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Crítica aos manuais (266d-269e)

2. A segunda parte do diálogo e problemas da referida leitura

2.5. Crítica aos manuais (266d-269e)

Depois de Fedro negar que aqueles fossem os retóricos, Sócrates pergunta: mas haveria algo de artístico fora da dialética? (Ou seja, toda arte seria baseada na reunião e divisão das formas.) Fedro diz que muitas coisas, como aquelas que estão nos livros escritos sobre a arte dos discursos. Sócrates passa a expor, então, o que chama de subtilezas da arte (ta kompsa tes tekhnes), principais pontos desses manuais, para depois perguntar sobre o poder (dynamin) da arte. Dá o exemplo, então, de quem tem só o conhecimento do manual médico e de alguns procedimentos e diz que tem a arte toda (ciência e ensino). Que, depois de ouvi-lo, diria o especialista? Diria, segundo Fedro, que teria de saber também a quem, quando e quanto aplicar tudo isso, e chamaria de louco

                                                                                                                         

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Para nem mencionar, caso a primeira passagem seja a referida, que a relação entre Odisseu e Calipso é de suspeita e certa manipulação.

78 Ryan lê assim a reserva de Sócrates. RYAN, 2012, p.275. Mas sua reserva diz respeito não a incluir ou não os retóricos na forma dos capazes de reunir e dividir conceitos, porque afinal ele já estava descrevendo esse procedimento como a verdadeira arte retórica; sua reserva diz respeito a chamá-los ou não de dialéticos. É Fedro quem está correto, ao logo em seguida rejeitar chamar os capazes de reunir e dividir conceitos de retóricos: afinal, os retóricos são especialistas em discursos vivos e animados, não nessa divisão de “corpos”. GRISWOLD, 1996, p.182.

quem não sabe isso, só tem livros e remédios, mas que diz que seus alunos aprenderão por si mesmos essas coisas. Sócrates dá exemplo de pretenso harmonista que vai ter com Sófocles. Fedro responde que escarneceriam do sujeito, se não soubesse que uma tragédia é uma composição ordenada desses elementos entre si e em relação ao todo. Sócrates, porém, diz que agiriam como músicos e não seriam rudes, e representa-os: “ó amigo, tens as lições necessárias, mas não é o suficiente”. Péricles (“homens mais sábios”), ou melhor, Sócrates imitando-o, diz que não se deve ser rude, mas compreensivo, com os que, não sabendodialégesthai, não podem definir o que é a retórica.

Interpretação: Fedro corrigiu as reuniões de Sócrates no fim da passagem anterior, o que já exemplificou deficiências do método (que por si só não prevê um interlocutor). Os problemas da técnica ficarão ainda mais claros agora, com o que o diálogo parece oscilar em um movimento pendular entre inspiração e técnica. Assim, vê-se Sócrates desenhar a situação de alguém que pretende ter um conhecimento (epistamai, epistamenos, epistemen, 268a-b5) pelo fato de, tendo um manual (tekhne/biblion), poder fazer algumas classificações conceituais (remédio x => efeito y) avulsas e gerar alguns esparsos efeitos práticos, conforme desejar (ean boulomai!). Repare-se na semelhança com quem conhecesse o método dialético mencionado antes, que fora determinado em grande consonância com o procedimento correto para escrever. De fato, nesse momento, a crítica aos manuais deve reverberar, por suas afinidades, sobre escritos e técnicas em geral: todos são algo de fixo, têm alto nível de abstração, isto é, pretendem não depender de um contexto determinado (kairos), podem ser “aprendidos” por alguém que está só e envolvem partes separadas, mas não necessariamente um todo orgânico. Depois, o pretenso sábio está autoiludido, como já foi salientado que era provável acontecer com o método de reunião e divisão. Lendo um livro sozinho, ainda não encarou ninguém com seu pretenso saber e julga-se, por isso, sábio. Sua situação é semelhante, portanto, à daquele orador que, ignorante, vendia um asno como um cavalo, o mal pelo bem; como naquele caso a audiência também era de ignorantes, o orador acabou iludindo a si mesmo ao persuadir os outros. Fedro chamou-o de ridículo e foi repreendido pela “arte retórica”, que lhe pediu tratamento menos rude. Naquela ocasião Sócrates acrescentara que era melhor ser ridículo entre amigos (philon) que habilidoso entre inimigos (260c3). Teria esse novo ignorante a sorte de um amigo (philos) para salvá-lo da ignorância da ignorância?

De fato, a situação que Sócrates idealiza agora é diferente. O atual pretenso sábio tem mais sorte: foi ostentar (epideiknymenon,

269a1) – note-se que ele afirma (eipoi) que sabe, mas não pergunta nada (268a9-b4) – sua pretensa sabedoria justamente diante de especialistas, provavelmente aqueles que escrevem os manuais. O que diriam eles? - pergunta Sócrates a Fedro. Diriam, responde o outro, que é louco (mainetai) e ridicularizá-lo-iam (katageloen), pois não sabe quando, a quem e em que medida aplicar as lições, bem como, no caso do pretenso poeta, não sabe que deve combinar de forma adequada (systasin prepousan) esses elementos entre si (alleois) e em relação ao todo (to holo) (268d5) para formar uma tragédia.

O defeito desse pretenso sábio, portanto, é confiar demais em regras fixas e achar que elas lhe bastam para saber, bem como que seu papel enquanto mestre restringe-se apenas a elas. Pois quando ele considera a importância da contingência na prática de sua arte, deixa-a totalmente a cargo da prática dos alunos, como se não tivesse de alertá- los das vicissitudes da contingência, do caráter simplificador do método, da necessidade de pouco a pouco e com muito cuidado aprender pelas experiências. Depois e o mais importante, não percebe que, dado os limites do manual, deveria ensinar também pelo seu próprio exemplo, compensando assim as limitações da transmissão teórica do seu saber e mostrando aos alunos como, com sensibilidade ao momento e experiência, pode-se superar as limitações dos manuais. Seria um mau aluno e um mau mestre.

Mas note-se que Fedro faz algo parecido, porque praticamente repete o que dissera Sócrates em 264c5 (synestanai [...] preponta allelois kai to holo gegramména). Essa também é uma lição apenas “aprendida” e é o próprio Fedro um pretenso sábio que, mal tendo ouvido uma regra, sai por aí a aplicá-la a torto e a direito. Diríamos que Fedro aprendeu? Parece que lhe faltou saber quando e como aplicar o preceito, justamente na hora de corrigir outros por esse mesmo defeito. Em contraste a Fedro, porém, os homens que não são rudes, mas musicais, educados e sabem dialogar (epistamenoidialegesthai, 269b679) não reagiriam assim, bem como – e essa parece ser a grande lição da passagem - Sócrates não reagiu assim com Fedro.

                                                                                                                         

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Penso que aqui pode ser um erro traduzir “dialegesthai” por “dialética”, como fazem alguns tradutores (Ferreira, Nunes, Hackforth; Scully traduz por “don´t know how to think dialectically”, que parece melhor, mas não o suficiente). O que está em questão é justamente a diferença entre técnica (e episteme), de um lado, e saberes não técnicos, de outro: repare-se em como, de um lado, o aspirante a mestre usou termos cognatos de episteme e em como, de outro lado, para falar nos verdadeiros mestres Sócrates usa mais: “mousikos”, “não

A beleza da passagem é comovente. Sócrates simula uma situação em que bons mestres sabem compensar as deficiências das suas próprias formulações teóricas com o exemplo concreto dos seus próprios atos no trato íntimo com os discípulos. Eles não apenas dizem que no saber há um elemento importante de contingência, mas também, ao reagir ao erro momentâneo do aluno, dão eles mesmos o exemplo de como, com sua sensibilidade (mousikos), seu trato amável, suas palavras adequadas, no momento oportuno e no tom adequado, as deficiências do manual podem e devem ser supridas. Falávamos antes que o método de reunião e divisão tinha problemas, porque seu usurário não tem como saber que sabe, se sabe, nem que não sabe, se apenas pensa que sabe, e seu ouvinte poderia não compreender, não ser persuadido ou até ter outras teses; aqui, pois, temos um caso assim. E os homens mousikoi e sophoteroi mostram-se dispostos a escutar outras teses e dialegesthai sobre sua própria arte - eles não se comprazem somente com o que não os contraria (238e4). Eles não são, portanto, adeptos do método, pelo menos não a todo custo – suas ações mostram que seu saber vai muito além do método e como eles suprem as limitações do mesmo: mousike, paideia, dialegesthai. Não é casual que todos esses saberes – medicina, poesia e oratória – envolvam práticas em meio a outros homens e, pois, comunicação80. E, aparentemente, saber e afeição também estão unidos aqui: os mestres revelam-se tais nesse trato cuidadoso, e não conseguiriam ensinar assim sem essa afeição. O jeito de Fedro repreender, por outro lado, além de demonstrar falta de capacidade para cumprir um preceito ao qual se apega tanto – sensibilidade ao que é apropriado a cada vez - provavelmente despertaria hostilidade e impediria a aprendizagem. Ele não teria falado bem (kalos), nem

                                                                                                                                                                                                                                                                 

agroikos”, “não apaideuton”, “sophoterous”, “dialegesthai”. Esses caras sabem algo além das anankaia mathemata, algo, portanto, não ensinável somente em logo, mas ao menos “mostrável” em dialegesthai. Eles são – note-se a brincadeira, depois da ênfase anterior – epistamenoi dialegesthai.

80 A comunicação entre médico e “paciente”, bem como a escuta do “paciente” por parte do médico é fundamental na medicina hipocrática; se a medicina não é uma ciência exata e cada caso, portanto, tende a ser único, o que o próprio “paciente” diz sobre sua doença torna-se fundamental. Cf. JAEGER, 2003, p.1015-1016, A Medicina como Paideia. E há inúmeras analogias muito férteis entre a medicina antiga e a prática socrática. Por outro lado, a nossa medicina, ao que parece, é bem diferente, o que não é nenhuma surpresa, haja vista que os atuais estudantes de medicina passam boa parte de sua preparação estudando corpos, ou seja, cadáveres.

ensinado por seu próprio exemplo a verdade da importância da sensibilidade.

Notemos, por conseguinte, que é Sócrates quem está ensinando Fedro a dialegesthai, ao forjar esse diálogo de forma tão oportuna e imitar os modos desses homens educados e sensíveis. Brincando com uma situação hipotética, é o próprio Sócrates quem indiretamente censura Fedro; entretanto, fá-lo com tamanha suavidade que Fedro pode compreender perfeitamente qual seria o equívoco sem criar qualquer animosidade ao que diz o mestre. É o próprio Sócrates, assim, que através de seu próprio exemplo de sensibilidade – e que sensibilidade! – ensina seu querido discípulo que na prática da dialética há muito mais do que um método e uma arte podem descrever81.

Há, portanto, um elemento que não pode ser articulado em regras, nem, por isso, facilmente ensinado, em todos esses saberes – medicina, poesia, oratória e dialética; a esse elemento de algum modo corresponde o antes mencionado saber das inspirações divinas (244), dentre as quais estava o amor.

                                                                                                                         

81 Até onde posso saber, Ferrari foi o único intérprete a pegar algo da grande beleza e sensibilidade da passagem: “Socrates’ corrective to the tone of Phaedrus’ outburst is long and elaborate. And I take it that Plato is thereby directing his readers to pay more than passing attention here to what might otherwise seem an unexceptionable but casual point: the artists – by that token, persons of culture – are likely to discuss their art, as they would discuss anything else, in an urbane manner. For there is a significant lesson to be derived from Socrates’ exchange with Phaedrus here. Although the point Phaedrus makes is correct and important (Socrates does not alter its substance in the reformulation that he puts in Pericles’ mouth) it nevertheless approaches the truistic – at least, if one brandishes and bandies it about as Phaedrus does. […] Phaedrus’ appeal to the artist’s sense of appropriate shows every sign – this I take to be the nub of Socrates’ admonishment – of ossifying into just that formulaic pose which he derides in the hack. Secure behind his slogans, Phaedrus sees no need to communicate his case to those who disagree, but dismiss them from rational discussion altogether […] But Phaedrus is not ignoring this fact; he is closing his eyes to the implication of his own indignant claim that what the doctor or poet or artist in general knows is more than just a list of explicit rules: to wit, that if the artist is to communicate what he knows, he must, at least to some extent, teach by his own example”. FERRARI, 2002, p.72-73. Ainda assim, o autor parece não ter percebido que Fedro aplicava um preceito apenas aprendido com Sócrates, tampouco ele acentua que é Sócrates quem está sendo um dos homens mais sábios a corrigir amavelmente um discípulo (Fedro) e a dar-lhe o exemplo.

2.6. A defesa do caminho (méthodos) de Péricles e Hipócrates, e