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religião e fé no Guia dos Perplexos de Maimônides (1190 E.C.)

Layli Oliveira Rosado1

Introdução

São inegáveis o desenvolvimento intelectual e a circulação de ideias durante a Idade Média, resultado direto do embate entre as três religiões monoteístas, das descobertas e das traduções da filosofia grega e da literatura polêmica que floresceu entre os séculos X e XIV. No entanto, ainda que tenha existido um profícuo espaço para a prática e o exercício intelectual, não se pode perder de vista que o ambiente era de profundo radicalismo, com perseguições e conversões forçadas, que permeavam a maioria das regiões do Sul da Europa e do Norte da África, especialmente no que tange à minoria religiosa judaica.

Salienta-se, em concordância com Andre Chouraqui,2 que a legislação

política e dominante vigente servia para convencer os muçulmanos de que os judeus integravam a comunidade de uma “subespécie” que deveriam aceitar e respeitar, ressalvada sua posição inferior, com o objetivo de cumprir com os ensinamentos do profeta Maomé. Isto é, a ideia de que haveria “tolerância”, seja ela política, social ou cultural, consiste, de fato,

1 Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em História Social das Relações Políticas, Bacharel em História e em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com estudos que versam sobre História Judaica, História da Arte e História e Filosofia do Direito. | Endereço eletrônico: laylirosado@gmail.com.

2 CHOURAQUI, A. N. Between East and West: a history of the jews of North Africa. Illinois: Varda Books, 2001, p. 47.

numa “tolerância desdenhada”, na qual se rememora cotidianamente o

status de categoria de povo inferior.

No entanto, superado esse entendimento, destaca-se que um dos fatores para o desenvolvimento cultural nas regiões dominadas pelos muçulmanos se deu, a grosso modo, pela circulação de ideias e pessoas, e pelo acesso aos textos produzidos na Antiguidade. Esses últimos foram traduzidos, num primeiro momento, para o árabe e para o siríaco, permitindo que filósofos dessas regiões recepcionassem esse conhecimento e começassem a produzir comentários e compêndios sobre a filosofia grega. De fato, tais traduções foram iniciadas pelos árabes e muçulmanos em comunidades diversas, na Europa e no Norte da África, por volta do século X.3

Assim, ao alcance dos letrados, fossem eles muçulmanos ou judeus, estavam a ciência e a filosofia que haviam sido produzidas no período Antigo.4 Isso é crucial para a compreensão do pensamento maimonidiano,

visto que seu ponto de partida e sua fonte são os filósofos árabes e muçulmanos, os quais são fundamentais para a sua formação intelectual. Não obstante, a recepção dos trabalhos de Aristóteles não ocorreu de forma direta. Não há comprovação de que Maimônides tenha lido efetivamente os escritos gregos, mas sim aqueles produzidos pelos estudiosos árabes e muçulmanos, os quais afirmavam abordar concepções e perspectivas platônicas e aristotélicas.5 De maneira geral, trata-se de uma longa linha de

recepção, apropriação e difusão de conhecimento no decorrer da história.6

Segundo Nachman Falbel,7 o pensamento maimonidiano utiliza-se do

aporte da lógica inerente à filosofia grega no intuito de explicar e demonstrar fundamentos da religião judaica. Isto é, um dos objetivos primários de Maimônides era demonstrar a possível conciliação entre razão e fé judaica na interpretação das Escrituras Sagradas. Todavia, ele não foi o primeiro, nem

3 As chamadas casas de sabedoria em muito facilitaram o acesso à filosofia produzida na Antiguidade. No entanto, cumpre destacar que o árabe, durante a Idade Média, abrange um conjunto de dialetos. Cf. CHOURAQUI, A. N. Between East and West: a history of the jews of North Africa. Illinois: Varda Books, 2001.

4 Cf. BEN-SASSON, H. H. (org.). A History of the jewish people. 12 ed. Massachusetts: Harvard, 2002; FRANK, D. H.; LEAMAN, O. (org.). Cambridge companion to medieval Jewish

philosophy. Cambridge: Cambridge University, 2002.

5 Cf. GUTTMANN, J. A filosofia do Judaísmo: a história da filosofia judaica desde os Tempos Bíblicos até Franz Rosenzweig. São Paulo: Perspectiva, 2003.

6 Cf. CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difusão, 1990; Idem. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010; CHAMBERS, I.

Border Dialogues: Journeys in Post-Modernity. Londres: Routledge, 1990.

7 Cf. FALBEL, N. Aristotelismo e a polêmica maimonidiana. Leopoldianum, Santos, v. XI, n. 32, p. 59-70, dez. 1984.

o único, a tentar aproximar religião e filosofia grega (neoplatônica), visto que tal pretensão já existia no pensamento judaico medieval desde o século X. Destaca-se, efetivamente, a significativa contribuição maimonidiana para esse diálogo, especialmente no seio do Judaísmo, tendo em vista as recepções e polêmicas geradas pelos seus escritos.

Maimônides

Moisés ben Maimon, também muito conhecido como Maimônides, nasceu por volta de 1134 E.C., em Córdoba, na região da Andaluzia. Na literatura rabínica, ficou conhecido pelo acróstico Rambam,8 e há uma

lenda em torno do seu nascimento na tradição judaica. Acredita-se que o profeta Elias enviou uma mensagem ao seu pai, Rabi Maimon ben Iossef, dizendo que ele deveria ir a Córdoba e que o seu filho, após casar-se com a filha do açougueiro, iria escrever a “segunda lei do povo judeu”.9

Quando Maimônides tinha treze anos, por volta de 1148, Córdoba foi dominada pelos Almôades. Como a família Maimon não se converteu, foi obrigada a abandonar a cidade, e acabaram vagando por territórios da Andaluzia por cerca de dez anos. Em suas correspondências pessoais é frequente o Rambam mencionar esse período de instabilidade e intolerância. Gerard Haddad explica que Maimônides mencionava que continuava sendo “um homem da Hispânia cujo prestígio havia sido rebaixado ao exílio”.10

Após o período de exílio, por volta de 1164 E.C., a família de Maimônides se fixou em Fustat.11 Ainda que estivesse vagando em exílio,

foi durante esse longo período que Maimônides sedimentou seus estudos, assimilando a literatura rabínica e talmúdica, a astronomia e a filosofia grega, através das traduções e dos comentários realizados pelos árabes. Com o falecimento de seu pai e de seu irmão, Maimônides recusou a oferta de receber da comunidade pelo exercício de mestre e juiz da comunidade judaica de Fustat, pois ele condenava que um rabino ou um funcionário religioso fosse sustentado pelos fiéis. Por isso, exerceu a medicina, área em que também logrou considerável proeminência.

A atividade de Maimônides como médico e como líder espiritual e intelectual local o permitiu deixar um legado de escritos em diversas áreas,

8 A palavra “Rambam” vem das iniciais do seu nome: Rabi Moisés ben Maimon. 9 KOOGAN, A; ROSS, R (org.). Enciclopédia judaica. Rio de Janeiro: Tradição, 1967. 10 HADDAD, G. Maimônides. São Paulo: Liberdade, 2003.

dentre elas medicina, filosofia e teologia. Além disso, seu destaque entre os sábios estudiosos da Torá e do Talmude de seu tempo o propiciou exercer a posição de guia incontestável da comunidade judaica do Egito, ou seja,

nagid, em 1177 E.C. O Rambam exercia, assim, importante papel na vida

pública dos judeus na comunidade em que vivia e em regiões circunvizinhas. A função de nagid permitia que Maimônides exercesse a proteção das comunidades judaicas que estivessem sob sua influência, bem como favorecia o desenvolvimento cultural judaico. De tal prestígio e reconhecimento na prática da medicina, ocupou, também, o cargo de médico da corte de Saladino. Com o passar dos anos, o Rambam conciliou os estudos talmúdicos e rabínicos, com os da filosofia, a vida pública e a medicina. Ao fim da sua vida, vem a falecer por volta de 1204 E.C., sendo enterrado em Tiberíades.12

Dos seus estudos, três escritos se destacam: o Comentário sobre a Mishná (1168 E.C.), o Mishné Torá (1180 E.C.), e o Guia dos Perplexos (1190 E.C.). O primeiro é fruto dos seus estudos acerca do Talmude de Jerusalém13 e

da Mishná. Foi a primeira grande obra de exegese talmúdica realizada por Maimônides, na qual propõe expor a essência da Lei oral judaica. Com o avanço de seus estudos sobre a filosofia, o Rambam escreveu sua segunda grande obra supracitada, a qual constitui um código de catorze volumes em que procura sistematizar a Lei Oral e conceituar alguns dos princípios filosóficos que julgava relevante.

A medida que o aporte filosófico passou a ganhar mais espaço no pensamento maimonidiano, ele passou a se dedicar em demonstrar os princípios que apresentou no Mishné Torá de forma ainda mais racional. O resultado desse estudo culminou no seu principal escrito, o Guia

dos Perplexos,14 o qual segue sendo considerado como um marco do

pensamento especulativo e da filosofia judaica durante a Idade Média.