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Cf ELIAS, N; SCOTSON, J Os estabelecidos e os outsiders Op cit.

O Debate: um caso de relações de poder

42 Cf ELIAS, N; SCOTSON, J Os estabelecidos e os outsiders Op cit.

foi obtendo êxito e a Igreja Católica ganhando mais espaço nos territórios ibéricos a definição do outro e sua localização à margem da sociedade tornou-se mais visível.

Elias & Scotson ainda definem o grupo que tem o poder de estigmatizar como estabelecidos,43 que no contexto estudado são os cristãos, e o

grupo estigmatizado como outsider, os judeus. Os estabelecidos veem- se como pessoas “melhores”, dotadas de virtudes que falta aos outros, o que lhes fazem cerrar fileiras contra o grupo outsider a fim de preservar a superioridade do poder de seu grupo e a evitar o contato social mais próximo com o grupo outsider. Desta maneira são elaborados estigmas, associados a tipos específicos de fantasias coletivas, que refletem e justificam a aversão de seus membros ao grupo outsider, como, por exemplo, que estes são desordeiros, desrespeitam as leis e as normas e possuem atributos humanos inferiores: são anômicos.44

É partindo desses pressupostos que compreendemos o contexto de produção das versões do Debate de Barcelona. Na versão latina, por exemplo encontramos vários trechos que define a inferioridade dos judeus:

ele (Moisés Nachmânides) não merecia ser chamado de ‘Mestre’, pois que nenhum judeu merecia ser chamado por esse nome desde o tempo da paixão de Cristo.

como ele não conseguia responder e havia sido derrotado muitas vezes em público, e tanto judeus como cristãos o estavam tratando com desdém, ele disse obstinadamente diante de todos que não responderia mais nada. é evidente que ele estava tentando escapar do Debate através da mentira. ele não tem coragem e nem capacidade de defender seu credo errado.45

O sucinto protocolo cristão não apresenta o modo como se seguiram as discussões, mas como observado nos trechos acima, ele destaca a humilhação rápida e irrevogável do rabino alegando que em algumas ocasiões ele se viu reduzido ao silêncio, foi apanhado em óbvias inconsistências, fez algumas admissões que depois retirou e por fim sumiu de cena perturbado. Afirmando que Nachmânides foi Incapaz de defender o seu credo errado, sendo, por isso, totalmente derrotado. Neste sentido, entendemos que devido a posição de “poder” em que estava o lado cristão a atitude adotada foi se apropriar de referências do Talmude com objetivo de estabelecer- se sobre o grupo rival, representado pelo rabino, como uma tentativa de

43 ELIAS, N; SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders... Op. cit., p. 19 et seq. 44 Ibidem, p. 35 et seq.

diminuir/excluir a presença do Judaísmo dentro daquela sociedade. Por isso a recorrência de termos depreciativos quando se refere à compreensão do outro e a definição da nomia interpretativa cristã dos textos talmúdicos.

No entanto, segundo Elias & Scotson,46 em momentos de instabilidades

no poder, com as tensões que lhe são inerentes, pode ocorrer uma certa alteração na peça central da figuração estabelecidos e outsiders, fazendo com que esse grupo contra estigmatize o grupo dominante. Quando pensamos no contexto aragonês do século XIII podemos constatar que o momento era de rupturas e instabilidades. Momento de rupturas, pois sinalizava que os tempos de intolerância estavam chegando (a própria convocação do rabino para o Debate representa a circunstância adversa), mas ainda havia o contraste das atitudes de tolerância, como foi a liberdade de expressão garantida a Nachmânides. A instabilidade no poder era capitaneada pelos dominicanos que queriam converter os judeus a todo custo e pela posição ambígua do monarca que também queria a conversão dos infiéis, mas, em contrapartida, garantir seus direitos básicos e defender o rabino a todo custo.

Aproveitando-se das circunstâncias, acreditamos que Nachmânides soube dar uma amostra dos principais pontos de divergências entre Judaísmo e Cristianismo e lançou seu relato como um modo de contra estigmatizar o grupo cristão, assim ele diz:

E foram eles mesmos (os sábios do Talmude) que nos ensinaram a religião de Moisés e dos judeus, pois tudo o que fazemos hoje é de acordo com o Talmude e de acordo com os costumes e práticas que observamos nos sábios do Talmude, desde o dia em que foi composto até agora. Pois que todo o propósito do Talmude é nos ensinar a prática da Torá e nos ensinar como os nossos pais a praticaram nos dias do Templo pelos lábios dos profetas e pelos lábios de Moisés [...]. E se eles acreditaram em Jesus e em sua religião, porque não fizeram como frei Paulo, que entende suas palavras melhor do que eles próprios?

Mas doutrina na qual acreditais e que é o fundamento de vossa fé, não pode ser aceita pela razão, não encontra base na natureza e tampouco os profetas jamais a expressaram.47

Deste modo, o rabino seguiu contestando o fundamento lógico de todos os argumentos de Pablo Christiani que indicavam como as passagens da

Agadá, extraídas do Talmude e do Midrash, deveriam ser consideradas

como base da doutrina cristã. Para Nachmânides, tal exegese seria absurda. Ele argumentou que era preciso entender o estilo da Agadá para interpretá-

46 ELIAS, N; SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders... Op. cit., p. 35 et seq. 47 NACHMÂNIDES, M. Vikuah... Op. cit., cap. 7, p. 113 et seq; 129.

la, pois seus duplos ou múltiplos sentidos permitiam a qualquer um pensar o que quiser.

Cada referência deveria passar pelo crivo da legitimação rabínica para saber se tem ou não autoridade. Por este modo, o método de argumentação/ defesa utilizado por ele foi diminuir ou anular a importância de todas as referências agádicas utilizadas em sentido cristológico por frei Pablo, afirmando que ora não possuíam base legal, ora não passavam de alegorias. Ele ainda ironizou seu oponente, atenuou a importância do Messias para o Judaísmo e criticou a história do Cristianismo. Por várias vezes sugeriu que seus argumentos foram mais plausíveis e racionais. Além disso, sua narrativa detalhada em forma de diálogo faz a contagem precisa do debate, incluindo seus longos argumentos, enquanto as questões colocadas por seu rival são breves e incompletas, ele ainda acrescenta alguns comentários e interjeições do público feitas em seu favor.

Neste sentido, somos impelidos a concordar com Ora Limor que, ao comentar sobre a versão de Nachmânides e o tom de seu discurso,48 entende

que o “poder” pode ser exercido de maneiras diferentes e através de várias formas de expressão. Para a autora, a recusa dos judeus em reconhecer a verdade do Cristianismo era um grande pecado aos olhos dos cristãos, mas era também uma espécie de demonstração judaica de poder. Ela acredita que o rabino foi capaz de criticar o Cristianismo sem realmente se entregar à blasfêmia. Ao empregar a retórica, a ironia, o sarcasmo e outros modos sutis de expressão à disposição do debatedor, ele certamente foi cauteloso, mas ainda sabia como defender sua opinião.

O discurso do rabino é revelador no que diz respeito a autoconsciência e autoconfiança de um líder judeu e uma comunidade minoritária judaica naquele período. Neste ponto de vista, entendemos a partir das concepções de Kurt Lewin,49 que um grupo minoritário em situações de dominação ou

perseguição se utiliza de certas modalidades de sobrevivência, no caso por nós analisado foi o escrito de Nachmânides em seu tom orgulhoso. Estas modalidades, garantem a coesão da comunidade minoritária através de traços culturais próprios a este grupo e irredutíveis às culturas vizinhas, o que inspira atitudes de lealdade grupal rudimentares da tradição ancestral. Para nós, rabi Moises através de uma demonstração do que consistia o Talmude para o Judaísmo estava elaborando argumentos para garantir a sobrevivência segura da tradição na mente e coração de seus correligionários.

48 LIMOR, O. Beyond Barcelona. Jewish History, Los Angeles, v. 9, n. 1, 1995, p. 111. 49 LEWIN, K. Cultural Reconstruction. Journal of Abnormal and Social Psychology, v. 38, p. 166 et seq, 1943.

Como observa Chazan,50 Nachmânides estava convencido da necessidade

de elaborar um trabalho que o representasse como vencedor; o contexto de instabilidades fez com que o rabino tivesse alguma confiança na capacidade da influência judaica para protegê-lo, como acabou por fazê-lo. O tom orgulhoso de seu texto, que geralmente não era comum nas relações entre judeus e cristãos na Idade Média e nem seria durante muitos séculos posteriores, foi seguramente dito aos judeus das gerações seguintes e fez apresentar a disputa de Barcelona como um categórico triunfo judaico.51

Considerações finais

A convocação do debate de Barcelona se insere num tempo de rupturas: ali ocorreu o único caso na história dentre as polêmicas medievais em que foi permitido a um porta-voz do Judaísmo discursar livremente em defesa da sua fé. Aproveitando-se dessa situação, Nachmânides conseguiu lançar seu relato como um modo de contra estigmatizar o grupo cristão. No entanto, a relativa tolerância concedida a Nachmânides atuou em conjunto com a intolerância da nomia interpretativa cristã das fontes rabínicas. Tal nomia irá estabelecer-se como parte do processo de ameaça sobre a identidade judaica que desestabilizará progressivamente a vida dos judeus sefaradí passando pela perseguição e estigmatização social dos judeus conversos durante os séculos XIV e XV até consumar-se no trágico desenlace da expulsão de 1492.

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50 CHAZAN, R. Barcelona and Beyond... Op. cit., p. 98. 51 MEYUHAS GINIO, A. Nahmánides... Op. cit., p. 1533.

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