• Nenhum resultado encontrado

O Guia dos Perplexos,15 escrito originalmente em árabe, foi terminado

por volta de 1190 E.C. e posteriormente traduzido por Samuel ibn Tibbon

12 Cidade situada ao Norte de Israel.

13 O Talmude de Jerusalém, ou Talmud Yerushalmi, foi compilado em Israel por volta dos séculos IV e V E. C.

14 O título original no árabe é Dalalat al-Ha’irin. Foi traduzido para o hebraico por Samuel ibn Tibbon como Moré Nevuchim.

15 Tendo em vista o original em árabe, o presente estudo se faz com cotejamento de traduções no hebraico, no inglês, no francês e no espanhol. A utilização de referências na língua inglesa se faz, tão somente, para facilitar a reprodução, e por ser o idioma mais utilizado academicamente.

(c. 1150 – 1232), por volta de 1202 e 1213 E.C. Sendo considerado uma leitura difícil, é nele que Maimônides propõe demonstrar a conciliação entre filosofia grega e a religião judaica.

A motivação inicial que levou o Rambam a escrever o Guia foi uma correspondência que recebeu de seu pupilo, Rabi Joseph ibn Aknin (c. 1150 – c. 1220), o qual levantava questões acerca da tradição judaica. Junto à introdução do Guia está a carta de resposta ao seu pupilo, a quem Maimônides dedica seu trabalho e que seria um exemplo de um indivíduo perplexo que precisa de um guia ou um orientador (Guia, Intr.).16

O Guia dos Perplexos foi escrito com o objetivo primário de servir de orientação para alcançar o verdadeiro conhecimento divino. Segundo Maimônides,

O objetivo desse tratado é ilustrar um homem religioso que foi educado para acreditar na verdade da nossa santa Lei, que conscientemente cumpre seus deveres morais e religiosos, e ao mesmo tempo foi venturoso em seus estudos filosóficos (Guia, Intr.).17

O esclarecimento sobre o objetivo é seguido pela explicação do autor para a escolha do título de seu escrito. Conforme suas palavras,

Até pessoas esclarecidas são aturdidas se compreendem essas passagens em seu significado literal, mas eles são inteiramente retirados de suas perplexidades quando explicamos a metáfora, ou meramente sugerimos que os termos são figurativos. Por essa razão eu intitulei esse livro de Guia

dos Perplexos (Guia, Intr.).18

Dito isso, Maimônides esclarece que não pretendia que seu escrito cessasse todas as dúvidas que permeiam a tradição judaica, mas que propunha resoluções para parte das dificuldades. De maneira geral, no Guia

dos Perplexos, o Rambam irá defender que as escrituras sagradas devem ser

compreendidas de maneira alegórica, e não literal. Tais alegorias somente podem ser decifradas mediante a ajuda da filosofia e da metafísica.

A obra está dividida em três volumes, com cento e setenta e seis capítulos. O primeiro volume tece análises sobre certas expressões bíblicas, no intuito de servir de introdução para o estudo da questão em torno dos atributos

16 Cf. Guia, Intr.

17 “The object of this treatise is to enlighten a religious man who has been trained to believe in the truth of our holy Law, who conscientiously fulfils his moral and religious duties, and at the same time has been successful in his philosophical studies”. Cf. Guia, Intr.

18 “Even well informed persons are bewildered if they understand these passages in their literal signification, but they are entirely relieved of their perplexity when we explain the figure, or merely suggest that the terms are figurative. For this reason I have called this book Guide for the Perplexed”. Cf. Guia, Intr.

de Deus. O segundo volume, por sua vez, trata das provas da existência de Deus e da crença na Profecia. Nesses primeiros dois volumes, o Rambam também disserta sobre a unicidade de Deus e a prova de Sua existência, o que acreditava que deveriam ser compreendidas como duas verdades absolutas. Por fim, o terceiro volume é dedicado à questão escatológica e à afirmação de que os judeus não deveriam buscar uma causa final para o Universo.

Nachman Falbel afirma que o Rambam pretendia demonstrar a existência uma identidade essencial entre a filosofia produzida pelos gregos e a tradição judaica.19 Essa identidade, segundo o pensamento

maimonidiano, deveria ser compreendida por aquele que pretendia iniciar os estudos sobre os mistérios divinos. Ainda de acordo com Nachman Falbel,20 possivelmente essa foi a maior contribuição do Guia dos Perplexos.

Por conseguinte, concorda-se com Léon Dujovne,21 quem defende que

é no Guia que Maimônides manifesta sua fidelidade ao Judaísmo e a profundidade de seu conhecimento ao dissertar sobre questões a partir de um sistema filosófico, religioso, metafísico e ético.

Nesse sentido, Maimônides declarou que não há oposição entre filosofia grega e o ensinamento rabínico, e sim um apoio mútuo e necessário. Para tanto, tentou demonstrar uma harmonização de conceitos e ideias, a qual era dirigida, em essência, aos estudiosos versados em conhecimento nas disciplinas profanas e religiosas. Entretanto, muitos estudiosos ainda não concordavam com a possível conciliação entre ciência e filosofia com os escritos bíblicos, talmúdicos e rabínicos, ideia essa vista com muita desconfiança durante o século XII.22

Em uma alegoria, Maimônides defende que:

o significado oculto, inclusive no sentido literal, é similar a uma pérola perdida em um quarto escuro, cheio de móveis. É certo que a pérola está na sala, mas o homem não consegue a enxergar ou saber onde ela se encontra. É como se a pérola não mais estivesse em sua posse, pois, como já foi dito, não lhe dá nenhum benefício até que ele acenda uma luz (Guia, Intr.).23 19 Cf. FALBEL, N. Aristotelismo e a polêmica maimonidiana... Op. cit.

20 Ibidem, p. 65.

21 Cf. DUJOVNE, L. Maimônides. São Paulo: Federação Israelita de São Paulo, [s.d.]. 22 Cf. GUINSBURG, J. (org.). Do estudo e da oração: súmula do pensamento judeu. São Paulo: Perspectiva, 1968; FALBEL, N. Aristotelismo e a polêmica maimonidiana... Op. cit; LE GOFF, J; SCHMITT, J. (org.). Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. [v. I]

23 “the hidden meaning included in the literal sense of the simile to a pearl lost in a dark room, which is full of furniture. It is certain that the pearl is in the room, but the man can neither see it nor know where it lies. It is just as if the pearl were no longer in his possession, for, as has been stated, it affords him no benefit whatever until he kindles a light”. Cf. Guia, Intr.

Para o Rambam, a luz que acende o quarto escuro é a filosofia, a qual seria um instrumento ou um meio que levaria o homem em direção à devida compreensão dos mistérios religiosos. Em outras palavras, a filosofia grega passa a ser vista como fundamental para o entendimento da verdade divina.

Destarte, no Guia dos Perplexos, Maimônides pretendeu demonstrar que as Escrituras Sagradas e o Talmude podem harmonizar com a filosofia aristotélica se forem interpretados de forma correta, isto é, alegoricamente. Harry Wolfson defende que Maimônides foi um verdadeiro aristotélico medieval e analisou a religião judaica à luz de conceitos filosóficos aristotélicos.24

Não obstante, o Guia não foi bem recebido nas camadas intelectuais mais conservadoras do Judaísmo, gerando intenso debate e polêmicas, seja pelas conceituações realizadas ou pelos posicionamentos que Maimônides adotou. Em 1232 E.C., alguns opositores das concepções maimonidianas denunciaram o escrito aos dominicanos, o qual foi queimado em praça pública.25 Isso ocorreu, em larga medida, pois nos séculos XII e XIII havia

uma crescente reação antirracionalista e mística se desenvolvendo no seio do pensamento religioso judaico.