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Capítulo II – MAGISTÉRIO

2. Breve visão da Lumen Gentium

Olhar o modo como a Igreja se entende hoje é reconhecer as bases de uma verdadeira renovação litúrgica operada pelos movimentos de renovação dos séculos XIX e XX, os quais procuravam integrar as tradições bíblicas, patrísticas, litúrgicas e ecuménicas97. Tendo em linha de fundo a reflexão feita sobre a orgânica, estrutura e o entendimento da Igreja sobre a sua missão, poderemos encontrar as linhas que deverão nortear a construção do espaço litúrgico. A Constituição Dogmática Lumen Gentium98 (LG) na estrutura que apresenta revela um novo entendimento acima da própria Igreja. É composta por oito capítulos99. Encontramos três imagens que traduzem o modo atual de a Igreja se ver: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Este entendimento revela a centralidade dada à dimensão histórico-salvífica do mistério da Igreja por oposição à visão da Igreja como

94 Cf. IGREJA CATÓLICA – Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituição Sacrosanctum Concilium, nº 124.

95 Cf. IGREJA CATÓLICA – Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituição Sacrosanctum Concilium, nº 127.

96 IGREJA CATÓLICA – Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituição Sacrosanctum Concilium, nº 128. 97 Cf. MOLINERO, Marcelo António Audelino - O espaço celebrativo como ícone da eclesiologia: Para uma

teologia do espaço litúrgico. Brasil: Paulus, 2019, p. 27.

98 IGREJA CATÓLICA – Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituição Dogmática Lumen Gentium. 11ª ed. Braga: Editorial AO, 1992.

99 Concretamente, Iº O Mistério da Igreja, IIº O Povo de Deus, IIIº Constituição hierárquica da Igreja e em especial o episcopado, IVº Os leigos, Vº A vocação de todos à santidade na Igreja, VIº os religiosos, VIIº Índole escatológica da Igreja e VIIIº A Bem-aventurada Virgem Maria.

societária, jurídico-organizacional, hierárquico-piramidal, teórico-ontológica. Na perspetivação trinitária estão as bases fundamentais da compreensão do mistério da Igreja, da realidade comunional100. A Igreja é entendida como mistério de Comunhão, “um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”101.

O número 8 da LG apresenta, grosso modo, uma síntese do que é a Igreja. Ele permite a correta compreensão do mistério, fundamentação e realidade da sua sacramentalidade, e a perceção do que a ação do Espírito Santo significa na Igreja. “O Mistério da Igreja só pode ser confessado e reconhecido na complexidade e na inseparabilidade da sua dimensão simultaneamente humana e divina”102.

Para muitos, a novidade da reflexão conciliar sobre a Igreja vive da sua perceção como Povo de Deus. Esta atitude revela-se mais inclusiva, geradora de maior comunhão. Abre a porta ao diálogo com outras realidades. No entender de Borges de Pinho a verdadeira mudança centra-se na visão histórico-salvífica da Igreja103. A organização dos capítulos apresenta uma intencionalidade que nos faz reconhecer o caminho que a Igreja quer percorrer no mundo contemporâneo. Assim verifica-se: 1. Como a Igreja se constrói na história humana, 2. Como a Igreja se estende na humanidade (diferentes categorias de pessoas), 3. O que é comum a todos os membros do Povo de Deus104.

No documento conciliar, recupera-se a noção de sacerdócio comum dos fiéis. O número 10 deixa bem claro o modo como fiéis e ministros ordenados se correspondem mutuamente. Este modo de olhar para os fiéis revela novos desafios para a construção do espaço. Os pólos litúrgicos têm a missão de espelhar, sem confusão a função de cada membro do Corpo de Cristo, sem que haja diluição da função de cada um; “embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam a seu modo, do único sacerdócio de Cristo”105. Esta inter-relação “acentua que, na convocação

100 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois. Coimbra: Ariadne editora, 2005, p. 67. 101 IGREJA CATÓLICA – Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituição Dogmática Lumen Gentium, nº 4. 102 PINHO, José Eduardo Borges de - A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.68.

103 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.74.

104 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.75.

pessoal de Deus dentro duma comunidade crente, cada cristão é chamado a ser sujeito ativo da sua fé”106. Esta atitude faz-nos entrever como no espaço litúrgico, e sobretudo no modo como dispomos o Altar, ministros e povo crente existem em diálogo e não uns subordinados a outros. O número 12 da LG põe em relevo o papel ativo do sentido da fé dos crentes, em sintonia e relação de mútua dependência com o magistério da Igreja: “todo o Povo de Deus é chamado a um papel ativo no testemunho do Evangelho, na atualização existencial da verdade da Fé”107.

O número 32 da LG retém a nossa atenção sobre o princípio de igualdade. Partindo da Carta de São Paulo aos Romanos108, a diversidade de membros e funções num corpo não significa a existência de diversos corpos mas a unidade duma só realidade. Assim, a igreja (edifício) é chamada a manifestar a comunhão, a unidade dos seus membros sem com isto deixar de manifestar a função específica de cada um. A LG manifesta a viragem ”de uma conceção eclesiológica marcada por um certo unilateralismo hierárquico, a favor de uma eclesiologia que considere verdadeiramente e em todas as consequências a totalidade do Povo de Deus”109.

Percorrer o caminho da LG não é tanto reconhecer a forma como a Igreja se organiza mas antes nela compreender a “tarefa do anúncio crível de Deus, é mostrar o que o Evangelho significa para a humanização da vida humana e deste mundo”110. Reconhecer as características da tarefa fundamental da Igreja no modo de se ver é entrever a identidade que devemos encontrar no espaço litúrgico. São elas o “desenvolver com persistência uma mentalidade de participação, de liberdade e responsabilidade, de sentido de uma pertença e de uma missão comuns”111.

O texto da LG detém-se no modo como deve ser vista a relação de comunhão entre Igreja local e Igreja universal, acentua que o bispo é o princípio visível e fundamento da unidade

106 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.76.

107 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.77.

108 Rom 12, 4-5.

109 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.80.

110 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.85.

111 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.86.

da Igreja local, do mesmo modo que o bispo de Roma o é para a unidade dos bispos e dos fiéis a nível universal. A colegialidade episcopal emerge como uma das dimensões da vida da Igreja e a sinodalidade como exercício da autoridade em comunhão, sendo elementos estruturais e estruturantes da vida da Igreja. Verifica-se abertura à dimensão ecuménica, procurando ultrapassar a visão de quem pertence e de quem não pertence à Igreja112. É deste

modo que a assembleia disposta em torno do Altar nos revelará o Corpo de Cristo.

Um último ponto que se torna imprescindível nesta leitura e compreensão sobre a Igreja é o de ela se apresentar como Sacramento de salvação. Não é uma afirmação simples mas revela claramente o sentido da sua existência e ao mesmo tempo manifesta-nos o sentido próprio do espaço litúrgico. O ponto de partida e a referência não são mais a Igreja Católica na sua configuração confessional mas a Igreja de Jesus Cristo. Com isto queremos dizer que em causa está a capacidade de a Igreja Católica entender a sua identidade em termos processuais, como uma identidade aberta e em relação. Ao dizermos que a Igreja é Sacramento Universal de Salvação, manifestamos uma nova consciência eclesiológica. Com esta afirmação supera-se uma interpretação incorreta exclusivista de “extra ecclesiam nulla salus”113. Nesta afirmação fica clara a consciência que a Igreja tem de si - ser sinal. A Igreja não é um fim em si mesma mas um meio: está ao serviço do Reino de Deus. É deste modo uma grandeza relacional e uma realidade de mediação114.

“Consciência viva e humilde de ser sacramento torna a Igreja mais capaz de ser sinal do Amor salvífico de Deus”115: nesta afirmação, fica claro o convite à identidade do espaço litúrgico, este tem a missão de nos colocar num dinamismo de conversão e missão, de ser um lugar de mediação do Amor salvífico de Deus.

Ressalvamos da LG como ideias fundamentais que a “Igreja é essencialmente uma

comunhão de fé, esperança e caridade unificadas pelo Espírito de Deus. Igreja como Povo de Deus traz à memória a natureza pessoal e histórica da Igreja. Esta comunidade de crentes não é entendida como resultado de processos naturais necessários, mas como

112 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.90-98.

113 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.103-105.

114 Cf. PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.108.

115 PINHO, José Eduardo Borges de – A Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964): Inovações fundamentais e interpelações presentes. In Vaticano II: 40 anos depois, p.110.

resultado de um ato de benevolência divina na história, que apela para a liberdade humana. O conceito de Povo de Deus enfatiza que todos os membros da Igreja formam uma Igreja igualitária. Na imagem da Igreja como Corpo de Cristo, a Igreja é o povo que acredita em Cristo, que é batizado em nome de Cristo e que vive do corpo eucarístico de Cristo. A Igreja é o povo que, no batismo e na celebração da Eucaristia, se torna o mesmo Corpo de Cristo. A imagem da Igreja como templo do Espírito Santo. Toda a estrutura da Igreja só faz sentido na dependência e em função da atuação do Espírito. A Igreja é essencialmente uma realidade interior. Ao entender-se desta forma, assume uma nova abertura ecuménica porque tem em conta a possibilidade de o Espírito de Deus também atuar em outras igrejas e comunidades. Pela sua estrutura interna, a Igreja caracteriza-se por uma estrutura carismática. A Igreja como comunidade superou a noção de Igreja como sociedade perfeita. Redescobriu a Igreja como Igreja local. Realiza-se concretamente em cada uma das Igrejas locais, que são Igrejas por princípio e no sentido pleno. A Igreja como um todo é definida essencialmente como comunhão de Igrejas locais”116.