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estrutura e divisão interna de trabalho

2 Do nascimento à consolidação – 1944-

2.5. Modus operandi: dinheiro, idéias e influência política

A rigor, desde cedo o Banco reconheceu que o ambiente de políticas de um país influenciava a produtividade de investimentos específicos e a solvência dos prestatários. Por isso, ele sempre estimulou certas políticas econômicas em detrimento de outras. Na lista das políticas indesejáveis estava, invariavelmente, a atitude hostil ou discriminadora contra o capital estrangeiro. Na visão do Banco, a sua assistência técnica e a exigência, em troca de empréstimos, de determinadas medidas em matéria de política econômica ajudariam a melhorar a qualidade do ambiente doméstico para o desenvolvimento capitalista, em particular para o capital estrangeiro (Gavin & Rodrik, 1995: 331-32).

Ao longo dos anos cinqüenta, o BIRD passou a considerar seus projetos como vitrines (showcases) para a disseminação de mais e mais projetos, ao mesmo tempo em que ampliava suas avaliações e aconselhamentos para um número cada vez maior de aspectos da vida econômica dos países receptores. No debate interno do BIRD sobre a fungibilidade do dinheiro, abordado no relatório anual de 1949-50, o financiamento de projetos teve como justificativa o “papel educacional” que os mesmos desempenhavam ou poderiam desempenhar, funcionando como “salas de aula” para que os governos dos países periféricos

aprendessem a “administrar melhor” seus investimentos (Kapur et al., 1997: 125-26). Como? De duas formas, basicamente. A primeira se dava por meio da assistência técnica e se materializava, em geral, pela montagem de agências específicas — insuladas do conjunto da administração pública ou vinculadas a certos ministérios — para gerir os projetos. A segunda forma ocorria pelo atrelamento, em maior ou menor grau, da liberação de recursos ao comportamento dos prestatários, como a perseguição ou manutenção da “disciplina fiscal e monetária”. Desde o início de suas operações, pois, o BIRD atuou mediante o monitoramento das políticas econômicas dos países periféricos, desempenhando um papel altamente intervencionista (ibid: 87). No entanto, também desde o início, o grau de supervisão e tolerância variou segundo uma série de fatores de ordem geopolítica.

Com tal performance, o BIRD garantiu, ao longo da década de cinqüenta, a anuência plena não só de Wall Street, mas também da banca européia em recuperação. Em 1951, o Banco realizou a sua primeira emissão de bônus fora dos EUA, na city londrina, com êxito pleno. Em 1959, as agências de classificação de risco estadunidenses que operavam nos mercados de capital atribuíram aos títulos do BIRD a pontuação máxima “AAA”, o que impulsionou de vez o interesse de investidores domésticos e estrangeiros (Gwin, 1997: 202). Gradativamente, a importância relativa do mercado financeiro norte-americano como fonte de empréstimos para o Banco começou a declinar, embora em termos absolutos o volume de vendas dos títulos em dólar continuasse a aumentar. De 1956 a 1962-63, o Banco não apenas viu a estréia de subscrições de capital dos principais membros europeus, como também captou em mercados não-estadunidenses a maior fatia do seu capital (ibid: 203).

Ao final dos quatorze anos da gestão Black, como mostra a tabela 22, o BIRD havia emprestado mais de seis bilhões de dólares em mais de trezentas operações, nenhuma das quais sem inadimplência, e auferia lucros anuais a uma taxa considerada “quase indecente” (Mason & Asher, 1973: 407).

Tabela 22. Empréstimos do BIRD e créditos da AID – anos fiscais 1947-69 Milhões de dólares

Ano fiscal Empréstimos do BIRD Créditos da AID TOTAL

Número $ Número $ $ 1947 1 250 250 1948 5 263 263 1949 10 137,1 137,1 1950 12 166,3 166,3 1951 21 297,1 297,1 1952 19 298,6 298,6 1953 10 178,6 178,6 1954 26 323,7 323,7 1955 20 409,6 409,6 1956 26 396 396 1957 20 387,9 387,9 1958 34 710,8 710,8 1959 30 703,1 703,1 1960 31 658,7 658,7 1961 27 609,9 4 101 710,9 1962 29 882,3 18 134,1 1.016,4 1963 28 448,7 17 260,1 708,8 Subtotal 349 7.121,4 39 495,2 2.436,1 1964 37 809,8 18 283,2 1.093 1965 38 1.023,3 20 309,1 1.332,4 1966 37 839,2 12 284,1 1.123,3 1967 46 876,8 20 353,5 1.230,3 1968 44 847 18 106,6 953,6 1969 84 1.399,2 38 385 1.784,2 TOTAL 635 12.916,7 165 2.216,7 15.133,4

Fonte: Mason & Asher (1973: 192).

(a) Todos os compromissos financeiros firmados no ano fiscal de 1963 podem ser atribuídos à gestão Black.

O outro lado dessa política foi o fechamento, ao longo dos anos cinqüenta, das fontes de crédito internacional aos países mais pobres — muitos dos quais originados do processo de descolonização na África e na Ásia —, uma vez que não eram considerados “elegíveis” aos empréstimos do BIRD nem aos mercados financeiros privados. Mesmo para os países de renda média — principais clientes do Banco, depois da Índia —, as condições de empréstimo eram consideradas onerosas.

Até o ano de 1962, exceto os empréstimos para enfrentar crises em balanços de pagamento (program loans), todos os empréstimos do BIRD foram para projetos considerados bancáveis, o que significava, basicamente, a criação de infra-estrutura física. O rol de projetos financiados pelo Banco era bastante restrito. O grosso dos empréstimos foi para projetos nas áreas de geração de energia elétrica por meio da construção de grandes represas e usinas termoelétricas, depois vias de transporte (estradas e ferrovias) e, em terceiro lugar, telecomunicações. Também se financiou, em menor escala, a compra de máquinas e implementos agrícolas e projetos de irrigação. Marginalmente, emprestou-se para a modernização de indústrias domésticas de transformação. Ao longo dos primeiros dezesseis

anos de operação, o BIRD não autorizou nenhum empréstimo para a área “social”, fundamentalmente porque Wall Street não aceitaria, mesmo com o governo norte-americano garantindo os compromissos financeiros do BIRD (Kapur et al., 1997: 119). Isto significa dizer que nenhum dólar foi desembolsado para a construção ou reforma de escolas e hospitais, tampouco para a realização de programas de alfabetização e saúde, acesso a saneamento básico, água potável e alimentos. Os projetos elegíveis ao financiamento tinham que ser pagáveis, viáveis e rentáveis, o que requeria análises de custo-benefício que demonstrassem a geração de impactos imediatos na atividade produtiva e, claro, dessem lucro. Deviam, também, efetuar os gastos predominantemente em dólar, e não em moeda local. Projetos para fins “sociais” não reuniam as condições que satisfizessem tais exigências (Gavin & Rodrik, 1995: 333). A tabela 23 apresenta um painel das somas emprestadas entre 1948 e 1961, identificando, em termos agregados, a destinação geográfica e setorial dos US$ 5,1 bilhões emprestados a 56 países em 280 operações.

Tabela 23. Empréstimos para desenvolvimento concedidos pelo Banco Mundial – 1948-61 (a) Bilhões de dólares

Receptores Países Compromissos

brutos Empréstimos líquidos

1948-61 (b) 1956-61 (c) 1948-61 (d) Total de empréstimos 5,1 2,8 3,9 Países “mais desenvolvidos”

Austrália, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Israel, Itália, Japão, Holanda, Nova Zelândia e África do Sul

1,7 0,9 1,1

Colônias Argélia, Congo Belga (Zaire), Costa do Marfim, Gabão, Quênia, Mauritânia, Nyassaland (Maláui), Nigéria, Rodésia do Norte (Zâmbia), Ruanda-Urundi (Burundi), Rodésia do Sul (Zimbábue), Tanganyika (Tanzânia) e Uganda

0,5 0,3 0,4

Países “menos

desenvolvidos” Brasil, Burma (Mianmar), Ceilão (Sri Lanka), Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Etiópia, Guatemala, Haiti, Honduras, Índia, Irã, Iraque, Malaya (Malásia), México, Nicarágua, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Filipinas, Sudão (depois da independência em 1956), Tailândia, Turquia, República Árabe Unida (Egito), Uruguai e Iugoslávia

2,9 1,7 2,3

Energia e

transporte 2,4 1,4 2

Agricultura

e irrigação 0,1 0,1 0,1

Fonte: Kapur et al. (1997: 86).

(a) Exclusos todos os empréstimos para “reconstrução”.

(b) Compromissos de 1º de março de 1948 até 30 de abril de 1961. (c) Compromissos de 1º de julho de 1956 até 30 de abril de 1961.

(d) Compromissos brutos de 1º de março de 1948 até 30 de abril de 1961, menos pagamento do principal, cancelamentos e participações e vendas do portfolio para outros investidores.

A tabela 24 compara os compromissos financeiros anuais do Banco com a Índia e os países da América Latina acordados no mesmo período.

Tabela 24. Compromissos financeiros anuais do BIRD com países menos desenvolvidos (1948-1961) Comparação entre Índia e América Latina (a)

Milhões de dólares

Compromissos financeiros (b)

Ano fiscal Total Índia Países latino-americanos Número cumulativo de prestatários 1948 16 0 16 1 1949 109 0 109 3 1950 137 63 59 8 1951 145 0 85 13 1952 163 0 79 16 1953 110 51 29 16 1954 144 0 99 19 1955 163 26 123 19 1956 227 75 75 24 1957 179 35 50 26 1958 423 166 121 27 1959 426 135 137 29 1960 339 60 134 30 1961 332 90 71 30 Total 2.913 701 1.187 30

Fonte: Kapur et al. (1997: 100).

(a) Conferir tabela 23 para a lista de países classificados como “menos desenvolvidos”. (b) Compromissos de 1º de março de 1948 a 30 de abril de 1961.

Ao longo dos anos cinqüenta, o desenvolvimento emergiu como questão internacional. O pensamento da época guiava-se por uma visão profundamente etnocêntrica, que extrapolava a experiência histórica dos países capitalistas industrializados para o conjunto do que, pouco a pouco, desenhava-se como Terceiro Mundo (Finnemore, 1997: 207; Kapur et al., 1997: 116). Entendido como crescimento do PIB ou, quando muito, do PIB per capita, desenvolvimento significava, basicamente, industrialização. De acordo com a proposição de Arthur Lewis, publicada em 1954, o crescimento econômico era concebido como a conseqüência aritmética direta da transferência de capital e de força de trabalho do setor de baixa produtividade (no caso, a agricultura) para o setor de alta produtividade, urbano- industrial. Por isso, ao Estado cabia taxar e espremer a agricultura, por meio de controle de preços e outros instrumentos de política econômica, para financiar investimentos em indústrias, mineração, transportes e utilidades públicas urbanas. Além da poupança interna (a ser obtida, com freqüência, por meio de medidas protecionistas), os recursos para financiar a industrialização deviam ser obtidos por meio do investimento direto (interno e externo) e, eventualmente, da ajuda externa. Nesse sentido, projetos de desenvolvimento eram entendidos como grandes projetos de infra-estrutura (barragens, estradas, ferrovias, etc.) que dariam suporte ao processo de industrialização.

Além dessa visão mais geral, outras duas coordenadas intelectuais específicas guiavam o Banco (Kapur et al., 1997: 116-17; Stern & Ferreira, 1997: 530-32). A primeira seguia a

hipótese de Kuznets (1955), segundo a qual a distribuição de renda se concentrava nos estágios iniciais do ciclo econômico e se desconcentrava nos estágios finais, de tal maneira que, após uma fase ascendente e sustentada de crescimento econômico, operar-se-ia o “efeito derrame” (trickle-down), i.e., o gotejamento gradual da renda para os estratos mais baixos da estrutura social. Quanto tempo esse processo duraria e qual a intensidade e o alcance do derrame acabaram se tornando questões secundárias naquele período, frente à crença no próprio derrame. A segunda coordenada supunha a existência de troca compensatória (trade-

off) entre crescimento e distribuição, razão pela qual políticas distributivas eram vistas como

prejudiciais ao crescimento.

Em linhas gerais, estas eram as coordenadas intelectuais que serviam de parâmetros para a atuação do BIRD como emprestador. A visão da instituição era pautada diretamente pelo mainstream anglo-americano. De fato, nenhuma inovação ao pensamento convencional teve origem no BIRD nos anos cinqüenta, pois a pesquisa econômica não era valorizada dentro do Banco naquele período (Kapur et al., 1997: 129-30).

Durante a gestão Black, construiu-se e consolidou-se a imagem e a identidade do BIRD como um ator financeiro qualificado, solidamente baseado no mercado, o que lhe garantiu um lugar muito particular no quadro das organizações internacionais. Fizeram parte da construção desse perfil a pouca importância relativa dos projetos ligados à atividade agrícola e a ausência completa de projetos considerados economicamente improdutivos na sua carteira de empréstimos durante toda a década de cinqüenta. Desse modo, a trajetória do BIRD naqueles anos se distinguiu daquela seguida tanto pela política bilateral norte- americana, como por outras organizações internacionais (como a FAO e o UNICEF, p.ex.), para as quais a agricultura e a área social — com destaque para a educação — eram alvos estratégicos.

Isto não quer dizer que, durante os anos cinqüenta, o BIRD estivesse isolado das pressões da guerra fria e, especificamente, dos requerimentos da política externa norte- americana. Longe disso. Na verdade, o BIRD integrou-se plenamente àquela dinâmica macropolítica, porém de maneira seletiva, a partir do seu lugar específico na arena internacional.

Como argumentou Velasco e Cruz (2007: 371-73), desde a vitória republicana nas eleições legislativas de novembro de 1946 e o anúncio, em março de 1947, da Doutrina Truman, afirmou-se um consenso nacional entre os setores dominantes em torno da política externa estadunidense que soterrou o embate, até então encarniçado, entre multilateralismo e isolacionismo. Segundo o novo enfoque da contenção (containment), caberia ao hegemon, de

um lado, impulsionar a reconstrução das economias arrasadas pela guerra e zelar pelo seu equilíbrio econômico e político, a fim de assegurar as condições para a expansão capitalista internacional e o combate eficaz à propaganda comunista; de outro lado, impedir qualquer tentativa de alteração do quadro geopolítico cristalizado nas negociações do pós-guerra por parte da URSS ou de forças internas a ela associada, por meio da persuasão ou da força. No plano militar, o enfoque se materializou no investimento permanente e elevado em armamentos, na ajuda externa militar massiva a aliados pontuais, na criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e outras organizações regionais similares, além de toda sorte de guerras, intervenções militares e tentativas, abertas ou veladas, de desestabilização de governos ao redor do mundo. No plano político-financeiro, o enfoque se traduziu no Plano Marshall, nas diversas modalidades de assistência econômica bilateral, no apoio à OECE (e, depois, à Comunidade Econômica Européia), na tolerância relativa diante de políticas econômicas protecionistas ou abertamente discriminadoras contra investimentos externos por parte de governos dentro da sua órbita de influência e, por fim, na modelagem de — e na primazia sobre — instituições financeiras multilaterais, entre as quais o Banco Mundial.

Naqueles anos, uma das referências de ligação entre a política externa norte-americana e a atuação do Banco Mundial era o programa Ponto IV. Lançado por Truman em 1949 no rastro do Plano Marshall e da criação da OTAN, o programa se baseava na assistência técnica e financeira a países então considerados subdesenvolvidos em diversas áreas da atividade econômica, político-administrativa, educacional, cultural e científica, com vista a aumentar a taxa de crescimento econômico, elevar os padrões de vida da população e massificar a ideologia do “mundo livre”. Enfatizando a ligação entre os interesses de segurança dos EUA e o desenvolvimento econômico do que se desenhava, então, como Terceiro Mundo, o programa marcou uma virada histórica nas relações dos EUA com países da periferia e o começo de compromissos norte-americanos substanciais no campo da ajuda externa a países não-europeus (Gwin, 1997: 205).

Finalizado após a proclamação da República Popular da China e em plena disparada do processo de descolonização, o quarto relatório anual do BIRD (1948-49) enunciou que o Ponto IV era de seu “interesse vital”, embora as implicações plenas do programa e o método para implementá-lo ainda não estivessem “inteiramente claros” (Banco Mundial, 1949: 7). Alegou-se, ainda, que o programa, ao fomentar a expansão dos “recursos financeiros e técnicos disponíveis aos países subdesenvolvidos”, assistiria e fortaleceria o Banco no cumprimento da sua missão de promover o “desenvolvimento”.

O relatório afirmou, categoricamente, que a pobreza e as desigualdades socioeconômicas extremas geravam tensões políticas e sociais nas áreas subdesenvolvidas. O desenvolvimento, nessa perspectiva, figurava como fator de amortecimento e estabilização das contradições entre grupos e classes sociais no plano doméstico, o que era visto como condição para conter o “contágio” em escala internacional. Para impulsionar o desenvolvimento, o relatório identificou quatro obstáculos que deveriam ser superados: a) o baixo nível educacional e de saúde pública da massa da população; b) o baixo nível de qualificação e competência profissional dos quadros da administração pública; c) em algumas situações, a extrema desigualdade na distribuição de riqueza, ancorada na manutenção de estruturas agrárias “ineficientes e opressivas” (ibid: 9); d) a limitação de capital doméstico para investimento, resultante dos baixos níveis de poupança e de políticas econômicas e setoriais inadequadas. Diante disso, para o BIRD, era preciso que os governos promovessem imediatamente “os ajustes necessários nas relações sociais tradicionais sem destruir a estabilidade para o desenvolvimento” (ibid: 9).

O relatório não se debruçou apenas sobre as “áreas subdesenvolvidas”, mas também sobre as relações entre elas, suas metrópoles e os demais países “mais desenvolvidos”. O documento afirmou que a manutenção da política de pleno emprego e do crescimento econômico nos países capitalistas mais industrializados dependia da expansão do comércio internacional, o que, por sua vez, dependeria do aumento da produção nos países periféricos e nas colônias (ibid: 7). Em outras palavras, os projetos financiados pelo Banco eram orientados, a um só tempo, à promoção da modernização econômica como forma de contenção do comunismo, à dinamização das relações desiguais entre centro e periferia e, por fim, à extensão das relações capitalistas, em clave anglo-americana, a todo o “mundo livre”.

Apesar da retórica reformista, o BIRD jamais financiou ou apoiou qualquer iniciativa governamental voltada à redistribuição de riqueza e, especificamente, à democratização da estrutura agrária. Quanto aos empréstimos do BIRD para educação, saúde, saneamento básico e abastecimento de água, que corresponderiam à implementação dos aspectos sociais do Ponto IV, somente nos anos sessenta e setenta é que começariam a aparecer aos poucos, e mesmo assim com muita resistência interna e de forma absolutamente minoritária na carteira do BIRD. Como notou Toussaint (2006: 37), nos relatórios anuais seguintes até mesmo a retórica em prol dos aspectos sociais do Ponto IV gradativamente desapareceu, à medida que o governo norte-americano canalizava a sua operacionalização por instrumentos bilaterais de

ajuda externa, em articulação estreita com o Desenvolvimento de Comunidade, patrocinado pela ONU durante a década de cinqüenta sob inspiração norte-americana24.

Em 1951, um grupo de assessoramento chefiado por Nelson Rockefeller foi designado por Truman para recomendar caminhos que viabilizassem os objetivos do Programa Ponto IV (Oliver, 1995: 44). O grupo apontou a necessidade de se criar, no plano internacional, um instrumento que disponibilizasse algo intermediário entre empréstimos puros e doações puras, e enfatizou que os EUA deveriam compartilhar a carga de financiar a assistência externa ao desenvolvimento. Nesse sentido, o grupo propôs que os EUA liderassem a criação de duas agências afiliadas ao BIRD: uma dedicada a mobilizar recursos para empréstimos diretos ao setor privado e outra especializada na provisão de créditos concessionários a países pobres, a partir de fundos doados pelos seus membros. Precisamente, aquilo que viriam a ser a CFI e a AID poucos anos depois (Gwin, 1997: 205). Todavia, naquele momento, tais recomendações não foram acolhidas por Washington. Primeiro, porque os EUA estavam envolvidos com a guerra da Coréia (1950-53) e enfrentavam um déficit orçamentário crescente. Segundo, porque o establishment estadunidense era refratário a estimular o desenvolvimento por meio de créditos concessionários, insistindo no papel primordial do investimento privado. Terceiro, existia a visão de que créditos brandos não seriam considerados seriamente como dívida (Kapur et al., 1997: 136). Assim, as propostas foram arquivadas.

Enquanto a dimensão “social” do Ponto IV ficou a cargo da assistência bilateral norte- americana, o BIRD ocupava-se da dimensão “econômica”. Todavia, para levá-la adiante de maneira que ela se convertesse em suporte funcional à contenção, o BIRD precisava atuar também no âmbito da organização do Estado. Não por acaso, o nível considerado “insatisfatório” de “competência na administração pública” figurava como um dos “obstáculos” principais ao desenvolvimento, na visão do BIRD (1949: 8). A ação do Banco, nesse âmbito, ganhou alento e contornos bem definidos ao longo da década de cinqüenta, operando, basicamente, de três formas.

A primeira — perseguida, a rigor, desde o início das suas operações — consistia no fomento à criação de “instituições”, freqüentemente sob a forma de agências paraestatais, financiadas por fora do orçamento público ordinário e compostas por quadros altamente qualificados (Mason & Asher, 1973: 701-02). Organizadas para planejar e executar projetos financiáveis pelo Banco e influenciar o processo de tomada de decisão governamental, operavam nos níveis nacional, setorial ou de administração de projetos. Tais agências,

24 A literatura sobre o Desenvolvimento de Comunidade é vasta. Para uma visão geral, cf. USAID (1964) e

invariavelmente, estampavam o selo da “neutralidade técnica” atribuído pelo Banco, segundo o qual supostamente atuariam em prol do desenvolvimento de forma insulada de “pressões políticas”. Por meio desse mecanismo, o Banco formou uma rede estável e fiel de quadros e organismos no interior da administração pública de inúmeros países apta a atender, prontamente, aos seus requerimentos imediatos e estratégicos, na maioria dos casos passando por fora do controle parlamentar e com relativa independência em relação ao governo de plantão. Em geral, tais agências davam origem a verdadeiras “ilhas de excelência”, fomentando a balcanização da burocracia estatal. Em vários países, a malha de aparelhos técnico-gerenciais responsável por investimentos em setores inteiros da economia foi construída, precisamente, por meio desse tipo de “assistência técnica”. Em alguns países considerados estratégicos para os interesses norte-americanos — como a Colômbia, p.ex. —, o Banco deu mais consistência a esse tipo de ação (Rich, 1994: 75), gerando impactos profundos na estrutura política e na organização social do país.

A segunda forma era através da organização e envio de “missões técnicas” a certos países, compostas por especialistas e consultores do BIRD — a maioria, norte-americanos e britânicos (Mason & Asher, 1973: 68) — e de outras organizações internacionais, como a FAO, a OMS e, quase sempre, o FMI. No geral, tais missões perseguiam dois objetivos combinados. O primeiro era identificar projetos que fossem bancáveis, convencer as autoridades domésticas a demandar empréstimos ao BIRD para financiá-los e treinar quadros técnicos locais para esse mesmo fim. Ou seja, tratava-se não apenas de criar demanda para os seus próprios “serviços” financeiros e não-financeiros, mas também educar e fidelizar atores domésticos capazes de sustentá-la no tempo. O segundo objetivo era analisar a situação econômica geral do país, orientar medidas de política macroeconômica e setorial e definir um rol de projetos passíveis de financiamento. Também aqui a geopolítica da guerra fria