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5. A DECRETAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

5.1. Exposição de precedentes jurisprudenciais: STJ e TCU

Convém destacar jurisprudência paradigmática do Superior Tribunal de Justiça e, empós, do Tribunal de Contas da União, que dela se utilizou como precedente, ambas concernentes à aplicação da disregard doctrine no Direito Administrativo. Adiante-se, todavia, que, embora denominado de Teoria da Desconsideração pelas duas Cortes, o caso não consistia propriamente na aplicação do instituto.

Trata-se do RMS nº 15.166/BA, julgado em 07.08.2003 pelo STJ, em que o relator Min. Castro Meira considerou cabível, naquela ocasião, a desestimação da personalidade jurídica de determinada empresa pelo Secretário de Administração do Estado da Bahia.

O mandado de segurança foi impetrado contra ato do Secretário, consubstanciado em portaria, que estendeu à empresa G. E. G. Móveis e Equipamentos LTDA. os efeitos da sanção de inidoneidade para licitar já declarada em face da empresa Combail LTDA.. A impetrante fora constituída pelos mesmos sócios em substituição desta última, com utilização do mesmo objeto social e mesmo endereço de funcionamento, em evidente fraude à lei e abuso de forma. O Recurso foi assim ementado:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA

ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA

MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos

sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/93), de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade

administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados,

desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla

defesa em processo administrativo regular.

- Recurso a que se nega provimento. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2003 -

negritou-se)

Na hipótese, o ato do Secretário de Estado, a que o ministro relator denominou desconsideração da personalidade jurídica, não poderia, com a devida licença, merecer tal designação, máxime porque o instituto da desconsideração, ao ser aplicado a determinada pessoa jurídica, objetiva direcionar aos “bens” particulares dos administradores ou sócios de má-fé os efeitos de “certas e determinadas relações de obrigações”, utilizando esses bens para satisfazerem dívidas sociais, o que não sucedeu, na hipótese. Ademais, no caso em comento, a personalidade da empresa G. E. G. Móveis e Equipamentos LTDA., que outrora fora declarada inidônea, permaneceu irretocável, não desprezada e, fora de dúvida, produzindo plenamente seus efeitos jurídicos.

Roberta Maia Besouchet (2011, p. 72-73), embora não atente para o equívoco na confusão entre os dois conceitos – desconsideração e extensão de inidoneidade –, expõe argumentos que são pela impossibilidade da decretação da “desconsideração” no âmbito das

licitações públicas, em detrimento dos sócios43, como meio de tornar eficazes as sanções

administrativas previstas na Lei nº 8.666/1993, sobretudo porque referida lei não trouxe previsão sobre a medida:

Não seria possível, diante de todo o exposto, que a Administração Pública desconsiderasse, diante do inadimplemento do contrato, a personalidade jurídica de empresa licitante para estender aos sócios as penalidades impostas à sociedade, porquanto não existe para tal.

Ademais, argumenta-se que da simples leitura do artigo 87 da Lei de Licitações vê- se que as penalidades administrativas impostas por inexecução total ou parcial de contrato com a Administração são direcionadas explicitamente ao contratado, motivo pelo qual não poderiam ser aplicadas diretamente aos sócios, impossibilitando a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

No direito penal, alguém que cometa um ilícito penal e que, ao final de um processo judicial, venha a ser condenado, terá de cumprir a pena pessoalmente, pois esta é personalíssima. Em face de previsão constitucional e legal, a pena não poderá ser estendida ou cumprida por outrem que não o autor do crime. Da mesma forma, [...]

na Administração Pública não existe disposição legal que autorize a extensão da punição, de forma que – em face do princípio da legalidade – não se pode permitir que as penalidades imputadas à sociedade sejam suportadas pelos sócios.

Argumentando, ainda, contra a possibilidade de desconsideração, Luiz Nunes Pegoraro [2010 apud JUSTEN FILHO, 2010, p. 81] dispõe que se o sistema

jurídico é burocrático, precário e permite a criação de novas pessoas jurídicas para contornar determinadas situações, não se pode culpar a pessoa natural por isso. Para o autor, se existe brecha que autoriza a instituição de nova empresa pela mesma pessoa, não se pode estender a essa nova empresa a punição que é de outra pessoa jurídica. (negritou-se)

Em geral, os que se posicionam contrariamente à possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração – ou melhor, da extensão de inidoneidade – no âmbito do Direito Administrativo, especialmente no ramo das licitações, limitam-se a invocar o Princípio da Legalidade Estrita44 como fato impeditivo para a decretação da medida, ante a ausência de

previsão expressa no rol de sanções do Art. 87 da Lei nº 8.666/199345.

43 Embora os argumentos da autora se voltem à impossibilidade de a erroneamente chamada “desconsideração”

ser decretada em detrimento dos sócios, e não de outra pessoa jurídica (como ocorreu no caso do RMS nº 15.166/BA), o mesmo raciocínio poderia ser aplicado, por extensão, ao Recurso em comento;

44 Claramunt (2009, p. 18) afirma: “Na prática, o princípio da legalidade, como princípio informativo da

Administração, traduz-se como um imperativo aos administradores públicos. Estes, em toda sua atividade funcional, estão subordinados aos mandamentos da lei e à concretização do interesse público, deles não podendo afastar-se sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal, conforme o caso concreto.

Na Administração Pública não há como falar em liberdade ou vontade pessoal do administrador. Enquanto que na administração particular tudo o que não for ilícito fica na esfera de liberalidade do indivíduo, à Administração Pública somente é admitido fazer aquilo que a lei autoriza ou determina. Como bem sintetizou Hely Lopes Meirelles [2007], “A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administrador público ‘deve fazer assim’”;

45 “Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa,

aplicar ao contratado as seguintes sanções: I - advertência; II – multa [...]; III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria

Lamentavelmente, a maioria dos autores, ao analisar o precedente do STJ, passam a largo do verdadeiro sentido que inspira e orienta a teoria da desconsideração, daí porque incorrerem na mesma confusão feita pelo julgado entre o mecanismo de amplificação do decreto de inidoneidade e a aludida teoria.

Percebe-se, sem dificuldade, que no julgamento do RMS nº 15.166/BA, primeiro reproduzido, não se cuidava, propriamente, de obrigações patrimoniais que merecessem ser imputadas aos sócios em razão da fraude ou do abuso de direito, embora estes se fizessem presentes, mas, na verdade, de outro fenômeno jurídico, bem menos complexo: a mera declaração de inidoneidade, que se desejava impor à empresa fictícia G. E. G. Móveis e Equipamentos LTDA., a fim de impedi-la de participar de novas licitações e contratações com o Poder Público.

De passagem, é oportuno registrar que o STJ, de modo um tanto semelhante, tem desenhado a chamada “teoria da desconsideração externa corporis”, caracterizada pela imputação a determinadas sociedades controladoras de obrigações que são contraídas em nome de suas controladas, quando estas operam no mercado como mero escudo patrimonial.

Em casos um tanto inusitados, o STJ tem ido mais além, admitindo, inclusive, que os efeitos da falência sejam estendidos às empresas controladoras ou a outras controladas, quando elas apresentem características como identidade de corpo diretivo, mesma sede administrativa e interesses coincidentes, com histórico de confusão patrimonial. Cite-se, verbi

gratia, o RMS nº 14.168/SP, da relatoria da Min. Nancy Andrighi.46

autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.”;

46

O RMS nº 14.168/SP foi assim ementado:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. FALÊNCIA. GRUPO DE SOCIEDADES. ESTRUTURA MERAMENTE FORMAL. ADMINISTRAÇÃO SOB UNIDADE GERENCIAL, LABORAL E PATRIMONIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA FALIDA. EXTENSÃO DO DECRETO FALENCIAL ÀS DEMAIS SOCIEDADES DO GRUPO. POSSIBILIDADE. TERCEIROS ALCANÇADOS PELOS EFEITOS DA FALÊNCIA. LEGITIMIDADE RECURSAL.

- Pertencendo a falida a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é legítima a desconsideração da personalidade jurídica da falida para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais sociedades do grupo.

- Impedir a desconsideração da personalidade jurídica nesta hipótese implica prestigiar a fraude à lei ou contra credores.

- A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de

Na hipótese do mencionado RMS nº 14.168/SP, a desconsideração, na verdade, não se operou em detrimento dos sócios (como preconizado pelo Art. 50 do CC/2002), mas sim em prejuízo de outras empresas cointegrantes do grupo econômico, assemelhando-se, neste ponto, ao caso do RMS nº 15.166/BA.

Embora este artifício pareça escapar aos parâmetros propugnados pela Teoria da Desconsideração, de que os próprios membros da pessoa é que devem ser alcançados, na hipótese vê-se que a penalização da segunda pessoa, por último criada, visa à responsabilização indireta dos proprietários e dirigentes de má-fé, que são comuns a ambas. Ocorre que, para alcançá-los, deve-se, a um só tempo, reconhecer a responsabilidade em face da segunda pessoa jurídica (desconsideração externa corporis), integrante do grupo, e levantar-lhe o véu da personalidade jurídica (desconsideração comum ou ordinária), responsabilizando-se os agentes de má-fé por detrás dela velados.

Em tais circunstâncias, reputa-se válida a iniciativa do STJ em inovar e aprimorar o instituto, posto que os fundamentos elementares da teoria – como a existência de fraude, a superação da personalidade em face de obrigações patrimoniais específicas (“certas e determinadas”) – em casos extremos de falência, de todas as obrigações –, o deferimento pelo Poder competente (Judiciário) e a provocação por parte interessada, inclusive pelo Ministério Público – tais fundamentos, como se disse, têm sido devidamente mantidos.

De fato, a aludida desconsideração externa corporis, que tem recebido acolhimento na jurisprudência do STJ, se opera de uma pessoa jurídica em direção a outra, e não da pessoa jurídica para os seus próprios membros, em movimento centrífugo e não centrípeto, o que em muito se assemelha, nesse ponto, ao fenômeno da amplificação, entre sociedades diversas, da sanção de inidoneidade para licitar.

Todavia, convém notar que neste último caso (inidoneidade externa corporis, por assim dizer, decretada pela Administração Pública), não há falar em desconsideração propriamente dita, pois seguramente não se quer ignorar a personalidade jurídica da primeira sociedade, afastando os efeitos da personalização e da autonomia patrimonial (pois estas subsistem), mas, a bem da verdade, cuida-se de mera faculdade, e somente isso, fruto do

execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. - Os terceiros alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica da falida estão legitimados a interpor, perante o próprio Juízo Falimentar, os recursos tidos por cabíveis, visando à defesa de seus direitos.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2002a – negritou-se);

poder de polícia da Administração, a fim de impedir a sucessão de novas contratações com o Poder Público atentatórias ao princípio da moralidade. Portanto, o procedimento da Administração, nesse caso, não pressupõe a desconsideração da personalidade da empresa que outrora fora declarada inidônea, personalidade essa que queda intacta, não ignorada e produzindo plenamente seus efeitos jurídicos.

Além disso, na hipótese de ampliação da inidoneidade, o órgão sancionador não consistia em tribunal judiciário ou juízo singular, nem poderia sê-lo, por força do Art. 87, § 3º da Lei de Licitações47, sequer se tratava de Tribunal de Contas, embora este sim detenha

competência para proceder à declaração de inidoneidade de licitantes incursos em fraude48.

Em outras palavras, se referida medida consistisse em verdadeira desconsideração, como então explicar que se nega seja ela aplicada pelo Poder Judiciário, haja vista que a declaração de inidoneidade somente pode ser emitida pelo Ministro de Estado, Secretário Estadual ou Municipal e, no máximo, pelo Tribunal de Contas?

Também não se vislumbram obrigações patrimoniais específicas a serem imputadas a esse ou aquele sócio de má-fé. Tampouco é mister, nesses casos, o requerimento de qualquer parte interessada ou do Parquet, pois a medida pode ser decretada sem provocação, ex officio. Tais observações nos desautorizam a supor que se trata de genuína desconsideração, por se alongar dos pressupostos essenciais dessa teoria.

Não bastasse a confusão feita pelo STJ no julgamento do RMS nº 15.166/BA, o Tribunal de Contas da União viu-se livre, a partir da abertura desse precedente, para aplicar a teoria da desconsideração nos processos de sua competência, em casos os mais variados, que não se restringiam à simples questão da inidoneidade, arvorando-se o TCU no argumento de que, na condição de autêntico órgão administrativo especial (conforme visto em capítulo anterior sobre sua natureza jurídica), ele estaria habilitado a aplicar a medida.

Assim, o TCU, a partir da competência conferida pelo Art. 16, § 2º, alíneas “a” e “b” da Lei nº 8.443/1992, a qual lhe permite responsabilizar agentes públicos e até mesmo

47 O Art. 87, § 3º da Lei de Licitações preconiza: “§ 3o A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo

[declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública] é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação.”;

48

O Art. 46 da LOTCU (Lei nº 8.443/1992) autoriza: “Art. 46. Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal” (negritou-se);

particulares por danos cometidos ao erário, não se furtou em lançar mão da teoria da desconsideração para responsabilizar os membros de inúmeras pessoas jurídicas investigadas em processos de sua alçada.

Aquele órgão, então, passou a utilizar a teoria da desconsideração, principalmente visando à aplicação de multa e imputação de débito a dirigentes de diversas pessoas jurídicas, quando dela houvessem se utilizado com fraude ou abuso. Por outro lado, deve-se ter em conta que, embora louvável a tentativa, concebida em torno da necessidade de punir os verdadeiros responsáveis pelos danos cometidos ao erário, a fundamentação das decisões do TCU amparava-se num falso precedente, o RMS nº 15.166/BA, mostrando-se, nesse ponto, falha.

No Acórdão nº 928/2008, por exemplo, de relatoria do Min. Benjamin Zymler, o TCU ainda continuou utilizando a teoria como fundamento para a ampliação da sanção de inidoneidade, embora em outros a tenha utilizado para permitir a aplicação de multa e a imputação de débito aos sócios da pessoa jurídica processada49:

Sumário: REPRESENTAÇÃO FORMULADA COM FULCRO NO ART. 113, § 1º DA LEI DE LICITAÇÕES. EMPRESA CONSTITUÍDA COM O INTUITO DE BURLAR A LEI. FRAUDE EM LICITAÇÃO. AUDIÊNCIA. REJEIÇÃO DAS RAZÕES DE JUSTIFICATIVA. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE DE LICITANTE. NULIDADE DO CERTAME E DA CONTRATAÇÃO.

1. Confirmado que a empresa licitante foi constituída com o nítido intuito de fraudar a lei, cabe desconsiderar a sua personalidade jurídica de forma a preservar os interesses tutelados pelo ordenamento jurídico.

2. Deve ser declarada a nulidade de licitação cujo vencedor utilizou-se de meios fraudulentos.

[...]

7. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – RECURSO ORDINÁRIO EM MS Nº 15.166-BA

(2002/0094265-7)

7.1 Em resposta ao ofício de oitiva endereçado à empresa Falcon, esta argumentou, [...], que a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade necessariamente teria que ser decretada, no caso concreto, por sentença judicial. 7.2 Torna-se importante, por conseguinte, trazer à tona a discussão travada no âmbito desse recurso [RMS nº 15.166-BA]. O mesmo foi referente à possibilidade de se estender a uma sociedade empresária, no âmbito da Administração Pública Estadual, com base na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os efeitos de uma sanção imposta pela Administração a outra sociedade formada pelos mesmos sócios e com o mesmo objeto social (fl. 157).

[...]

7.6 Dessa forma, a Administração Pública, em determinados casos, poderia desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade, mesmo sem haver previsão legal específica e sem pronunciamento judicial neste sentido.

49 No mesmo sentido: Acórdão nº 1891/2010-Plenário; Acórdão nº 189/2001-Plenário; Decisão nº 749/2000-

7.7 O ordenamento jurídico há que ser entendido como um sistema. Em certos casos concretos, para se conciliar um aparente conflito entre os Princípios da Legalidade e da Moralidade, deve ser dada maior flexibilidade à Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, como bem expôs o Exmo. Ministro Castro Meira (fl. 159). (Brasil. STJ, 2008 – sublinhou-se)

Na ocasião, o relator foi levado a entender que houve simulação fraudulenta na composição da empresa recém-criada, Falcon Vigilância e Segurança LTDA., em razão de diversos indícios colhidos na instrução processual, assim resumidos pelo relator:

[...]

c) simulação na composição societária da empresa Falcon Vigilância e

Segurança Ltda., tendo em vista as seguintes ocorrências:

c.1) doação de todas as cotas societárias do Sr. David Antônio Teixeira Figueira, fundador da Falcon Vigilância e Segurança Ltda., para o Sr. Gilvandro Barros do Nascimento, com a concomitante outorga de amplos, gerais, irrevogáveis e irretratáveis poderes para que aquele administrasse a empresa, conforme procuração de fls. 378/379 (vol. 1);

c.2) participação do Sr. David Antônio Teixeira Figueira no quadro societário da empresa Rio Fort Serviços de Segurança Empresarial Ltda., que, segundo cópias reprográficas constantes nos autos (fls. 49/59, v.p.), responde ao Processo de Execução Fiscal para cobrança de Dívida Ativa, em valores históricos de R$ 193.945,95;

c.3) participação do Sr. David Antônio Teixeira Figueira na gestão de outra entidade, denominada Fox Vigilância Segurança Ltda. que responde a diferentes processos no âmbito da justiça do trabalho e a diferentes execuções fiscais.

[...]

Vê-se pois que se trata de empresas de mesmo objeto social, com endereços

coincidentes em determinados espaços de tempo, com diversas testemunhas comuns aos contratos sociais e que estiveram sob a gerência do sr. David Antônio Teixeira Figueira, o qual se utilizou de freqüentes mudanças nos estatutos

sociais das empresa de forma a incluir pessoas a ele ligadas. (negritou-se)

Em suma, a empresa Falcon, então processada, fora vencedora de um pregão realizado pelo Banco do Brasil, mas, em razão do cometimento de fraude por seus sócios- administradores, teve “decretada a desconsideração de sua personalidade jurídica”, sendo declarada inidônea para participar por três anos de licitação na Administração Pública Federal. Além disso, a licitação, porque eivada de “vício insanável, consistente no fato de terem sido burlados os requisitos de regularidade fiscal” (Brasil. STJ, 2008), foi declarada nula.

As alegações da empresa (na verdade, dos seus dirigentes) de que seria incabível a aplicação do instituto por órgão não judiciário não foi acolhida, merecendo a refutação do relator Min. Benjamin Zymler: “a desconsideração da personalidade jurídica deve realmente ser medida excepcional, mas não concordamos com a alegação de que ela só poderia ser posta em prática no âmbito judicial. O item ‘7’ da presente instrução tratará dessa questão”.

O aludido item “7” da instrução processual, por sua vez, reproduziu, exatamente, os fundamentos jurídicos tecidos pelo Min. Castro Meira ao relatar o RMS nº 15.166/BA, de que “a Administração Pública, em determinados casos, poderia desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade”, como forma de se conciliar um aparente conflito entre o Princípio da Legalidade e os Princípios da Moralidade e da Supremacia e Indisponibilidade do Interesse