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Capítulo V – UMA GRAMÁTICA DE LEITURA

1. Espaço

Tolentino Mendonça no seu livro Elogio da sede392, ajuda-nos a refletir o lugar do Altar partindo da imagem do Jesus periférico. “É curioso que, na sua etimologia, o verbo grego peripherein significa traçar uma linha ou desenhar uma circunferência. Parece um gesto

simples esse. Trata-se, no entanto, de uma decisão antropológica e política da maior importância. Quando traço uma fronteira decido o que está dentro e o que está fora. Estabeleço o próximo e o distante, o prioritário e o acessório. Peripherein fixa assim uma fronteira, uma imperturbável linha de sombra e, com ela, define-se o território geográfico, a paisagem das relações e a própria vida, atuando muitas vezes como se fosse legítimo descartar partes da humanidade, lidando com ela como refugo. […] a periferia condiciona a realidade de uma forma que podemos dizer estrutural. Não podemos, como tal, não nos confrontarmos com ela”393. O lugar do Altar não é apenas uma questão de localização, traduz uma decisão antropológica e política. O Altar disposto no espaço e o modo como o circunscreve criam inevitavelmente a experiência do próximo e do distante. A atitude de fazer florescer o Altar será o diálogo inclusivo que desejamos que este exprima, esteja ele mais centralizado, ou mais afastado. Inevitavelmente Ele torna-se gerador do espaço, possibilidade de encontro mas ao mesmo tempo pode ser obstáculo. Pode assumir uma atitude de descarte contudo terá sempre que se questionar com esses (os periféricos) porque o Altar é lugar de vida. É impossível não ser pensado para aqueles que não se sentem pertença, o Altar é Cristo e este veio para todos.

Neste contexto e neste caminho a questão do espaço é um elemento simbiótico do Altar. Muito nos ajuda a entendê-lo tendo presente as palavras do padre Joseph Gelineau, “o homem tende sempre, consciente ou inconscientemente, a fazer também do lugar que ocupa um símbolo do seu uso, uma imagem do grupo que constitui, um sinal do que vive”394. A não apropriação do espaço e a não compreensão do mesmo inviabilizam a experiência de encontro. É significativo nas palavras de Joseph Gelineau como a realidade circundante não é assessória mas preparatória para a experiência daquele com que o crente se vai encontrar. Ele manifesta três tipos para os lugares de reunião: “o espaço ocupado, a finalidade que preenchem e o significado que têm, não se sobrepõem de maneira indiferente. Condicionam-

392 MENDONÇA, José Tolentino – Elogio da Sede. Lisboa: Quetzal editores. 2018. 393 MENDONÇA, José Tolentino – Elogio da Sede, p.140.

394 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

se mutuamente”395. Fomos vendo a força simbólica do rito, os gestos e palavras contidas

mas claramente compreendemos que toda esta leitura implica uma experiência imersiva da ação litúrgica e esta pede a fé. “O que é específico do rito cristão não são os gestos e os símbolos que lhe são próprios. O específico é a fé: o sentido que tomam os sinais e os símbolos para os crentes”396.

Joseph Gelineau coloca a questão central (e talvez cabal) para desvendar o como prosseguirmos no nosso tempo o que os nossos irmãos na fé fizeram ao longo dos séculos. “Fica por saber o que, hoje, numa sociedade ao mesmo tempo secularizada e herdeira da cultura cristã ocidental, [o que] convém fazer para que as ações simbólicas do culto tenham um significado, não só para o homem religioso de ontem, mas para a fé do homem de hoje”397. Este é o debate no qual devemos empenhar forças. Os fiéis não são incapazes de compreender, mas que esforço temos feito na formação do clero, do Povo de Deus, dos artistas. Verificam-se ritmos diferenciados, cada realidade parece percorrer este itinerário de forma distinta, ao invés, como nas pistas de atletismo, cada um tomar posição mas todos na mesma corrida. Tudo se resume num compromisso com a realidade. “O que é primeiro, em matéria de espaço litúrgico, são as pessoas que se reúnem e o que elas fazem junto em razão da sua fé comum”398.

Para muitos esta questão do lugar e da presença do Altar parece uma questiúncula, porém o homem é, sem dúvida, condicionado, formado, modelado pela realidade que o envolve. “O

espaço para o grupo pequeno e o espaço para o grupo grande correspondem, respetivamente a dois tipos de interação dos participantes. Ao Altar afastado ou próximo, de costas ou de frente para o povo, monumental ou funcional, correspondem outros tantos tipos de relações entre o celebrante e a assembleia. O espaço jamais é neutro”399.

395 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

assembleia litúrgica e a sua presidência, p. 24-25.

396 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

assembleia litúrgica e a sua presidência, p. 26.

397 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

assembleia litúrgica e a sua presidência, p. 26-27.

398 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

assembleia litúrgica e a sua presidência, p. 27.

399 GELINEAU, Joseph – Quando os homens se reúnem. In ALDAZÁBAL, José; LLIGADAS, Josep – A

A terceira parte deste texto de Joseph Gelineau começa por nos recordar que a “liturgia é ação coletiva simbólica de homens que se reúnem. Eles têm de criar os espaços da sua celebração, dar-lhes um rosto à imagem do que fazem e querem chegar a ser”400. Esta afirmação desafia todos num compromisso de que arriscar traçar uma linha não é tarefa apenas do arquiteto mas daqueles que ali tomarão lugar, o espaço é primeiramente deles. Neste sentido, e depois do percurso feito pelo ML e Concílio, percebemos o quanto urge darmos um passo em frente. Joseph Gelineau diz claramente que “as determinações espaciais e plásticas […] não se deduzem inteiramente da natureza dos gestos a realizar. Dependem, ao mesmo tempo, da cultura ambiente e da teologia em vigor”401. Escutar estas palavras leva-nos ao princípio deste caminho e que os documentos do magistério foram alertando – é necessário formar, clero e Povo de Deus. Joseph Gelineau resume em seis as ações simbólicas a ter presente como base para um programa dos espaços destinados ao culto cristão: 1. O encontro dos irmãos que se reúnem; 2. O escutar a palavra; 3. A oração e o canto em comum; 4. O face a face; 5. O banho de água do batismo e 6. A refeição do Senhor.