• Nenhum resultado encontrado

3. OS TRIBUNAIS DE CONTAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

3.1. Breves notas sobre a função de controle

A atividade de controle externo corresponde a apenas uma das inúmeras formas de expressão do sistema de “freios e contrapesos”, tônica da forma republicana de governo, e apresenta como razão maior para sua formulação a soberania popular.

A instituição pela Carta Magna de um controle entrecruzado ou recíproco dos Poderes da República visa anular as tentativas de suplantação de um deles pelos outros, o que seria capaz de difundir distorções na Democracia e desvirtuar, por completo, a vontade soberana do povo, do qual eles emanam e em representação de quem eles devem ser exercitados.

A essência do controle consiste em suprimir, portanto, as oportunidades para o fenômeno da centralização do poder, o que ensejaria descompassos na ordem política interna e, eventualmente, o surgimento de regimes antidemocráticos.

Todavia, importante notar que, se, por um lado, esse modelo de República Democrática não tolera a ingerência de um Poder sobre os demais, o que implica uma postura de autocontenção política por parte de cada um deles, por outro lado, exige-se que cada um deles proceda ao controle sobre os demais, nos limites, é claro, ofertados pela Carta Política.

O controle entre os Poderes, portanto, deve obrigatoriamente ser exercitado, por se tratar de mecanismo indispensável à otimização das normas constitucionais, garantindo, assim, a organicidade e efetividade da Constituição.

Como bem definiu Hely Lopes Meirelles (2012, p. 731), o controle externo, em sentido amplo, se caracteriza como:

[...] o que se realiza por um Poder ou órgão constitucional independente funcionalmente sobre a atividade administrativa de outro Poder estranho à Administração responsável pelo ato controlado, como, p. ex., a apreciação das

contas do Executivo e do Judiciário pelo Legislativo; a auditoria do Tribunal de Contas sobre a efetivação de determinada despesa do Executivo; a anulação de

um ato do Executivo por decisão do Judiciário; a sustação de ato normativo do Executivo pelo Legislativo (CF, Art. 49, V); a instauração de inquérito civil pelo Ministério Público sobre determinado ato ou contrato administrativo, ou a recomendação, por ele feita, “visando à melhoria dos serviços públicos”, fixando “prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (art. 6º, XX, da Lei Complementar 75, de 2.5.93). (negritou-se)

No mesmo sentido, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (2008, p. 99) assim o define: O sistema de controle externo pode ser conceituado como o conjunto de ações de controle desenvolvidas por uma estrutura organizacional, com procedimentos, atividades e recursos próprios, não integrados na estrutura controlada, visando fiscalização, verificação e correção de atos.

Assim, ao contrário do que se poderia concluir com a leitura açodada do Art. 71 da CF, de que “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional...” seria faculdade exclusiva do Legislativo, conclui-se, na verdade, que não só este, mas também os outros Poderes da República e determinadas instituições, como o Ministério Público (Art. 129, VII da CF10) e os

próprios Tribunais de Contas, podem e devem exercer a função de controle externo, nos termos da Constituição, por óbvio. Eis a definição de controle externo em sentido lato.

Por outro lado, o sentido mais corriqueiramente empregado ao termo relaciona-se ao controle financeiro exercido pelo Legislativo, como se depreende dos Arts. 31, 70, 71 e 74 da Constituição Federal e do Art. 16 do ADCT.

Vale ressaltar, ainda, que o controle externo, quer em sentido amplo, quer estrito, é uma forma exógena, por ser realizado por órgão estranho ao Poder no qual se insere o órgão ou entidade controlados, coexistindo com ele formas endógenas ou internas de controle, feitas por órgãos da própria estrutura do Poder, geralmente denominados de controladorias, coordenadorias, secretarias de controle interno, entre outras nomenclaturas. A Controladoria Geral da União (CGU), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) são exemplos de órgãos que realizam controle administrativo ou interno, no âmbito dos respectivos Poderes em que se acham inseridos.

10“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior” (negritou-se);

A par do controle endógeno, interno ou administrativo, há o poder de autotutela da Administração, que antecede tanto o controle interno quanto o externo, por afigurar-se um autocontrole do próprio órgão, enquanto “centro de competência”, como define-o Meirelles (2012, p. 68). Assim, no desempenho da atividade administrativa, que é típica dos órgãos do Executivo, mas que se revela presente, de maneira atípica, nos órgãos judiciários e legislativos, os órgãos detêm o poder-dever de autotutela, de modo a corrigir suas próprias falhas internas e evitar que tais irregularidades possam ocasionar prejuízos aos administrados, com lesão a direitos subjetivos.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou os verbetes das Súmulas 346 e 473, in verbis:

Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos.

Súmula 473: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Afora os controles interno e externo e o poder de autotutela, a doutrina costuma fazer outras classificações relativamente às várias formas de controle existentes.

A primeira delas – quanto ao Poder que controla – elenca três espécies: administrativo, legislativo e judicial, a depender do Poder que o realiza: se o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário, respectivamente.

Outra classificação – quanto à oportunidade ou momento em que se efetua –, prescreve três espécies de controle: prévio, preventivo ou a priori; concomitante ou sucessivo; e posterior, subsequente ou corretivo, conforme assevera Fernandes (2008). O primeiro alcança o ato antes de sua formação ou da produção de seus efeitos; o segundo acompanha o ato durante sua execução e possui natureza supervisora, contínua, ininterrupta; o terceiro consiste no julgamento a posteriori da atividade desempenhada, conferindo a validade dos atos então produzidos.

Como exemplo de controle preventivo, cite-se o Art. 49, incisos II, XV a XVII da CF11, que elenca situações que dependem de autorização ou aprovação prévias do Congresso

11“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] II - autorizar o Presidente da República a

para que o ato do Poder Executivo possa produzir efeitos; de controle concomitante, cite-se o Art. 71, IV, VI, IX a XI da CF12, que lista situações que podem ser prontamente corrigidas

pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no exercício de seu poder-dever de fiscalizar; de controle posterior ou corretivo, por fim, cite-se o Art. 71, I-III, V e VIII,13 que trata de

situações em que o TCU aprecia e julga as contas, respectivamente, do Presidente da República e dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos, emitindo parecer em relação às primeiras e aplicando eventuais sanções, como multa e imputação de débito, no tocante às segundas.

Adiante-se que, no tocante aos Tribunais de Contas, ao exercerem o controle externo, sua atuação dá-se, quase sempre, concomitante ou posteriormente ao ato fiscalizado, numa postura eminentemente repressora, e pouco preventiva.

Por razões históricas, adotou-se essa sistemática ortodoxa no Brasil, diferentemente do modelo adotado na Itália e Bélgica, em que o Tribunal de Contas tem o poder de emitir veto prévio à despesa, com o condão de proibir ou suspender o ato avaliado (FERNANDES, 2008, p.161). Na Inglaterra, por exemplo, a Câmara dos Comuns realiza um controle financeiro tanto preventivo quanto concomitante sobre as ordens do Tesouro, por meio da figura do seu Controlador e Auditor Geral, segundo ensina Luiz Bernardo Dias Costa (2006).

permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar; [...] XV - autorizar referendo e convocar plebiscito; XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais; XVII - aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares.”;

12“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de

Contas da União, ao qual compete: [...] IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II; [...] VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; [...] IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal; XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados”. (negritou-se);

13“Art. 71. [...]: I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer

prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento; [...] III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; [...] V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo; [...] VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”;

Ainda sobre as outras classificações adotadas pela doutrina pátria, José dos Santos Carvalho Filho classifica-o, segundo a natureza do controle, em: controle de legalidade e controle de mérito; quanto ao âmbito da Administração, em controle por subordinação (subordinação hierárquica) e por vinculação, este também chamado de supervisão ministerial, controle finalístico ou tutela administrativa; e, quanto à iniciativa, em controle de ofício e provocado (2009, p. 1023-1028).

Fala-se ainda em controle social, que consiste no monitoramento pela sociedade das ações de governo e de gestão da coisa pública. Na verdade, trata-se de um controle não formal, mas disseminado, de maneira difusa, nas mãos do povo, não sendo, por essa razão, menos efetivo, desde que os cidadãos e organizações sociais gozem de suficiente amadurecimento e articulação política.

Tal controle é ínsito à ideia de democracia direta ou semidireta e engloba os instrumentos clássicos de controle e efetivação da vontade do povo, tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular na deflagração do processo legislativo, além de outros, como a ação popular, o mandado de segurança coletivo, a ação civil pública, o mandado de injunção e o habeas data, a eles não se restringindo, obviamente, porquanto a cidadania se trata de um direito amplo e com múltiplos desdobramentos.

Em atenção à enorme importância dessa modalidade de controle, a Constituição Cidadã buscou alargar o quanto possível os mecanismos por meio dos quais ele pode ser concretizado, com o intuito de dar máxima efetividade ao princípio republicano. Assim, o § 3º do Art. 37 cuidou de mencionar as “formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”, cometendo à lei a disciplina pormenorizada dos seus instrumentos14.

Além desses, a Constituição previu outros meios hábeis, como os Arts. 187, 194, parágrafo único, VII, 204, II, 206, VI e 224, tal qual se verifica do trecho do acórdão do STF na ADIn nº 244, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence e julgada pelo Plenário em 11.09.2002:

14

Art. 37 [...] § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no Art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. (negritou-se);

Além das modalidades explícitas, mas espasmódicas, de democracia direta – o

plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (Art. 14) – a CR aventa

oportunidades tópicas de participação popular na administração pública (v.g., Art.

5º, XXXVIII e LXXIII; Art. 29, XII e XIII; Art. 37 , § 3º; Art. 74, § 2º; Art. 187; Art. 194, parágrafo único, VII; Art. 204, II; Art. 206, VI; Art. 224). A

Constituição não abriu ensanchas, contudo, à interferência popular na gestão da segurança pública [...]. (negritou-se)

No que toca aos Tribunais de Contas, especificamente, afirma com propriedade Nadia Rezende Faria (2010, p. 207), ao analisar o papel dessas cortes no fortalecimento do controle social, que os princípios da transparência e da democracia participativa são implicações da ideia-mestra de good governance (boa governança). Segundo ela, um dos seus objetivos seria, justamente, o de combater a corrupção dos atos de governo e dos atos de gestão pública, e arremata, dizendo:

[...] o fortalecimento do controle social e de seus desdobramentos – transparência pública, acesso à informação e combate à corrupção – são desiderato de grande envergadura, que, por isso mesmo, não pode ser objetivo apenas dos Tribunais de Contas, mas deve ser um verdadeiro projeto de país.

Resumidamente, o controle externo, realizado reciprocamente entre os Poderes da República e certas instituições independentes, como o Ministério Público, e mais especificamente pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas, tem-se mostrado, ao lado do controle social, como um dos principais instrumentos para o aumento do nível de governabilidade e governança dos representantes políticos e de materialização da Democracia.