• Nenhum resultado encontrado

Breves comentários sobre três passagens do diabo na vida de

Anselmo de Bec, segundo a Vita

Anselmi escrita por Eadmero (século

XII).

Joana Scherrer Carniel1

Introdução

Eadmero (1060 – 1129) foi um monge na Igreja de Cristo da Cantuária, autor de uma das maiores e mais detalhadas informações biográficas que se possui acerca de Anselmo de Bec. O monge conhecera Anselmo em uma visita do abade às suas possessões na Inglaterra. Neste período, Anselmo exercia o cargo mais alto do mosteiro beneditino de Le Bec,2 localizado na

Normandia, estando com provavelmente quarenta e seis anos, enquanto

1 A autora é mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas (PPGHis), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), desenvolvendo o projeto de pesquisa intitulado “As representações cristãs do mal e do Diabo segundo a obra De casu diaboli de Anselmo de Bec (séc XI)”, com o apoio institucional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Alberto Feldman. Contato: carnieljoana@gmail.com.

2 Padrão de vida monástica estabelecido por Bento de Núrsia (480-550) que se tornou a principal norma observada por todo o monasticismo ocidental, principalmente entre os séculos X e XI. A escola (destinada ao ensino dos mais jovens consagrados à vida monástica), a biblioteca e o escritório (onde eram copiados manuscritos) tornaram-se aspectos característicos das comunidades beneditinas. Nelas desenvolveu-se uma cultura monástica distinta, com seu estilo próprio de teologia. FERGUSON, S; WRIGHT, D. Novo dicionário de teologia. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 134 et seq.

Eadmero contava com apenas dezenove. A partir daquele primeiro encontro, os homens de fé tornaram-se amigos e Anselmo levou o jovem consigo como seu aluno.

No final do século XI e início do XII, era habitual que os monges de uma comunidade eclesiástica cujo abade lhes parecesse ser um homem de santidade excepcional, procurassem canonizá-lo após a sua morte, baseados em milagres registrados durante a sua vida. Evans discorre que Eadmero estava decidido a escrever de maneira extraordinariamente pessoal, diferente da forma com que um hagiógrafo3 contratado após a morte de Anselmo o faria.4 O autor

em questão não conhecera Anselmo em sua juventude, ou antes de o abade ir à Inglaterra, mas fez o possível para convencê-lo a contar-lhe sobre os anos anteriores de sua vida, a fim de que suas próprias lacunas quanto ao conhecimento sobre a vida de Anselmo fossem preenchidas da maneira mais confiável possível, no caso, pelo sujeito da própria biografia aqui analisada.5

Southern,6 por sua vez, supõe que Eadmero começou a escrever o que viu

e ouviu, e, atuando como discípulo do abade, em pouco tempo aproveitou- se do hábito do mestre de falar sobre seu passado, para escrever sua biografia e hagiografia – a Vita Anselmi (1109-1120).7 Sua abordagem envolve, além

de uma descrição precisa e detalhada, o emprego de dispositivos literários como alegoria e retórica.8

3 Segundo Miatello, no dicionário online de termos literários, hagiografia vem do grego e se refere, etimologicamente, àquilo que foi posto por escrito, mais especificamente escritura sagrada. Historicamente, entretanto, o termo surgiu apenas como adjetivo usado para indicar a sacralidade que se atribuía a um escrito. Pereira explica que a literatura relativa aos santos é comumente designada na Idade Média de Acta, gestae, vitae, passio e legenda. E Miatello, por sua vez, aponta que somente a partir da Escola dos Annales (na década de 1960) os especialistas passaram a usar o termo “hagiografia” numa acepção muito próxima àquela dos autores do medievo, isto é, como sinônimo para designar obras escritas sobre os santos. O gênero textual-discursivo Hagiografia, portanto, surgiu quando os literatos cristãos intencionaram traduzir sua fé por meio de dispositivos discursivos do mundo antigo, como a retórica. Por serem obras escritas, as Vidas dos Santos correspondiam, assim, aos preceitos formais e às regras de composição que eram comumente utilizadas nas práticas letradas da época. Cf. MIATELLO, A. Hagiografia. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, 2009. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>; PEREIRA, A. O Relato Hagiográfico como Fonte Histórica. Revista de Mestrado de História, Vassouras, v. 9, n. 10, p. 161-170, 2007.

4 EVANS, G. Anselm. Londres: Continuum, 1989, p. 1.

5 Miatello chama atenção para o sentido que se dava a uma biografia na Antiguidade e no Medievo: “A biografia antiga se ocupava com a narração da vida de grandes personagens, seus feitos, suas virtudes, as grandezas que construíram, etc. Eram compostas para exaltar esses personagens importantes, para imortalizar a memória de seus feitos.” Cf. MIATELLO, A. Hagiografia... Op. cit.

6 SOUTHERN, R. Saint Anselm and his Biographer. New York: Cambridge University Press, 1963, p. 3.

7 Cf. Eadmero. Vita Anselmi. The Life of St Anselm. Edição, introdução, notas e tradução feitas por Richard Southern. Edinburgh: Thomas Nelson and Sons, 1962.

8 STAUNTON, M. Eadmer’s Vita Anselmi: a reinterpretation. Journal of Medieval History, Elsevier, v. 23, n. 1, p. 1, 1997, p. 1.

A carreira literária de Eadmero de Canterbury, assim, foi quase que exclusivamente voltada à escrita hagiográfica, escrita essa que revela um envolvimento crescente do discípulo-autor com os ensinamentos de Anselmo. Seus escritos mais famosos são a Vita Anselmi e a Historia

novorum em Anglia, que juntos dão conta da vida privada (monástica e

devocional) e pública de Anselmo. No entanto, o monge também ganhou reconhecimento entre os seus contemporâneos por compor diversas outras obras de vidas de santos durante o século XII: a Vita Wilfridi, Vita Odonis,

Vita Dunstani e Vita Oswaldi.

A próxima seção inicia-se traçando a carreira monástica de Anselmo, tendo em perspectiva as narrativas da Vita,9 e, por fim, analisam-se

brevemente três episódios em que o diabo aparece na hagiografia, o que não é algo novo nesse gênero, tendo em vista que desde a Antiguidade Tardia os demônios e seu exército estavam constantemente ameaçando monges e ascetas.