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Críticas negativas e positivas à aplicação do instituto

5. A DECRETAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

5.2. Críticas negativas e positivas à aplicação do instituto

Como foi visto, o desenvolvimento da tese de que é possível a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito Administrativo deve-se a uma imprecisão conceitual cometida pelo STJ no julgamento do paradigmático RMS nº 15.166/BA e, além disso, a um equívoco na interpretação feita pelos Tribunais de Contas, especialmente o TCU, do entendimento perfilhado naquele julgado.

É dizer: no julgamento do Recurso Ordinário antes referido, o relator Min. Castro Meira alcunhou, desavisadamente, de teoria da desconsideração o expediente realizado pela Secretaria de Administração do Estado da Bahia no sentido de estender de uma sociedade licitante para outra, com ela fraudulentamente associada, o efeito da sanção de inidoneidade, à guisa da desconsideração na modalidade externa corporis.

Seguidamente à publicação daquele julgado, o Tribunal de Contas da União supôs estar autorizado, na condição de autêntico órgão administrativo especial, a proceder à “desconsideração” da personalidade jurídica de entidades incursas em irregularidades, em hipóteses que, também, não passavam de mera aplicação da sanção de inidoneidade de licitar. Empós, o TCU e demais cortes de contas passaram a aplicar a teoria em casos um pouco mais assemelhados ao instituto da desconsideração, permitindo a imputação de débito e multa a sócios por dívidas contraídas em nome da pessoa jurídica perante o Poder Público, quando evidenciada a fraude ao erário.

A primeira crítica que se faz, portanto, diz respeito à imprecisão teórico-conceitual tanto do Superior Tribunal de Justiça, quanto do Tribunal de Contas da União em não diferenciar o instituto da desconsideração da sanção administrativa de amplificação da inidoneidade.

Num segundo momento, também critica-se o fato de que o TCU tem buscado punir a pessoa jurídica mesmo em casos em que se revela insuscetível de responsabilização, por ser ela a primeira vítima da fraude. Tais decisões, destituídas de fundamento lógico e contrárias à justiça, se deve ao entendimento de que o ente público não deve suportar, em nenhuma circunstância, os riscos de não ver ressarcidos seus cofres públicos.

Essa índole imediatista e desenfreada, na busca do ressarcimento do erário, frequentemente às expensas de sujeitos que se comprovam, diante das circunstâncias do caso, inimputáveis, atenta contra o Estado Constitucional de Direito.

Em suma, o TCU por muitas vezes tem decidido, a seu talante, quando é oportuno desconsiderar ou não a personalidade jurídica, desde que se mostre viável a pretensão em recompor o erário da forma mais rápida e eficaz. Todavia, é de se ter em conta que este critério, que consente inclusive na punição da pessoa jurídica, quando esta é vítima de fraude ou abuso, é irrazoável e ilógico e atenta contra o princípio da justiça e o Estado Constitucional de Direito.

Outro agravante diz respeito à falta de regulamentação legal da doutrina nas Leis Orgânicas dos Tribunais, o que justifica a crítica feita à mora dos Poderes Legislativos federal, estaduais e municipais, em todo o Brasil, em não regulamentar tão relevante matéria. Essa ausência de sistematização também tem colaborado para que, muitas vezes, o TCU decida, contra legem, pela responsabilização da pessoa jurídica em circunstâncias que pediriam a aplicação da medida, como fraude e abuso, tudo porque, no entender do órgão, redirecionar a responsabilidade para os dirigentes da entidade poderia não se mostrar vantajoso ao propósito de ressarcir o erário.

Por outro lado, tirante esses casos extremados e irreproduzíveis, a argumentação principiológica em torno da necessidade de aplicação do instituto mostra-se válida e não deve ser desprestigiada. Eis a primeira crítica positiva à aplicação do instituto pelos Tribunais de Contas.

Com acerto, o TCU tem se pautado na argumentação voltada aos princípios constitucionais que informam a Administração Pública, constantes do Art. 37 da Constituição Federal, aproveitando o que afirmou o Min. Castro Meira ao relatar o RMS nº 15.1666/BA,

para permitir seja aplicada a doutrina da desconsideração no âmbito dos processos de sua alçada.

Com efeito, o Min. Castro Meira afirmou que o dogma da Legalidade não deve prevalecer sobre outros princípios igualmente aplicáveis ao caso, como o da Moralidade e outros que lhe são correlatos:

A atuação administrativa deve pautar-se pela observância dos princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, deles não podendo afastar-se sob pena de nulidade do ato administrativo praticado. E esses princípios, quando em conflito, devem ser interpretados de maneira a extrair-se a maior eficácia, sem permitir-se a interpretação que sacrifique por completo qualquer deles.

Se, por um lado, existe o dogma da legalidade, como garantia do administrado no controle da atuação administrativa, por outro, existem Princípios como o da Moralidade Administrativa, o da Supremacia do Interesse Público e o da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público, que também precisam ser preservados pela Administração. Se qualquer deles estiver em conflito, exige-se do hermeneuta e do aplicador do direito a solução que melhor resultado traga à harmonia do sistema normativo. (BRASIL. STJ, 2003)

Basicamente, a tese sustentada pelo ministro se resumiu em que o absolutismo dogmático em torno do princípio da Legalidade Estrita, perfilhado por considerável parte dos administrativas pátrios, não pode implicar o sacrifício de outros princípios constitucionais, explícitos ou não, que também regem a Administração Pública, como o da Moralidade Administrativa e o da Supremacia e Indisponibilidade do Interesse Público, pois estes também estão em mesmo nível de igualdade e autoridade normativa daquele primeiro56.

Tais argumentos, em tudo válidos, aliados ao perigo da ineficácia dos provimentos dos Tribunais, em lhe sendo negado o poder de deferimento do instituto da desconsideração, associados também ao grave risco de irrecuperabilidade de vultosos ativos desviados do ente público (União, Estados e Municípios), influíram sobremaneira na aceitação entusiasta pelos Tribunais de Contas da doutrina da desconsideração. Eis a segunda crítica positiva quanto à aplicação do instituto pelos Tribunais de Contas, atinente à necessidade de maior efetividade dos seus provimentos, ao aumento da sua credibilidade institucional aos olhos da sociedade e à minimização do risco de irreparabilidade de grandes somas de recursos desviados dos cofres públicos.

56A propósito, o princípio da legalidade não visa “simplesmente à mera estruturação formal de um aparelho

burocrático tendo em vista balizar, de fora, mediante lei, sua composição orgânica e seus esquemas de atuação. O que se pretendeu e se pretende, à toda evidência, foi e é, sobretudo, estabelecer em prol de todos os membros do corpo social uma proteção e uma garantia.” (MELLO, 2012, p. 64). E, se tal princípio é uma garantia de proteção e tutela do interesse público em face do administrador, esse interesse não pode ser constringido a pretexto de observar-se aquela norma-princípio;

Por outro lado, não obstante a relevância jurídica e social da assimilação pelos Tribunais de Contas da doutrina da desconsideração, sobretudo em face da magnitude dos danos frequentemente desferidos contra o erário; das consequências gravosas para a sociedade em não havendo a penalização dos verdadeiros responsáveis, e o agravamento da crise de confiabilidade institucional que já enfrentam os Tribunais de Contas perante a sociedade, há quem critique a decretação da medida por esses órgãos não judiciários, por acreditarem eles que o deferimento da disregard doctrine estaria reservado à jurisdição do Poder Judiciário.

Esses, que acreditam que a medida não prescinde do revestimento da jurisdição, afirmam que a atividade judicante dos órgãos de contas não se afigura como jurisdicional por não vigorar, nos processos de contas, o princípio da inércia, nem a substitutividade, tampouco a relação de alteridade e de litígio entre as partes, prevalecendo, ao contrário, o princípio da oficialidade, a relação linear (não angular) entre Estado e indivíduo, e a ausência de litigantes. Assim, se não há jurisdição, os Tribunais estariam impedidos de decretarem-na.

Por outro lado, poder-se-ia contra-argumentar que os Tribunais de Contas, conforme reconheceu o STF no seio do MS nº 26.547-7/DF (cf. capítulo anterior), detêm poder geral de cautela no exercício de suas competências, a exemplo da decretação de indisponibilidade dos bens dos jurisdicionados57 e outras várias cautelares, nominadas ou inominadas, que, em

princípio, se reservam tão somente à apreciação do Poder Judiciário, pois “são atos tipicamente jurisdicionais, próprios do exercício da jurisdição cautelar” (FARIA apud LENZA, 2013, p. 649).

Essa percepção do STF decorreu da aplicação da teoria dos poderes implícitos, segundo a qual “a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos

57 O procedimento acautelatório pode ser proposto antes ou, ainda, no curso do processo de Tomada de Contas

Especial, em analogia ao que afirmam o Art. 796 do CPC: “O procedimento cautelar pode ser instaurado antes ou no curso do processo principal e deste é sempre dependente” e o Art. 44, § 2º da LOTCU. Em se tratando de omissão no dever de prestar contas, de não comprovação da aplicação dos recursos ou de cometimento de dano ao erário, o processo principal sempre corresponderá a um processo de Tomada de Contas Especial (TCE), à luz do que dispõe o Art. 8º da LOTCU:

“Art. 8º. Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do art. 5° desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano”;

fins que lhe foram atribuídos” (BRASIL. STJ, 2007b) e presta-se a demonstrar, uma vez mais, que os Tribunais de Contas gozam de natureza bastante peculiar na atual ordem constitucional, de tal modo que estão legalmente autorizados a agir com frequência, no deferimento de certas providências, à semelhança de um órgão judiciário. Eis a terceira crítica positiva à aplicação do instituto pelos Tribunais de Contas.

Por fim, anote-se que há, por parte de alguns doutrinadores que criticam a aplicação da disregard doctrine no âmbito dos Tribunais de Contas, um apego demasiado ao formalismo conceitual da Teoria da Penetração, que, segundo eles, é própria do Direito Privado, mais especificamente do Direito Societário. Como é assente, não é possível conceber que determinado instituto seja apropriado, com exclusividade, por determinado ramo do Direito e, desta sorte, a teoria da penetração não é exclusiva do Direito Civil.

Diógenes Gaspari (2004 apud 2011, BESOUCHET, p. 26) afirma que a desconsideração da personalidade jurídica:

É instituto que se afeiçoa a qualquer ramo do direito, pois o abuso pode ser praticado pela pessoa jurídica com vista a lesar credores, a prejudicar o Fisco, a ludibriar direitos dos familiares dos sócios, a escapar de sanções administrativas, a fazer tábula rasa do interesse público, a ignorar direitos do consumidor, a vilipendiar os direitos dos trabalhadores e a burlar a lei, por exemplo, tendo como objetivo favorecer seus sócios. É instituto, pode-se afirmar, da Teoria Geral do Direito. Eis a quarta crítica positiva quanto à possibilidade de deferimento da medida pelos Tribunais de Contas.

Deve-se considerar também que o instituto não pode, por óbvio, ser incorporado com absoluta fidelidade às suas balizas originais, pois deve se adaptar a realidades bem diversas. Isso posto, o instituto da desconsideração não poderá ser reproduzido pelo Direito Administrativo sem as devidas adaptações à realidade jurídica dos Tribunais de Contas. Assim, desde que sejam mantidas suas premissas básicas, o instituto pode ser útil à efetivação das competências constitucionais dos Tribunais de Contas e à salvaguarda do interesse público.

Uma crítica negativa, anteriormente apresentada, e que merecerá atenção especial em tópico apartado, dizia respeito ao problema da sistematização da teoria nas Leis Orgânicas dos Tribunais ou outras leis administrativas, como a Lei de Licitações. Assim, ainda não se encontram definidos critérios objetivos de aplicação do instituto, o que demanda uma análise

sobre qual formulação da Teoria da Desconsideração (Teoria Maior ou Teoria Menor), de fato, mereceria recepção nas leis que viessem a disciplinar a questão e na própria jurisprudência dos Tribunais, enquanto não houver regulamentação.

Registre-se que a doutrina da desconsideração tem sido utilizada pelos Tribunais de Contas, na falta de instituto semelhante nas suas leis orgânicas, na Lei de Licitações e outras similares, com o intuito de evitar que contratações comprovadamente fraudulentas e com abuso à forma societária, realizadas entre o Poder Público e determinadas sociedades fictícias, acabem sem a devida punição dos verdadeiros responsáveis (os dirigentes e/ou sócios de má- fé) e, consequentemente, sem a reparação dos cofres públicos.

Todavia, por diversas vezes os pronunciamentos do TCU e de outros Tribunais de Contas brasileiros têm se mostrado eivados de ilegalidade e inconstitucionalidade, por não eleger critérios razoáveis e justos para aplicação do instituto.