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A brincadeira de Oritia e Fedro

3. O prólogo: amar discursos, brincar com discursos

3.1. A brincadeira de Oritia e Fedro

Enquanto Sócrates e Fedro encaminham-se ao local escolhido para ler o texto de Lísias, Fedro pergunta a Sócrates se, conforme dizem, não teria sido por ali, nas margens do Ilisso, que Oritia fora arrebatada por Bóreas, o deus do vento norte – ali, acrescenta Fedro, de fato seria lugar adequado para donzelas brincarem (paídzein). Tendo sido perguntado, em seguida, se acreditaria nesse mito, Sócrates responde que não seria estranho se, como os sábios da moda, desacreditasse a história, à qual então poderia acrescentar que Oritia fora lançada contra as pedras do local pelo sopro de Bóreas enquanto brincava com Pharmakeia108. A referência a essa história trágica que se teria passado no mesmo local em que Sócrates e Fedro estão agora suscita, de repente, alguma apreensão no leitor, em claro contraste com o clima tão tranquilo da cena. Acontecerá algo do gênero aí? Sócrates já falou que Fedro teria encontrado em Sócrates um apaixonado por discursos como ele e companheiro para seus delírios coribânticos: estaria Sócrates, um velho matreiro de aspecto selvagem, prestes a corromper Fedro, jovem efeminado e inocente como Oritia?

Interpretação sofística e interpretação filosófica de mitos

A interpretação mais comum da passagem enfatiza os diferentes modos de lidar com mitos e discursos que Sócrates e Fedro manifestariam109. Por esse meio, Platão estaria assinalando como o próprio leitor deve lidar com seu (s) diálogo (s) e, principalmente, com os mitos presentes nele (s). De fato, Sócrates logo percebeu na pergunta a postura incrédula de Fedro e seu interesse em ouvir uma naturalização, ou melhor, uma historicização sofisticada110 do mito. Daí Sócrates acrescentar que, se fosse isso do seu feitio, poderia dizer que, na

                                                                                                                         

108 229b-229d.

109 FERRARI, 2002, p.11; GRISWOLD, 1996, p.37-38; HACKFORTH, 2001, p.26, embora Hackforth passe ao largo do elemento mítico mais importante nos discursos de Sócrates.

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O uso do particípio “sophidzómenos” por parte de Sócrates é uma clara censura indireta àqueles conhecidos como sofistas.

verdade, Oritia fora derrubada fatalmente pelo sopro do vento Bóreas, acontecimento simplesmente histórico, contingente e natural, que depois teria dado azo à invenção do mito do sequestro da princesa por parte de um deus. Sócrates, porém, não teria ócio para esse tipo de coisa, porque quem a isso se dedicasse teria de corrigir uma multidão dessas “curiosidades” (atopiai) que povoavam a mitologia antiga, enquanto ele, ainda não tendo cumprido a tarefa prescrita pela inscrição de Delfos, dedica todo seu ócio a conhecer a si mesmo. Seria ridículo, emenda Sócrates, dedicar-se a conhecer coisas alheias (tà allótria) quem ainda não conhece a si mesmo; por isso, quanto a essas coisas ele se deixa persuadir pelo que é convencionado pelos costumes111.

Esta parece ser a lição socrática: ao naturalizar o mito, o intérprete o conduz a um fato contingente, singular e alheio, do qual já não poderá tirar nenhum aprendizado para si mesmo. Em vez de tomar o lógos e o mythos como caminho de ascensão à idealidade112, esses sábios astuciosos tomam-no como caminho de decadência113. Nesse sentido, note-se como Sócrates refere-se a esse tipo de homem como terrível e astucioso, deinos, mesmo termo que depois usará para dizer que somente os sábios acreditarão no seu mito da alma, não os deinoí114. Isso deixa claro tanto como Sócrates não quer que seu mito seja interpretado quanto que ele de maneira alguma está a desdourar os mitos, nem mesmo como meio para atingir o autoconhecimento; afinal, será por um mito que ele tentará responder a questão da natureza humana, o que não deixa de ser uma tentativa de conhecer a si mesmo. Na verdade, como já sugerido, Sócrates se está opondo a um modo de escutar mitos e discursos. Esse modo equivaleria a certa curiosidade erudita (polymathía) que tende a gerar muita informação superficial de diversas coisas aparentemente grandes – como Górgonas, Quimeras etc.

                                                                                                                         

111 229d-230a. A tradução de “atopiai” é, de fato, um tanto questionável, mas o contexto para autorizar a opção por esse sentido, sobretudo se enfatizamos, como parecer ser o caso da passagem, um contraste entre o entretenimento frívolo de conhecer o estranho e alheio, de um lado, e a busca por autoconhecimento, de outro.

112 Cf. o papel do lógos na anámnesis do filósofo em 249b-c.

113 À luz da crítica posterior à escrita, pode-se dizer que tomam os discursos como apoio para a lembrança factual, mas não como recordação (anamnesis) do essencial; de modo análogo Fedro toma o texto de Lísias, já que não o usa para chegar à ideia do Amor e da Beleza, mas apenas para memorizar um discurso astucioso de um hábil escritor.

-, mas na verdade fúteis e demasiado alheias115. A curiosidade é um cuidado (curi-) em ver (-opsidade) o novo e diferente pelo simples fato de ser novo e diferente, razão pela qual logo se enfastia e passa para a próxima coisa a ser vista ou ouvida, sem nenhuma experiência (pathos) mais profunda de aprendizagem (mathos), como acontece a Fedro. Não obstante o vocábulo em questão – “curiosidade” – ser de étimo latino, e não haver, aparentemente, um vocábulo grego que corresponda rigorosamente a ele, é plausível ver a passagem em apreço dentro de uma tradição crítica a esse tipo de disposição, a começar por Homero116 e Heráclito117, passando por Sócrates118, Platão119, Plutarco120 e

                                                                                                                         

115 Cf. as epígrafes desse capítulo, bem como a importante influência de Hípias sobre Fedro.

116 Refiro-me, é claro, à passagem das Sereias, mas não só a isso. Vale reparar também na crítica de Telêmaco aos pretendentes, que não cuidariam de outra coisa senão de consumir os bens de seu pai e de ouvir os cantores (Od I, 159- 161; ENGLER, 2013, p.37), bem como em seu comentário de que os homens se comprazem mais com histórias sobre o que há de mais novo (neotáte) (Od. I, 352). Pode-se sublinhar também a diferença marcante entre, de um lado, a experiência profunda de reconhecimento e compaixão – eleeinòn - que Odisseu tem com a poesia (Od.VIII, 531) e, de outro, o entretenimento frívolo dos pretendentes. ARENDT, 2009, p.75. Essa experiência de Odisseu pode ser um exemplo do que Aristóteles depois atribuiria à tragédia. ENGLER, 2013, p.42; ARENDT, 2009, p.74.

117 Fragmento 40. Cf. epígrafe do capítulo. 118

Não só o Sócrates platônico, como nessa passagem aparece, mas também o de Xenofonte, quando, por exemplo, censura os que investigam a natureza do cosmo presumindo ou bem que já conhecem suficientemente as coisas humanas, ou bem que poderão tirar proveito desses conhecimentos, como se pudessem, p. ex., fazer chover ao seu alvedrio graças ao conhecimento do céu. Mem. I, 11-15. Segundo Diógenes Laércio, Sócrates teria passado a filosofar sobre os costumes depois de concluir que a physiken theorían nada significa para nós. Vidas, I, 21. 119 Na cidade em palavra da República, só para citar um exemplo, a sede pelo novo – neoterismòn - é um dos graves sintomas de degeneração da cidade. Rep. 422a1.

120 A palavra que Plutarco usa é “polypragmosýne”, o que remete mais a uma ingerência no alheio, a uma indiscrição, do que a um desejo de saber. Mas ele também define esse mesmo fenômeno como um desejo de saber dos males alheios (philomátheia allotríon kakôn). Seria preciso, conforme a metáfora do autor, fechar as janelas da alma que estão voltadas para a casa alheia e passar a cuidar de si mesmo. FOUCAULT, 2006, p.269. No mais, se esse vocábulo grego corresponde ao latino em questão, tanto mais crítica é a visão que a República tem da curiosidade, uma vez que a polypragmosýne é um dos

Agostinho121, e chegando até Rousseau122, Heidegger123 e Gadamer124. Para falar de forma deveras sintética, a rusga desses filósofos com a curiosidade deixa-se resumir mais ou menos assim: ela seria sintoma de uma falta de magnanimidade, uma vez que consiste em um interesse por coisas pequenas, e a sabedoria que o filósofo ama não tem que ver com isso, mas sim com o Ser, com Deus, com o Bem ou coisas que o valham; depois, seria o desejo por um conhecimento que em nada edificaria o caráter, e, ao contrário, seu desinteresse – “conhecer por conhecer” - seria cúmplice de um relaxamento e alívio pelo esquecimento dos deveres e afazeres mais próprios, relacionados à vida prática.

Outra coisa bem diferente seguir-se-ia se os mitos fossem encarados poeticamente à maneira de Aristóteles, vale dizer, como a representação de uma verdade universal e necessária a respeito da vida humana, verificável por cada um dos homens a partir de si mesmos na medida em que reconhecem no mito um caso paradigmático de uma sequência não casual de acontecimentos em que eles próprios se veem enredados em suas vidas125. Já não se trataria mais de algo alheio, singular e contingente. Assim, o ouvinte/espectador, deixando-se momentaneamente iludir pela brincadeira (paidiá) do mito, tiraria dele um padrão - que costumamos chamar de moral da história -, que poderia reconhecer em outros contextos de sua própria vida. O medo e a compaixão do espectador diante dos reveses do herói já seriam sinal dessa compreensão, uma vez que pressupõem umapossível identificação com o herói. Isso acontece com as crianças muitas vezes através da representação mimética dos personagens ou da fábula como um todo. Quando imita um cachorro, por exemplo, ela já abstraiu um padrão e

                                                                                                                                                                                                                                                                 

principais males da cidade feita com a palavra (Rep. 443d-444b), em contraposição à condição saudável de cada um realizar o que lhe é próprio, tá autoû práttein. Rep. 433d-e.

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Confissões, X, 35. 122

No seu Discurso sobre as ciências e as artes, argumenta que os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. ROUSSEAU, 2005, p.15.

123Ser e Tempo, parágrafo 36. 124Verdade e Método, 131. 125

Poética, IV; FERRARI, 2002, p.12. Mais ou menos nesse sentido Griswold explica por que aquela sabedoria sofisticada seria rude: ela subestima, como meio importante para se alcançar a verdade, os termos em que a pólis, em contexto pré-científico, articula e representa a si mesma em seus mitos. GRISWOLD, 1996, p.37-38.

está agindo conforme a ele - por exemplo, anda de quatro e não em pé, late e não mia. Ela sabe quais são as “regras” dessa brincadeira de uma maneira prática. Antes de seguirmos para a interpretação da noção de brincadeira (paidia) no Fedro, cumpre notar que Fedro não acolhe o mito de Oritia com essa docilidade lúdica. Em outras palavras, com sua expectativa de naturalização do mito, ele se esquece de se deixar iludir por ele e reconhecer, assim, o que poderia ter de comum com sua própria vida – e não são de somenos importância as coincidências entre ambos.

O conteúdo do mito

Agora nos dedicaremos a interpretar o próprio conteúdo do mito no contexto do diálogo, e não apenas o modo com que Sócrates e Fedro lidam com ele, o que já fizemos acima e a que se restringe a maioria dos intérpretes126. Claro que, por outro lado, é bem provável que o modo com que Fedro lida com o mito, de certa maneira esquecendo-se de si mesmo em virtude de sua admiração pelo artifício do intérprete, deve falar algo sobre o próprio conteúdo do mito.

Para Ferrari, o mito centraria no problema da naturalização. Oritia era nativa de linhagem impecável, porquanto filha de Erecteu, primeiro rei ateniense nascido diretamente da terra, ao passo que Bóreas era deus selvagem do norte distante127. Tendo Bóreas por essa razão sido rejeitado como pretendente, teria tomado pela violência o que lhe fora recusado pela persuasão128. Os atenienses acabaram dedicando-lhe um culto, depois que o deus atendeu-lhes um pedido, mas mantiveram seu altar fora dos muros da cidade. Isso ocorreu da seguinte maneira. Estando a frota dos atenienses passando por maus bocados, foram consultar um oráculo. Esse aconselhou-lhes que pedissem auxílio a seu genro. Então eles concluíram que o oráculo falava de Bóreas, porque o deus desposara Oritia, filha de Erecteu. Depois de pedirem a ajuda, os ventos marítimos se lhes tornaram propícios, com o que os atenienses puderam destruir a frota inimiga. Por graça dessa ajuda de Bóreas,

                                                                                                                         

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Ferrari (2002) e Griswold (1996), por exemplo, embora cada um tenha dedicado um livro inteiro ao diálogo, relegam para as notas de rodapé quase toda interpretação do mito.

127 FERRARI, 2002, p.284; BRANDÃO, 1990, p.269; HERÓDOTO, VII 189. Bóreas é o vento norte.

128

FERRARI, 2002, p.284. Sócrates e Fedro estão muito próximos do altar de Bóreas, segundo o comentário de Sócrates em 229c3.

“quando retornaram à pátria ergueram-lhe uma capela às margens do Ilisso”129 .

Já para Griswold, o mito anteciparia o tema da violência do amor, central nos dois primeiros discursos do diálogo, que por isso criticariam o pretendente apaixonado130. Em nota ele ainda acrescenta que Fedro seria indiretamente associado por Sócrates a Oritia, Pharmakeia ao texto de Lísias e o próprio Sócrates a Bóreas, pois, como é dito a seguir (230d6), foi atraído pelo discurso de Lísias como por um phármakon que é capaz de tirá-lo da cidade, e, como Bóreas, agora levará Fedro embora131. Tal interpretação não deixa de ser plausível, sobretudo à luz da consideração posterior da filosofia como uma loucura divina e um tanto selvagem que, arrebatando o sujeito para o lugar supracelestial (247c1), o faz perder os hábitos convencionados (265a-b)132. Desta feita, Pharmakeia poderia corresponder aos discursos com que Fedro estaria brincando durante todo o diálogo com Sócrates, do texto de Lísias aos outros, ao passo que o sopro desse deus estrangeiro que é Bóreas corresponderia à loucura divina da inspiração filosófica. A certa altura da palinódia, aliás, o amor filosófico é considerado um pneûma, um sopro vital (255c-d), como agora se fala no pneuma, vento ou soprode Bóreas133.

De fato, essa leitura não pode ser descartada. Mas ela não é a única possível. Outra muito plausível é de que Fedro, jovem nativo e efeminado como Oritia, foi arrebatado para fora da cidade ao brincar (paidzo) com o texto de Lísias, estrangeiro e “o mais terrível dos atuais escritores”134; esse amor ao texto sem nenhum senso crítico estaria prestes a acarretar a morte de Fedro, no sentido de que sua alma – princípio vital pela capacidade de automovimento – estaria sendo corrompida em sua essência, ou seja, em sua capacidade de pensar. Sócrates apareceria, então, não como aquele que vai causar a morte, senão que como aquele que vai despertar Fedro e, portanto, salvar-lhe a

                                                                                                                         

129 HERÓDOTO, VII 189. 130GRISWOLD, 1996, p.37. 131Ibid., p.252.

132 À luz também da acusação a Sócrates de corromper a juventude e de introduzir novas divindades que não as da cidade. Cf. Apologia de Sócrates. 133 Em República, 394d7-9, Sócrates diz que ele e seus interlocutores se devem deixar levar pelo lógos, como se por uma brisa, pneûma, aonde quer que ele os leve.

alma através do diálogo135. Fedro estaria possuído por um canto e ficaria a repeti-lo sem saber, o que implicaria o esquecimento de si mesmo, exatamente como sucedeu às cigarras. Nesse sentido, as duas passagens enfatizariam a importância do diálogo no acolhimento do canto, como algo que o purifica de influências maléficas e restitui o autoconhecimento e a verdadeira natureza do sujeito. Não foram os amigos de Odisseu que o prenderam ao mastro e ao seu propósito de voltar para casa, quando ouvia o canto das Sereias? Não fosse a chegada de Sócrates, não ficaria Fedro brincando ali sozinho, fora da cidade, sem ter quem lhe contrapusesse objeções, repetindo sem conhecimento o texto de Lísias? Além disso, mais de uma vez Sócrates exortará Fedro a voltar à cidade.

Discurso como entorpecente

Com efeito, mais especificamente quanto a Pharmakeia, ela deveria remeter imediatamente a discursos, a julgar pela analogia entre discurso e phármakon (remédio-veneno) consagrada assim pela sofística136 como pelo Sócrates platônico137. O próprio Sócrates reitera-o algumas linhas abaixo, ao dizer que Fedro, levando consigo o texto de Lísias, encontrou o phármakon adequado para tirá-lo da cidade, pois jamais sai da cidade. Por conseguinte, Pharmakeia deve estar não somente pelos discursos em geral como, mais especificamente, pelo texto de Lísias. A consideração posterior da escrita como

                                                                                                                         

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Quem primeiro vi aventando essa interpretação do paralelo com o mito foi ENGLER, 2013, p.358-359. O autor julga, ademais, que a ênfase no mito pode resolver o problema da unidade do diálogo. Pois se Fedro está por Oritia e Lísias por Bóreas, todo o diálogo consistiria na tentativa – bem sucecida, segundo Engler – de Sócrates resgatar Fedro de seu entorpecimento pelos discursos retóricos à maneira de Lísias. Assim, a tarefa pedagógica de Sócrates é que conectaria as duas partes do diálogo, o que não é difícil de demonstrar, principalmente se repararmos bem no mito das cigarras, que fica na passagem de uma para outra. Concordo com essa leitura; acrescentaria apenas que essa unidade pedagógica e dramática se reflete em uma unidade temático-conceitual, se assim se pode falar, através da noção de “philologos”, “amante do discurso”. Penso que isso não se opõe em nada à leitura de Engler, bem ao contrário, porque essa noção caracteriza perfeitamente a personalidade de Fedro.

136 Protágoras, Teet. 166e; Antifonte, RIBEIRO, 2008, p.35; Górgias, Elogio de Helena, 14.

137

Cármides, 155b-157c; Mênon, 80a-c. Cf. Sócrates, o feiticeiro. GRIMALDI, 2006; Fedro 270b6-7.

umabrincadeira e um phármakon para a memória, bem como a clara manifestação de arrebatamento, no sentido poético-retórico, de Fedro pelo texto de Lísias reforçam essa interpretação: contagiado por um furor báquico (synebákkheusa), Fedro brilhará ao brincar (ler e interpretar) com o discurso de Lísias (234d).

Um texto de Górgias mostra bem a que vem a ilustre analogia: as palavras não seriam mero veículo passivo e neutro que transmitisse uma realidade já dada por si mesma antes do discurso, como simples instrumento (órganon)138. Elas teriam tal poder de encantamento (dúnamis tês epoidês), que, como entorpecentes, enfeitiçam (goeteías), suscitam ilusões (apatémata), magicamente (mageías) tornam presentes as coisas mais distantes, despertam as mais variadas emoções e, assim, podem ocasionar tanto ações divinas quanto a funesta morte139. Em outras palavras, ressalta-se o poder psicagógico das palavras, de despertar a alma e de alterar-lhe as sensações, seja para o mal, seja para o bem - ambiguidade própria do que é remédio-veneno (phármakon). A importância de paidia no Fedro e no corpus

Se, portanto, a interpretação esboçada acima está correta, Fedro, como Oritia, saiu para brincar com um remédio-veneno, que no seu caso é o texto de Lísias. Assim, essa primeira ocorrência do paidzein(brincar) por si só colocaria a noção de brincadeira (paidia) no centro do diálogo. Mas essa está longe de ser a única, como passaremos a ver agora, a fim de compreendermos o importante papel que a brincadeira exerce não só no Fedro, como também no corpus platônico como um todo.

Antes, convém dizer algo a propósito do termo grego em questão: “paidia”. Tal termo tem um sentido amplo: jogo, brincadeira, divertimento, jogo de criança; chiste, bagatela, passatempo. A raiz do vocábulo é pais, paidos, criança, menino, donde o verbo paidzo: brincar, divertir-se, ser jovial; dançar, tocar um instrumento; caçoar; chalacear; troçar de, rir-se de. Pela relação com pais, paidia também está relacionado a paideia: cuidado com as crianças, formação, educação, cultura. Como muitas vezes “jogo” remete mais a ideia de disputa e

                                                                                                                         

138 Como sublinha Barbara Cassin, referindo-se simultaneamente a Elogio de Helena,14 e Teeteto, 167c, o “logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento das almas e das cidades”. CASSIN, 2005, p.66.

competição, algo de que os gregos falariam com o termo “agon”, e como o termo “paidia” está mais relacionado à esfera do infantil e do lúdico, talvez brincadeira seja uma tradução melhor do termo. Por outro lado, essas duas experiências aparentemente diferentes tendem a se confundirem: muitas competições têm algo de lúdico e muitas brincadeiras são também jogos no sentido de competição. Essa deve ser a razão pela qual muitas línguas usam o mesmo termo para falar das duas experiências, como ocorre no italiano, em que um gioco é também uma brincadeira infantil, mas também no próprio português, em que, embora nem sempre uma competição seja uma brincadeira, mas “coisa séria”, as brincadeiras podem muitas vezes ser chamadas de jogos. Em todo caso, a tradução de paidiá usada aqui, na medida do possível e em que o contexto permitir, será a de brincadeira, porque é preciso remeter a uma experiência fora da tensão do cotidiano pragmático, algo que pressupõe ócio (skhole), certo relaxamento e prazer;por isso,paidia deve ser algo livre no sentido de que é feito por si mesmo, independentemente dos produtos, lucros ou consequências posteriores