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MAZIOLI, A O Livro das confissões de Martin Pérez e a disciplina corporal na Península

O monge Anselmo e sua ascensão no interior do

49 MAZIOLI, A O Livro das confissões de Martin Pérez e a disciplina corporal na Península

Ibérica do século XIV. 2018. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Espírito Santo, 2018, p. 82. Disponível em: <http:// www.historia.ufes.br/pt-br/pos-graduacao/PPGHIS/detalhes-da-tese?id=9706>.

50 BASCHET, J. Diabo. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C (org.). Dicionário temático do

desviar os bons do caminho reto; sendo o agente do desencorajamento e da perversão doutrinal. Duby,51 por sua vez, afirma: “O mal existe e age

livremente, tem o poder de seduzir os homens e de infestar seu espírito”. Entretanto, sempre perde a batalha. Neste relato, quem o liberta da terrível aflição é a figura santificada de Anselmo, concluindo-se, como faz Baschet que “nos relatos hagiográficos, o diabo é o oponente que valoriza o triunfo do santo herói sobre ele. Para os vivos, esses relatos servem de exemplo e mostram como se livrar dos assaltos do diabo”.52

Por último, Eadmero discorre acerca de um episódio em que Anselmo, já muito conhecido em sua comunidade na Normandia, fora chamado a discursar em diversas abadias circundantes:

as pessoas aglomeravam-se ao seu entorno vindas das mais diversas partes para buscar seus conselhos. Sua notoriedade alimentou fortemente a inveja do diabo, que tentou desvir desse propósito os fiéis por enganos secretos, se possível, ou por ameaças abertas.

Por exemplo, havia um certo cavaleiro chamado Cadulus, que uma noite estava vigiando e orando a Deus, quando ouviu o diabo, passando-se pela voz de seu escudeiro, gritando e fazendo um alvoroço fora da igreja onde encontrava-se, lamentando que seu alojamento havia sido saqueado por ladrões que apreenderam e levaram seus cavalos e todos os seus bens, os quais nunca seriam recuperados, a menos que ele viesse rapidamente. Mas o cavaleiro, pensando ser um mal maior deixar de rezar do que perder seus bens, não fez nenhum movimento. Nisso o diabo, enraivecido com o desprezo com que fora tratado, transfigurou-se um urso, pulou de cabeça pelo telhado da igreja e caiu diante do devoto homem, esperando perturbá- lo em seu momento de oração, pelo horror e barulho de sua queda. Mas o cavaleiro, tomado por sua fé, permaneceu quieto e enfrentou o monstro sem movimento. Depois do ocorrido, o homem quis construir sua vida sobre fundamentos mais sacralizados, aproximando-se de Anselmo com a intenção de obter seus conselhos sobre este assunto.

Enquanto ele avançava seu caminho, o Inimigo perverso irrompeu com um grito humano ao seu lado, proferindo estas palavras: ‘Cadulus, Cadulus, onde tu estás indo?’ Interpelado, o cavaleiro parou desejando conhecer de quem era a voz que dirigia-se a si, e o diabo repetiu suas palavras, dizendo: ‘Para onde tu vais Cadulus? O que é que te obrigas tanto a visitar aquele prior hipócrita? Certamente tua reputação está muito em desacordo com o modo de vida dele. Por isso, meu conselho sincero é que tu voltes rapidamente, desvencilhando-se do risco de ser enganado por ele e ficar preso à loucura que agora o conduz. A sua hipocrisia já enganou muitos e, depois de os adular com vãs esperanças, despojou-os e deixou-os desamparados.’ Quando ouviu estas palavras e reconheceu que era o diabo quem as proferia, fortificou-se

51 DUBY, G. O ano mil. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 137. 52 BASCHET, J. Diabo... Op. cit., p. 324.

com o sinal da cruz e continuou o seu caminho, ignorando o Inimigo. E depois? Ele ouviu Anselmo e, negando a si mesmo e renunciando ao mundo, entregou-se a uma vida religiosa tornando-se monge.53

Aqui o demoníaco reveste-se de inveja da popularidade e confiança atribuídas ao prior. Seu discernimento espiritual foi dramatizado por Eadmero nas materializações do diabo, que enfurecera-se ao ver a luz de Deus que brilhava sobre o monge. E, aparentemente sem justificação, é manifesto o esforço do diabo em aproximar-se e apossar-se do “bom homem” que estava na Igreja em oração.

Como estratégia de aproximação, a entidade assume a voz do escudeiro (uma de suas inúmeras armadilhas e metamorfoses) e tenta desviar Cadulus de suas preces, inventando mentiras acerca do roubo de seus bens. Todavia, desencaminhá-lo parece ser um trabalho árduo, pois o cavaleiro não dá atenção à encenação e persevera em sua ação – a prece, no medievo, era uma verdadeira arma contra às artimanhas demoníacas – e, desprezado, o diabo altera sua aparência para a de um urso, uma de suas características multifacetadas, objetivando distrair o homem por meio do medo e do espanto.

Após este episódio, o cavaleiro vai em direção a Anselmo e, durante seu percurso, o inimigo torna-se mais incisivo, procurando ofender e invalidar a imagem de santidade do prior. Mais uma vez renegado pelo homem, Cadulus aconselha-se com o monge e convence-se de que deve entrar para a vida monástica.

53 Tradução livre do inglês: “So people crowded to him from diverse parts to seek his counsel. At this the devil was sharply pricked with envy, and he tried to turn them aside from this purpose by secret deceits if possible, or otherwise by open threats. For instance, there was a certain knight called Cadulus, who was one night keeping vigil and saying prayers to God, when he heard the devil shouting and making an uproar outside the church where he was, in a voice like that of his squire,’ bewailing that the lodging had been broken into by robbers who had seized and carried off the knight’s horses and all his goods, which would never be recovered unless he came quickly. But the knight made no movement, thinking it a greater evil indeed to cease praying than to lose his goods. At this the devil was grieved at the contempt with which he was treated and, turning himself into the likeness of a bear, leaped headlong through the roof of the church and landed in front of him, hoping to disturb the knight in what he was doing by the horror and noise of his fall. But the knight remained quite still and braved the monster unmoved. After this, he wished to build his life on a more holy foundation, and he approached Anselm with the intention of obtaining his advice on this matter. While he was hastening on his way, the wicked Enemy broke forth into a human cry at his side, uttering these words: ‘Cadulus, Cadulus, where are you going?’ At these words the knight stopped, wishing to know who it was who had spoken, and the devil repeated his words, saying, ‘Where are you going Cadulus? What is it that so strongly compels you to visit that hypocrite prior? Certainly his reputation is quite at variance with the manner of his life. So my earnest advice is that you should return quickly, in case you are led astray by him and are entrapped in the folly which now leads you on. For his hypocrisy has already deceived many and, having buttered them up with vain hopes, has stripped them and left them destitute.’ When he heard these words and recognised that it was the devil who spoke, he fortified himself with the sign of the cross and continued on his way, ignoring the Enemy. And what then? He listened to Anselm, and having denied himself and renounced the world, he gave himself up to a religious life, and became a monk”. Eadmero. Vita Anselmi... Op. cit., I, XXV, p. 42-43.

Pode-se observar que o diabo que aparece nesta passagem relaciona- se ao que Muchembled comenta acerca da figura do demônio antes do século XII,54 um personagem que não inspira um terror extraordinário e

paralisante. Eadmero apresenta uma espécie de diabo humano, disforme, certamente mau e agressivo, uma condição em que poderia ser encontrável na época. Contudo, sua agitação contra Cadulus e Anselmo apenas o torna mais vivo e serve igualmente para realçar a superioridade da vida monástica, baseada no ideal de serenidade e benevolência.

Considerações finais

Anselmo, além de considerado santo pela Igreja, fora também um homem de carreira multifacetada, do estudante leigo, o monge simples, o professor e sujeito ativo na comunidade do mundo anglo-normando, eminente estudioso e teólogo, prior, abade e, finalmente, arcebispo. Sua carreira tanto política quanto eclesiástica é notável.

A Vita Anselmi, longe de ser a verdade sobre o personagem histórico, é também uma interpretação da vida de Anselmo informada pela tradição da Igreja. Eadmero tinha uma série de objetivos em mente ao escrever a Vita: representar eventos, exaltar Anselmo como santo, defender a reputação de seu mestre, edificar o leitor através do exemplo de Anselmo e do discurso relatado.55

Os capítulos da Vita aqui recortados demostram que a santidade do prior não só lhe dá a capacidade de lutar com sucesso contra os demônios que aparecem, mas de também vislumbrar as razões pelas quais a vocação monástica deve ter precedência sobre todos os outros deveres.

Por certo, o diabo é o resultado da exegese cristã para o mal. Representa assim a significação de forças hostis, dentro e fora da consciência, a destrutividade deliberada. Suas imagens muitas vezes refletem as estruturas com as quais ele estava familiarizado na sociedade do seu tempo, podendo- se entender, assim, que sua caracterização é descontínua, inclusive nos relatos de Eadmero. Ele é observado sobretudo através das ações que realiza e dos efeitos que produz. Malgrado a este fato, cabe ressalvar, como defende Delumeau,56 que somente a partir da Idade Moderna é que o

54 MUCHEMBLED, R. Uma história do diabo: séculos XII-XX: Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001, p. 23.

55 STAUNTON, M. Eadmer’s Vita Anselmi... Op. cit., p. 14.

56 Cf. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800 – uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

demoníaco torna-se o monstro grandioso e o temor da humanidade como um todo.

O tempo da escrita da Vita Anselmi, isto é, os séculos XI e XII, são o período em que, paulatinamente, o diabo passa a ocupar mais espaço na crença dos cristãos ocidentais, tornando-se uma figura mais presente no cotidiano, sem estar, entretanto, em primeiro plano, sem causar medo generalizado, como podemos atestar nos próprios relatos aqui expostos. O monge deve estar constantemente consciente do perigo do diabo, mas, pela graça divina e sua vida ascética, ele é sempre mais forte que o demônio e tem consigo a habilidade de repulsá-lo.

Referências Bibliográficas

Fonte

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