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Capítulo IV – POÉTICA E FENOMENOLOGIA: leitura de três autores

2. Frédéric Debuyst

2.2 A Problemática do Altar – 1

Com F. Debuyst assumimos a citação feita sobre o que se realiza no Altar pelo padre J. Gelineau: “Celebrar os mistérios […] não é ir ao teatro. Junto-me a uma assembleia de crentes que realiza, ela mesma e para si mesma, aqui e agora, os sinais de um memorial, de uma presença de um anúncio”287. Estamos diante da problemática do que é exigido àquele que tem a tarefa de conceber, formalizar o Altar.

O Altar aparece como a realidade que tem a tarefa de organizar todo o espaço. Ele é o coração vivo, mesmo que não defina toda a Igreja. O Altar aparece mais naturalmente como aquele lugar carregado de memória, de esperança. F. Debuyst citando uma vez mais J. Gelineau, recupera as notas essenciais para a presença do Altar: apagamento, discrição, uma espécie de “paz” antecedente288. F. Debuyst define o Altar cristão na sua origem e natureza como interioridade e equilíbrio, em que a dimensão sagrada advém da relação direta com o Mistério Pessoal de Cristo e do Mistério Pascal. É, pois, o Mistério de profundidade de uma presença. Olhar para o Altar e tentar entendê-lo não parece tarefa fácil, uma vez que a imagem que ele manifesta é ambivalente289. Romano Guardini em 1939 resumia esta dificuldade dizendo: “a imagem da refeição e a do sacrifício não cessam de interferir”290. O Senhor realiza a Ceia e segue inteiramente a imagem da refeição. Donde não fica clara a dimensão sacrificial. Guardini manifesta a presença do Altar ao nível da profundidade. Verifica-se uma leitura a partir da experiência. O Altar como sinal é a “mesa da refeição do Senhor”, o Altar é uma mesa real, mas é a mesa do Senhor. Faz a união entre Última Ceia e antecipa a do banquete eterno. Deste modo tudo gira em torno d’Ele, tudo parte e se encaminha – ritual, espaço e assembleia viva dos fiéis291. O Altar não é, ou não tem de responder a um aspeto meramente funcional. Ele manifesta e, nessa medida, “submete-se à

287 GELINEAU, Joseph – Interrogações. In space 7 (1979), p. 40. Cit. por DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 11.

288 Cf. DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 11. 289 Cf. DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 11-12.

290 GUARDINI, Romano, 1939. Cit. por DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique

D’Art Sacré. Nº 1, p. 12.

economia do sinal sacramental, deve guardar a medida, intencionalidade, sensibilidade da pessoa”292. Por esta via, o Altar não poderá ser visto como uma “sacralidade monumental”, “uma eflorescência superficial de uma arte da mesa”293.

Outra linha na compreensão do Altar-mesa vem das casas onde vivemos – da graça de hospitalidade e de convivialidade de nossa própria mesa. No estudo sobre o Genius Loci, Norberg-Schulz “mostra que a mesa polariza a alma da casa e ajuda a torná-la um lugar característico e completo”294. Como polariza o Altar as nossas igrejas? Intuir a presença do Altar como a presença do Senhor no meio do Seu povo pode ser confuso na medida que ele não deixa de ser um objeto. Contudo o Altar revela-se: “a mesa de refeição do Senhor é cercada por convivas que se reúnem na paz de uma profunda comunhão. Esta característica ao fluir sobre o Altar penetra-o de uma presença. Marcado pelo mistério pessoal de Cristo,

reveste, a sua dignidade, força, delicadeza: uma síntese única de proximidade e distância”295. F. Debuyst usa a expressão qualidade pessoal de presença. Esta imagem, ideia, característica, torna o espaço da igreja habitado. Nós procuramos essa presença. A arquitetura, as artes, as ações litúrgicas, o simples estar orante, deve fazer tocar, encontrar esta presença. Não é uma poesia ou teorização. Na vida, o crente experimenta essa presença de amor, de segurança, de serenidade. Há espaços, pessoas, acontecimentos que o transportam para aí ou mesmo o convocam a esse estado, redescobrindo e reavivando estas

memórias. O espaço vivenciado por cada um coloca-o diante da qualidade pessoal de presença296.

As questões levantadas aquando da deslocação espacial do Altar, com vista a favorecer a celebração “em face do povo”, parecem ser ainda as que persistem. Não temos já a solução da parede de glória. A abside, na qual víamos a tensão escatológica, deixa de ter o seu significado. Ao libertar o Altar e procurar-lhe uma centralidade, ele gera um novo espaço, um novo modo de estar no espaço, uma nova qualidade pessoal de presença. Não é fácil de perceber o caminho a percorrer. Pensar o Altar numa comunidade (tipo paroquial), onde a assembleia é diversa e habitualmente grande, em termos numéricos, revela-se um problema

292 DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 12. 293 DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 12.

294 NORBERG-SCHULZ. Cit. por DEBUYST, Frédéric – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art

Sacré. Nº 1, p. 13.

295 Debuyst, FRÉDÉRIC – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 13. 296 Cf. Debuyst, FRÉDÉRIC – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 13.

acrescido. Tornar o Altar o ponto focal é urgente e necessário; permitir ao crente concentrar o olhar, a sua vida, a experiência com Aquele que se dá permanentemente é tarefa do Altar.

Ele é Cristo. F. Debuyst afirma que “ele teve que se concentrar, ganhar profundidade, tomar

uma forma mais próxima do cubo e, no plano expressivo, passar, por assim dizer, do

antependium ao circumpendium”297. Estamos perante um primeiro problema: as dimensões

que o Altar deverá ter. Há que pesar as consequências de apenas pensarmos a sua deslocação como retirá-lo da parede e aproximá-lo da assembleia. O pensamento conciliar pede-nos mais: que construamos, que geremos um espaço capaz de nos colocar em comunhão com o

lugar onde Cristo nos é dado. Daí a análise de F. Debuyst: “o alongamento não lhe dava

mais “massa”, mas, pelo contrário, o descentrava, dispersava, e distorcia o seu próprio tipo de presença”298. O problema persiste porque os arquitetos olham frequentemente o espaço do santuário como uma realidade separada da assembleia. Nas igrejas antigas podemos inclusivamente perceber a complexidade. São realidades pré-existentes e por vezes as dimensões não permitem grandes modificações. Mas o mesmo se sente na edificação de novos espaços. Regra geral, testemunhamos a apresentação do Altar frontal, quase cénico dos lugares da celebração. A tarefa é complexa. Por um lado, temos o entendimento litúrgico que nos aponta para um caminho definido pelos pólos litúrgicos e, por outro, a visão conciliar que nos aponta para uma experiência de comunhão e compreensão de uma Igreja que, em si, é comunhão e onde os membros têm igual dignidade. Conceber um espaço que seja reflexo do binómio igual, mas diferente; comum, mas com funções diferenciadas, revela-se exigente. Na verdade, a tarefa é a de no espaço manifestar-se a imagem dum corpo, diverso nos seus membros mas em que todos são necessários e importantes para que o corpo funcione em plenitude. Este desejo, o de que a assembleia celebrante, o crente, o descrente, sejam tocados pela força viva d’Aquele que habita o espaço, é a concretização de um abraço entre a as artes e a liturgia.

F. Debuyst conclui que os desafios lançados pelo Concílio e liturgia não tiveram uma concretização real e, por isso mesmo, não assistimos, dum modo geral, a um novo Genius

Loci: “O lugar e o espaço perderam a sua primeira harmonia, a sua lógica própria e, em vez

disso encontraram apenas uma funcionalidade muito relativa”299.

297 Debuyst, FRÉDÉRIC – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 13-14. 298 Debuyst, FRÉDÉRIC – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 14. 299 Debuyst, FRÉDÉRIC – La problématique de l’autel. In Chronique D’Art Sacré. Nº 1, p. 14.

Quando o Altar antigo permanece torna-se clara a necessidade de um espaço real entre ambos, capaz de polarizações diferentes, só deste modo “poderão articular-se e não aglomerar-se no espaço”300. Para F. Debuyst “é imperativo que o Altar seja menor, que seja localizado mais baixo e ofereça à assembleia um tipo de relacionamento diferente da visão meramente frontal”301. Encontramos aqui uma linha de pensamento que podemos explorar. A questão da visibilidade e da relação com o Altar. Para F. Debuyst torna-se claro a prioridade da relação. A sua localização deve favorecer esta dimensão, quer ao nível da assembleia, quer ao nível pessoal daquele que reza. Criar um movimento envolvente do Altar é, diz F. Debuyst, “a única possibilidade para uma real integração do novo Altar”302. Contudo torna-se também evidente que arrancar o existente, como muitas vezes se verifica, não é solução, torna-se desastroso. Este lugar pode ter um carater positivo quando tornado lugar da reserva para o Santíssimo Sacramento, bem como manter a polaridade axial, o seu ponto de contemplação e alegria303.

Encontramos como critérios a ter em consideração na implantação do novo Altar: distâncias, dimensões, compromisso, presença, rigor, profunda humanidade, os materiais (madeira, pedra), o jogo de proporções, a luz, qualidade do clima que envolve todas as coisas, simplicidade, dignidade de presença. Percorrendo estes critérios e sendo livre de qualquer nota dominadora, o Altar será realmente o que deveria ser – a mesa da refeição do Senhor.