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O Debate: um jogo de mentiras e vitórias

Nos dias 20, 23, 26 e 27 de julho; e 04 de agosto de 1263 a cidade de Barcelona, capital do reino catalano-aragonês, sediou uma disputa pública que aconteceu entre um judeu convertido ao Cristianismo, chamado Pablo Christiani, e o rabino, Moises Nachmânides.

Ao longo de cinco sessões diárias o Debate ocorreu a fim de tratar dos assuntos expostos nos textos talmúdico-midráshicos concernentes a vinda do Messias, sua divindade e a veracidade da Torá. O rabino participante teve a permissão de defender o Judaísmo; um caso inédito dentre as

4 O Talmude é um livro central para o Judaísmo, composto por uma coletânea da Lei Oral (registro das discussões rabínicas) organizada primeiramente no final do século II d.C. por Rabi Iehudá Hanassi. Essa primeira parte chama-se Mishná e a ela foram acrescidas outras duas partes da Lei Oral em épocas posteriores por diferentes rabinos, Guemará da Palestina e Guemará da Babilônia. Logo existem duas versões diferentes do Talmude, o Talmude de Jerusalém, composto pela Mishná e Guemará da Palestina, e o Talmude da Babilônia, composto pela Mishná e Guemará da Babilônia. Como parte do conteúdo talmúdico encontram-se os Midrashim (sg. Midrash, raiz hebraica darash, significa busca ou pesquisa), de onde vieram as principais referências interpretadas como cristológicas pelo lado cristão. As narrativas do Midrashim são definidas como Agadá (significa narrar ou relatar). Agadá são estórias ilustrativas pelas quais são feitas analogias poéticas a fim de ensinar uma lição moral. FELDMAN, S. A. Perspectivas

da unidade político-religiosa no reino hispano visigodo de Toledo: As obras de Isidoro de

Sevilha e a questão judaica. Tese (Doutorado em História). Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 2004, notas 48 e 53; SCARDELAI, D. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros Messias. São Paulo: Paulus, 1998, p. 46.

5 BEINART, H. Los judíos en España. Madrid: Mapfre, 1992, p. 104-108; PARRONDO, C. C. Polemica judeo-cristiana en los reinos hispânicos. Revista española de filosofia medieval, Salamanca, n. 3, p. 35, 1996.

6 ROMERO-CAMACHO, M. Los judíos en la Edad Media española. Madrid: Arco Libros, S.L, 2001, p. 37.

7 BEN-SHALOM, R. Between official and private dispute: the case of Christian Spain and Provence in the Late Middle Ages. AJS Review, v. 27, n. 1, 2003, p. 37.

discussões públicas medievais. Após o evento não houve episódios de

violência contra a comunidade judaica e muito menos conversões forçadas. E um frade dominicano, alguns dias depois, protocolou com o selo real, O Relato cristão do Debate de Barcelona, fazendo uma descrição sucinta

do que julgou ser a esmagadora derrota judaica durante as discussões. Munidos pela vitória, os pregadores dominicanos seguiram pelas regiões de Barcelona e da França a fim de propagar a novidade de seus métodos evangelísticos entre os judeus, garantindo-lhes que o Talmude continha passagens de referência a Cristo que não haviam sido “contaminadas” pela oposição de seus mestres rabinos.

Do lado judaico, passados dois anos, o rabino escreveu e circulou a sua versão do evento que veio a se chamar O Vikuah de Nachmânides. De maneira pormenorizada ele descreveu com ironia e sarcasmo como era absurda a compreensão dos textos talmúdico-midráshicos pelo viés cristológico e em várias partes de seu relato o tom de seu discurso se fez como uma autodeclaração da vitória judaica sobre o Cristianismo.

Diante dessas divergências narrativas sobre o mesmo evento a historiografia tradicional tentou desvendar quem foi o vencedor do Debate e qual o relato é o mais confiável. O primeiro pesquisador foi o historiador judeu Heinrich Graetz. Em seu artigo Die Disputation des

Bonastruc mit Frai Pablo in Barcelona (1865), fez uma comparação entre

os dois relatos, chegando a conclusão de que o autor do relato latino alterou o resultado da disputa oral com objetivo de reparar qualquer dano que a rejeição bem-sucedida de Nachmânides aos argumentos de frei Pablo pudesse ter causado aos propósitos dos frades medicantes em converter os judeus.

Contrário a proposta de Graetz, o artigo do medievalista cristão Heinrich Denifle, Quellen zur Disputation Pablos Christiani mit Mose

Nachmani zu Barcelona (1887), argumenta que o relato de Nachmânides

possuiu algumas artimanhas para esconder sua humilhante derrota no debate, pois seria inviável o rabino discursar num evento público com a presença de autoridades cristãs em um tom irônico e com argumentações que desqualificava a fé cristã.

No mesmo ano da publicação do artigo de Denifle, Isadore Loeb, em La

controverse de 1263 à Barcelone, lançou seu contra-argumento de defesa a

veracidade do relato hebraico, concluindo que o relato de Nachmânides era o mais verossímel em relação à sua contraparte latina, que deformou os acontecimentos.

Yitzhak Baer (On the Disputations of R. Yehiel of Paris and R. Moses

ben Nahman, 1930-31), segue a mesma proposta de Loeb, porém o critica

por não discutir com seriedade algumas falas do rabino e nem apontar para as possíveis deficiências do relato. O historiador deu início a um tratamento crítico, apartidário e objetivo dos documentos da disputa. Para ele o objetivo do relato era promover os argumentos de defesa do Talmude que Nachmânides utilizou, por isso o documento não deveria ser considerado um registro factual no sentido moderno ainda que apresente os fatos históricos muito melhor do que o relato cristão.

Baer argumenta que seria inviável acreditar na impressão que o relatório transmite de um debate de longo alcance cobrindo os pontos de divergências filosófica entre Judaísmo e Cristianismo (o que colocaria em discussão temas de questionamento a veracidade da fé cristã). Porém, ele acredita que as respostas sobre o textos da Bíblia hebraica e do Talmude muito provavelmente foram ditas por Moises Nachmânides ao longo da discussão oral. Mas assevera que, mesmo quando corretamente narrada, nem sempre se deve acreditar que o rabino apresenta seu verdadeiro pensamento sobre o assunto discutido e que não houve um arbítro para definir quem de fato venceu a disputa.

No entanto, após o trabalho de Baer, ainda foram feitas tentativas por parte de alguns pesquisadores em provar quem possivelmente venceu a disputa. Martin Cohen,8 por exemplo, considera Nachmânides o perdedor

da discussão pois ele acredita que Christiani conseguiu empregar com êxito a estratégia de provar dentro da própria literatura judaica o dogma do Cristianismo. Ele ainda acrescenta que Christiani conhecia os trabalhos e as opiniões de seu oponente e por isso selecionou com perspicácia seus argumentos.9 Hyam Maccoby,10 em contrapartida, tenta provar que

Nachmânides obteve a vitória ao ser mais convicente do que Christiani. Ele defende o relato hebraico como uma representação verdadeira e profunda do que foi discutido em Barcelona e que a eloquência dos argumentos do rabino foi o que determinou sua vitória na disputa.

8 Cf. COHEN, M. Reflections on the text and context of the Disputation of Barcelona. Hebrew

Union College Annual, v. 35, p. 157-192, 1964.

9 Segundo Martín, Nachmânides escreveu várias obras, dentre elas as de cunho exegético, cuja principal foi Perus al ha-Torá com comentários sobre o Pentateuco; e as de cunho moral, que incluíam cartas, prosas, poesias e homilias; obras sobre a halacha; escritos críticos; responsa; obras cabalísticas. Cf. MARTÍN, Alfonso T. La Disputa de Barcelona em 1263: controversia judeocristiana. Salamanca: Kadmos, 2009, p. 84-94.

10 MACCOBY, H. O Judaísmo em julgamento. Os debates Judaico-Cristãos na Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Como Baer, Robert Chazan duvida que Nachmânides tenha sido capaz de falar livremente na discussão oral como descreve em seu relato.11 No

entanto, Chazan não acredita que o rabino mentiu ao descrever sua versão

do debate. Ao se colocar como autoconfiante e no comando da discussão,

o autor sugere, que Nachmânides adotou elementos de “embelezamentos e exageros”. O que nada mais são, segundo ele, categorias de ficção colocadas na narrativa de modo triunfante para fazer objeção aos empreendimentos da campanha proselitista dominicana, alertar os judeus sobre os novos métodos cristãos e a maneira de se defenderem perante possíveis discussões.12

Quanto a narrativa latina, Chazan entende que é totalmente desigual no tratamento do debate quando comparada com a contraparte hebraica, pois a intenção do autor não foi elaborar um resumo preciso e detalhado,13 foi

antes, representar sucintamente a triunfante “vitória” cristã. Ele defende que a descrição da agenda é exata, a maneira como ocorreu a convocação da discussão é precisa, no entanto, a exposição do processo é frequentemente fraca.14

Concordamos com Chazan e compreendemos que os dois relatos do Debate de Barcelona podem ser analisados como uma construção da realidade sem que seja necessário julgar entre eles ou aceitar a priori a maior confiabilidade de um ou de outro. Como assinala Del Valle,15 não

devemos estranhar as disparidades dos relatórios, pois se trata de duas obras polêmicas que foram escritas a partir de interesses contrapostos.