira

internacional por meio da concessão de empréstimos em caso de déficit no balanço de pagamentos dos países-membros. Ao longo do tempo, as condicionalidades exigidas pelo FMI para conceder empréstimos cresceram em âmbito e rigidez, conformando um conjunto coerente de medidas de política econômica14.

A proposta de criação da Organização Internacional de Comércio (OIC) foi ratificada em Bretton Woods. Para encaminhá-la, aprovou-se em caráter provisório o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) em 1947. Um ano depois, em Havana, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego sancionou o convênio constitutivo do GATT. A Grã-Bretanha resistia duramente a eliminar a preferência imperial em troca de reduções tarifárias e conseguiu impor artigos de exceção que permitiam a discriminação comercial em diversas condições (Block, 1989: 132). Com a irrupção da guerra fria no front externo combinada ao impacto das primeiras reduções tarifárias negociadas em Genebra sobre a produção agrícola interna, parte do stablishment norte-americano se opôs decisivamente à cessão de parcela da soberania dos EUA em matéria comercial. Uma oposição se articulou no Congresso para barrar a aprovação da carta da OIC. Não tardou para que o Departamento de Estado anunciasse, no final de 1950, que não submeteria novamente a carta à aprovação do Congresso (Gardner, 1994: 444-460; Eichengreen, 2000: 140-41). Com status ambíguo, restrito à resolução de disputas comerciais por meio de barganhas periódicas e desprovido da função de estabilização de preços e regulação dos mercados de matérias-primas, vigorou por quase meio século como o único — e politicamente débil — marco de regulação do comércio internacional (Hobsbawm, 1995: 269; Sanahuja, 2001: 52). Em 1995, depois de um processo tortuoso que consumiu diversas rodadas de negociação, criou-se a OMC, completando a tríade do sistema Bretton Woods.

Quanto ao outro rebento nascido da conferência, o BIRD, estava mais do que claro para todos os participantes que os EUA haviam definido o seu desenho básico e conduzido o esforço que lhe dera origem.