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estrutura e divisão interna de trabalho

2 Do nascimento à consolidação – 1944-

2.3. Início da guerra fria

Embora a reconstrução figurasse no centro da missão do BIRD, o fato era que a instituição havia nascido com recursos absolutamente insuficientes para a meta que deveria cumprir. Em tese, o Banco detinha um capital subscrito de US$ 10 bilhões. Na prática, os Estados-membros tinham de desembolsar apenas vinte por cento desse total, enquanto os restantes oitenta por cento serviriam como garantia ante o não-pagamento de algum empréstimo. Àquela altura, porém, o Banco só tinha imediatamente disponíveis, para conceder empréstimos, recursos equivalentes a dois por cento do seu capital subscrito em ouro e um adicional de dezoito por cento do seu capital desembolsado, do qual somente o aporte norte-americano de US$ 635 milhões estava à sua disposição. Mesmo contando com a parte não desembolsada do capital subscrito pelos EUA — o único país que tinha condições financeiras para isso naquele momento —, o caixa potencial do Banco era de apenas US$ 3,2 bilhões (Gardner, 1994: 340). O FMI, por sua vez, não estava destinado à reconstrução e, por ora, a administração da entidade havia decidido não realizar nenhuma operação cambial durante a transição do imediato pós-guerra, dado que nenhum país tinha condições de garantir que usaria os créditos para a estabilização monetária de curto prazo, e não para a reconstrução (Gardner, 1994: 345-46).

A visão dos planejadores, em particular dos norte-americanos, acerca da natureza dos problemas da transição da guerra para a paz e da magnitude da assistência financeira necessária ao soerguimento da Europa se revelou profundamente equivocada (Gardner, 1994: 341-48; Hobsbawm, 1995: 269-70; Eichengrenn, 2000: 137-39). Em lugar da recuperação

rápida das economias européias, como esperavam, a instabilidade monetária e financeira se agravou sensivelmente no biênio 1946-47. Sem meios de financiamento, os estrangeiros não tinham como evitar a redução das importações norte-americanas (Block, 1989: 123-28).

Além disso, em vez da restauração de regimes capitalistas liberais por toda a Europa no pós-guerra, as economias da região estavam desenvolvendo sistemas variados de controles (câmbio, importações, etc.) sobre quase todas as transações econômicas internacionais (Block, 1989: 119-20). A imagem de futuro de uma Europa livre e aberta ao capital norte-americano parecia cada vez mais borrada pela proliferação de diversos “capitalismos nacionais”.

Ao mesmo tempo, a esquerda ganhava força em meio à aspiração popular por reforma social, depois de anos de guerra e depressão econômica. Foi assim com a vitória eleitoral do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha em 1945 e o despontar dos partidos comunistas como as tendências políticas mais fortes na Itália e na França (Block, 1989: 121).

Para complicar ainda mais o quadro, a União Soviética ampliava a sua gravitação política e econômica na Europa oriental, reorganizando as economias da região sob bases bilaterais e, com isso, pressionando os países da Europa ocidental a fazerem o mesmo. Também por esse lado o multilateralismo perseguido pelos EUA se via ameaçado (Block, 1989: 127-28).

A morte de Roosevelt em abril de 1945 alterou profundamente a correlação de forças dentro do governo norte-americano. De imediato, Morgenthau se retirou de Washington e White perdeu influência, mesmo permanecendo no Departamento do Tesouro. Até então, o

stablishment norte-americano havia se dividido amplamente sobre as políticas para a

Alemanha e a URSS. O Tesouro — portanto, Morgenthau e White — era favorável a um tratamento punitivo à Alemanha (o que levaria o país à desindustrialização) e ao estreitamento das relações com a URSS mediante empréstimos massivos. O Departamento de Estado defendia a reconstrução da Alemanha como condição para a recuperação da economia européia e o endurecimento das relações com a URSS. Com a eleição de Truman, as posições do Departamento de Estado passaram a dar a linha da política externa (Block, 1989: 92-93).

O anúncio da Doutrina Truman em março de 1947 alterou radicalmente a paisagem mundial. A Grã-Bretanha havia sinalizado no mês anterior que já não tinha condições de arcar com os custos de ajuda à Grécia e à Turquia, o que aumentava as chances de vitória da esquerda grega na guerra civil e, logo, sua aliança com a União Soviética (Block, 1989: 130). A conformação de dois grandes blocos rivais, cada qual dominado por uma potência militar, tinha a Europa como o palco principal da nova disputa (Gardner, 1994: 341). Tinha início a guerra fria.

Apenas três anos depois da Conferência de Bretton Woods, a imagem de futuro ali construída de um mundo de estabilidade monetária, livre comércio e liberdade crescente para os fluxos de capital, ancorados na ação do FMI e fomentados por empréstimos e garantias do Banco Mundial, foi posta de lado frente à urgência de blindar a Europa contra o “contágio” comunista (Kapur et al., 1997: 74). Essa carga só podia ser assumida pelo novo hegemon. Em março de 1947, num discurso perante o Congresso, o presidente Truman anunciou o novo enfoque que comandaria a política externa norte-americana:

Estou convencido de que deve ser política dos Estados Unidos ajudar os povos livres que estejam resistindo a tentativas de serem subjugados por minorias armadas ou por correntes provenientes do exterior. (...) Nossa ajuda deve ser canalizada, primeiro, pela via da assistência econômica e financeira, que é essencial para a estabilidade nesses campos (apud Gardner, 1994: 351).

Dando seqüência ao pronunciamento presidencial, três meses depois, em 5 de junho de 1947, George Marshall — chefe do Estado-Maior do exército estadunidense até 1945 e, então, Secretário de Estado do governo Truman — pronunciou o seu célebre discurso em Harvard:

Durante os próximos três anos, as necessidades européias em matéria de alimentos e outros produtos essenciais estrangeiros — principalmente procedentes da América do Norte — serão muito maiores que os seus atuais meios de pagamento e, por conseqüência, [a Europa] deverá contar com uma ajuda financeira substanciosa; do contrário, produzir-se-ão prejuízos muitos sérios de caráter econômico, social e político (...). Os EUA deveriam fazer tudo o que estiver ao seu alcance para facilitar ao mundo a volta à sua saúde normal, sem a qual não haverá estabilidade política nem será assegurada a paz (...). Tal ajuda não deve ser de natureza gradual nem parcial, (...) deve proporcionar uma cura definitiva dos males, não um mero paliativo (apud Gardner, 1994: 353).

O anúncio da Doutrina Truman foi um ato abrupto. Havia nos EUA uma forte oposição contra sacrifícios domésticos adicionais, participação externa e ajuda financeira a outras nações (Kapur et al., 1997: 73). A oposição continuou firme durante o ano de 1947, mesmo depois dos comunistas tomarem o poder na Hungria em agosto. O Programa de Recuperação Européia — mais conhecido como Plano Marshall — não saía do papel, apesar da pressão do Executivo. A resistência da opinião pública e do Congresso teve fim somente depois da invasão da Tchecoslováquia em fevereiro de 1948 (Block, 1989: 136). No dia 13 de abril, o governo conseguiu a aprovação do Economic Cooperation Act, autorizando o desembolso inicial de US$ 5 bilhões (US$ 21 bilhões em dólares de 1993) para a assistência financeira à Europa.

Tal como originalmente concebida, a reconstrução européia seria financiada de modo indolor por meio de empréstimos concedidos em termos comerciais pelo Banco Mundial. Porém, quase que do dia para a noite, entre março de 1947 e março de 1948, o assunto se tornou o objetivo mais urgente para os Estados Unidos em matéria de segurança nacional (Kapur et al., 1997: 74).

Imediatamente, as instituições de Bretton Woods foram ensombrecidas e subordinadas àquele imperativo. Já no segundo semestre de 1947, o FMI teve de entrar na seara da reconstrução, abandonando a sua política creditícia conservadora e outorgando quantias expressivas a título de ajuda aos países-membros, em particular para a Grã-Bretanha. Apenas uma parte pequena desses créditos estava destinada ao propósito da estabilização de curto prazo, mas serviram para tapar o buraco até que o Congresso norte-americano aprovasse as novas medidas de ajuda. Nos primeiros anos do Plano Marshall, o FMI praticamente não fez nenhuma operação cambial (Gardner, 1994: 353-54).

O mesmo atrelamento ocorreu com o BIRD. Com efeito, todos os quatro créditos para reconstrução, negociados em meses anteriores, foram firmados depois do discurso de Marshall proferido em Harvard (Kapur et al., 1997: 74).

Em quatro anos, os EUA concederam a dezesseis países17 pela via bilateral cerca de US$ 13,5 bilhões, dos quais mais de noventa por cento a título de ajuda, i.e., em condições altamente facilitadas, o que representou, na época, cerca de dez por cento do PIB dos receptores e pouco mais de quatro por cento do PIB norte-americano (Sogge, 2002: 21-22). Para se ter um parâmetro de comparação, o BIRD emprestou tão-somente US$ 800 milhões para a mesma finalidade entre 1947 e 1954 (Sanahuja, 2001: 53), dos quais US$ 250 milhões foram para a França e US$ 195 milhões para a Holanda no ano de 1947. O aporte de recursos dos EUA era vital para a viabilização do BIRD, porque representava mais de um terço da subscrição do capital do Banco e constituía o único componente plenamente utilizável, dado que o depósito era em dólar, a moeda usada nas transações internacionais no pós-guerra.

A movimentação estadunidense no plano externo ganhou, então, impulso, coerência e sistemática. Ao mesmo tempo em que concentrava seus fundos no Plano Marshall, o governo norte-americano submetia a Administração das Nações Unidas para a Ajuda e a Reabilitação (United Nations Relief and Rehabilitation Administration, UNRRA) a um processo de desidratação financeira. Como os EUA haviam aportado 73 por cento dos recursos desse

17 Em ordem decrescente: Reino Unido, França, Itália, Alemanha, Holanda (Indonésia), Grécia, Áustria, Bélgica,

organismo entre 1943 e 1947, tal política acabou inviabilizando qualquer ação relevante das Nações Unidas em matéria de reconstrução (Sanahuja, 2001: 53).

Além disso, como parte da macropolítica que orientava a sua ajuda bilateral, os EUA rapidamente anularam parte da dívida externa de dois aliados importantes, a França e a Bélgica — neste último caso, em compensação pelo urânio extraído do Congo Belga utilizado na fabricação das duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Kagasaki em agosto de 1945 (Toussaint, 2006: 58).

Para coordenar a distribuição dos fundos do Plano Marshall e promover a cooperação dos Estados-membros, o governo norte-americano patrocinou a criação, em abril de 1948, da Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE)18. Por meio dela, os EUA impulsionaram a articulação de um bloco de forças aliadas na Europa, em oposição à União Soviética. Complementarmente, Washington exigiu que os fundos, concedidos em termos notavelmente brandos, fossem gastos na compra de bens e serviços de empresas norte- americanas. Ou seja, se os EUA deram muito à Europa, também tomaram muito dela (Sogge, 2002: 21-22). Resultado: em quatro anos, graças ao Plano Marshall, o governo norte- americano teceu uma malha articulada de alianças e instituições no território europeu decisiva para desenhar o mapa geopolítico da guerra fria. Do ponto de vista político, ao subsidiar fortemente o consumo da população, o programa ajudou a minorar a influência da esquerda e forjou um capital político enorme para os EUA levarem adiante ações menos populares, direcionadas, p.ex., à reconstrução da economia alemã. Do ponto de vista econômico, o programa proporcionou um contrapeso importante à atração do comércio com a Europa oriental e proveu o meio para o financiamento de um grande superávit comercial dos EUA (Block, 1989: 136-37; Hobsbawm, 1995: 270-71).

Das negociações havidas em Bretton Woods entre EUA, Reino Unido e URSS, coube à última a terceira posição na hierarquia de votos no FMI e no BIRD, apesar dos esforços do Kremlin para conquistar a segunda posição (Toussaint, 2006: 30). Tal resultado incorporava a potência soviética no novo esquema multilateral, assim como uma parte da periferia, porém de maneira totalmente subordinada.

Com o início da guerra fria, aquele esquema implodiu. A União Soviética não ratificou os artigos do acordo de fundação das organizações criadas em Bretton Woods, jogando por

18 A OECE foi concebida também para promover a criação de uniões aduaneiras e de zonas de livre comércio em

âmbito regional, bem como impulsionar as relações econômicas entre os Estados-membros e com os EUA. Esse organismo intergovernamental tinha como membros os seguintes países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suíça, Suécia e Turquia, além dos EUA e do Canadá como países associados. A Iugoslávia participou temporariamente e a Espanha se tornou membro em 1959. Dois anos depois, a OECE deu origem à atual OCDE, conhecida como o grupo dos trinta países mais ricos do mundo.

terra os esforços de Roosevelt, Morgenthau e White para assegurar a participação dela. Em 1947, o representante da URSS denunciou na Assembléia Geral da ONU que o BIRD e o FMI não passavam de meras “sucursais de Wall Street” e que o BIRD havia se convertido em um “instrumento de uma grande potência”, inteiramente “subordinado a propósitos políticos” (apud Mason & Asher, 1973: 29, nota 46). A seguir, a tabela 20 apresenta a subscrição de capital do BIRD e o poder de voto acordados em 1947, no segundo encontro anual da organização.

Tabela 20. Subscrições de capital e poder de voto no BIRD – agosto de 1947

Países Subscrição de capital

(milhões de dólares) Percentual de votos

Estados Unidos 3.175 34,28 Reino Unido 1.300 14,17 China 600 6,68 França 525 5,88 Índia 400 4,55 Canadá 325 3,74 Holanda 275 3,21 Bélgica 225 2,67 Austrália 200 2,41 Itália 180 2,19 Tchecoslováquia 125 1,6 Polônia 125 1,6 Brasil 105 1,39 União Sul-Africana 100 1,34 Dinamarca 68 0,99 México 65 0,96 Noruega 50 0,8 Turquia 43 0,73 Iugoslávia 40 0,7 Egito 40 0,7 Chile 35 0,64 Colômbia 35 0,64 Grécia 25 0,53 Irã 24 0,52 Peru 17,5 0,45 Filipinas 15 0,43 Uruguai 10,5 0,38 Venezuela 10,5 0,38 Luxemburgo 10 0,37 Síria 6,5 0,34 Bolívia 6,5 0,34 Iraque 6 0,33 Líbano 4,5 0,32 Equador 3,2 0,3 Etiópia 3,2 0,3 Costa Rica 3 0,29 Guatemala 3 0,29 República Dominicana 3 0,29 El Salvador 1 0,28 Honduras 1 0,28 Islândia 1 0,28 Nicarágua 0,8 0,28 Paraguai 0,8 0,28 Panamá 0,2 0,27

A distribuição dos votos ilustra a correlação de forças que moldou a constituição do BIRD na arena internacional. Os EUA e o seu principal aliado, o Reino Unido, controlavam juntos 48,3 por cento dos votos. Somados aos votos dos outros onze países capitalistas mais industrializados, alcançavam 71,4 por cento do total. Em termos regionais, esses votos abarcavam a América do Norte, a Europa ocidental e central e a Oceania.

A representação do resto do mundo, que então se desenhava como periferia, além de minoritária, era desequilibrada regionalmente e, em termos políticos, ilustrava as relações de dominação e influência do pós-guerra. Os países do Oriente Médio (Irã, Síria, Iraque e Líbano) obtiveram a menor cota regional: 1,51 por cento do total de votos.

Quanto à África, apenas três países tinham direito a voto, pois quase todos os demais estavam sob o jugo colonial. Seus votos representavam míseros 2,34 por cento do total. Mais da metade destes pertenciam à União Sul-Africana — domínio britânico até 1961, quando surgiu a República da África do Sul —, dominada por um regime racista que, em 1948, culminaria com a sanção da lei de apartheid. Outra parte dos votos estava com o Egito, país até então sob constante ingerência britânica desde a criação do Canal de Suez. O restante da cota africana ficou com a Etiópia, colonizada pela Itália e “libertada” pelas tropas inglesas em 1941.

Da Europa central e oriental, somente quatro países tinham direito a voto (Grécia, Polônia, Tchecoslováquia e Iugoslávia), controlando modestos 4,43 por cento dos votos. A Grécia encontrava-se sob um regime monárquico apoiado pelos EUA. A Polônia vivia forte turbulência política e era tensionada pela URSS, que invadiria o país no ano seguinte. A Tchecoslováquia e a Iugoslávia já estavam sob a órbita soviética.

Da América Latina e do Caribe — região de gravitação por excelência dos EUA —, dezessete países dividiam parcos 7,74 por cento dos votos. Destes, quase um quinto estava sob controle do Brasil, que tinha a maior cota regional.

Os votos da Ásia, região mais populosa do mundo, representavam a maior cota da periferia: 12,39 por cento do total. Porém, apenas quatro países tinham direito a voto: China, Índia, Filipinas e Turquia. O primeiro, então sob o governo de Chiang Khai-Chek, era aliado dos EUA. O segundo tornara-se independente da metrópole britânica em agosto de 1947. O terceiro havia sido colônia estadunidense de 1898 até 1946. O quarto tinha ingressado na fase final da guerra no campo aliado, permanecendo no lado dos EUA quando a guerra fria começou. Do ponto de vista anglo-americano, os quatro eram peças estratégicas no tabuleiro geopolítico internacional.