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Conversa com e sobre uma tékhne lógon (259e1-262c)

2. A segunda parte do diálogo e problemas da referida leitura

2.3. Conversa com e sobre uma tékhne lógon (259e1-262c)

Sócrates exorta Fedro a spképsasthai em que consistiria falar e escrever kalôs ou não, e já levanta, em forma de pergunta, a primeira hipótese: não deve o orador conhecer a verdade sobre o que fala para falar belamente? Não é isso que Fedro ouviu: o orador não precisa aprender o que é justo, belo e bom, mas apenas o que parece à maioria, que é quem julga, consistindo nisso e não na verdade a persuasão. A fim de examinar o que disseram os sábios, Sócrates reduz ao ridículo (brinca?) o que Fedro ouviu: plasma o exemplo da venda de asno por cavalo, e do bem por mal, por parte de retores ignorantes. Fedro diz que seria muito ridículo. Sócrates evita a rudeza excessiva (agroikóteron) com a tôn lógon tékhnen, e, assumindo ele mesmo o papel e a voz da arte (brinca?), dá-lhe a palavra em um diálogo: “eu não forço a aprender a falar quem desconhece a verdade; mas sem mim o conhecimento da verdade por si só não é suficiente para persuadir com arte”. Sócrates, então, ouve outros lógoi, que dizem que a retórica não é arte, senão que apenas uma rotina sem arte (átekhnos tribé) – ecoando o Górgias -, pois sem a verdade não haveria arte autêntica da palavra. Fedro pede que

traga para perto esses lógoi e examine como (pôs) e o que (tí) dizem. Sócrates traz os discursos para persuadirem a bela-criança Fedro de que sem filosofia não poderá falar bem sobre nada. Fedro pede que eles perguntem! Sócrates oferece, em forma de pergunta, a primeira definição de retórica: não é uma arte de conduzir (psykhagogía, despertar) almas pelas palavras, seja onde for, sobre o que for? De maneira nenhuma foi isso que Fedro ouviu: só ouviu da oratória pública (ecoa o Górgias novamente). Sócrates fala de Nestor, Odisseu e Palamedes em campanha, mas também que no Tribunal e na Assembleia pratica-se a controvérsia (antilogia), algo que pode ser obtido pela arte em qualquer lugar e sobre o que for. Isso fazia o Palamedes de Eleia. A conclusão de Sócrates é a segunda definição de retórica:Há, portanto, uma só arte sobre tudo que é dito: arte da antilogia/controvérsia, de fazer o mesmo ora parecer assim, ora o seu oposto, e de desmascarar quem faz essas aproximações. Fedro não entende bem. Sócrates fala que é mais fácil iludir pelo que difere pouco que pelo que difere muito; deslocando-se de mansinho, pois, passa-se para o oposto sem ser notado mais facilmente que passando rapidamente. Logo, quem quer iludir outro sem iludir a si mesmo tem de conhecer as semelhanças entre os seres, o que implicaria conhecer a verdade de cada um. Portanto, será ridículo – i.e., poderá iludir menos e, se iludir, iludirá a si mesmo - quem vai à caça da opinião sem conhecer a verdade, por não possuir a arte (terceira definição?). Sócrates aconselha tomar os discursos já proferidos a ver se foram feitos com arte ou não. Fedro aceita a ideia, porque já falavam de forma muito abstrata (psilos) e desnuda de modelos (paradeígmata). Sócrates atribui ao acaso e às divindades locais terem proferido dois (!) discursos (tò lógo) tendo um (!) modelo de como quem conhece a verdade pode, brincando com discursos (prospaídzon lógois), enganar (parágoi) os ouvintes. Então Sócrates pede que Fedro releia o princípio do lógos de Lísias (!).

Interpretação: O primeiro a ser dito sobre a passagem acima deve ser a repeito do método usado (?). Que aqui se não usa o procedimento de síntese e análise parece claro. Vemos, ao contrário, a boa e velha dialética socrática, que avança levantando hipóteses em forma de pergunta e, através da troca de perguntas e respostas com um interlocutor, testa essas hipóteses. Prova disso é que várias definições de retórica, nem todas coerentes entre si, serão adotadas e em alguma medida descartadas. O costumeiro estilo lúdico – recorrendo a imitações, a metáforas e imagens -, que afinal sempre impregnou essa dialética, também é visto a todo vapor. Sócrates assume a voz da própria arte retórica, imitando-a, a fim de forjar um diálogo entre ela mesma

“pessoalmente” e Fedro. Também em tom jocoso, Sócrates opera uma reductio ad ridiculum da hipótese que Fedro ouviu. Aliás, como de costume, o que se tem ouvido – as opiniões bem reputadas - exerce um papel fundamental como fonte de hipóteses a serem testadas (e não a intuição direta de um gênero que depois é dividido em espécies): esse, afinal, era o material sobre o qual a operação descrita pela palinódia deveria operar (“o homem deve escutar o que é dito segundo a forma geral, indo das múltiplas percepções em direção a uma só, recolhida pelo pensamento discursivo”, Fedro 249b7)56. Nessa atual tentativa, ainda em curso, de escutar (com um amigo) o que se diz sobre a eloquência segundo a forma mais geral, várias perspectivas (ek pollon aistheseon) – nem todas totalmente condizentes entre si – são e ainda serão trazidas à tona e testadas. Note-se que Sócrates e Fedro estão longe de afirmar categoria e monologicamente uma definição por meio de síntese e análise. Ao invés, quase sempre Sócrates levanta suas definições em forma de pergunta. É digno de nota também a atual disposição de Fedro para analisar não só a forma (como) mas também o conteúdo (o que, ti) de certos lógoi, disposição essa que provavelmente é efeito da primeira parte do diálogo. Como, porém, uma reconstrução – como a que há de se seguir - esquemática (apenas) do conteúdo explícito (e literal) dos discursos anteriores poderia medir e julgar esse efeito? Ao que parece os discursos anteriores surtiram efeito psicagógico; por outro lado, a análise seguinte da retórica – síntese, divisão etc. - passa a ter outra ênfase e, parece, não é mais capaz de apreender esse aspecto. Sobre isso, embora já se tenha falado na importância das semelhanças (homoióteta) para iludir o ouvinte, não se falou nem se falará em imagens ou em metáforas, como na imagem (éoiken, 246a5) da alma, certamente o ponto alto da “retórica”, da “poesia” e da psicagogia da primeira parte. Uma imagem, uma metáfora e uma analogia seriam ainda semelhanças que iludem, como poderia ser o uso de um termo (“éros”, “lógos”) em sentido impróprio sem a percepção do ouvinte? Ou seriam semelhanças que ensinam e ajudam a compreender? Ou que iludem e ensinam a um só tempo? Em todo caso, essa análise da função psicagógica das semelhanças passa ao alargo da semelhança (?) mais

                                                                                                                         

56 Tradução minha de: Deî gàr ántropon syniénai kat’ eidos legómenon, ek pollôn iòn aisthéseon eis hèn logismô synairoúmenon. Cf. GRISWOLD, 1996, p.111-116, onde o autor mostra que isso não pode ser equacionado ao método de síntese e divisão descrito posteriormente. De fato, além da “síntese” ser diferente desse eis hen ek pollon, nessa descrição da anamnesis não se fala em nada parecido com uma análise ou divisão.

importante e mais psicagógica da primeira parte do diálogo – e não é isso digno de, no mínimo, suspeita? De resto, vale ressaltar que o mais ridículo na imagem traçada por Sócrates na seção acima não é nem a ignorância do orador, nem o fato de iludir ignorantes, mas sim o fato de que ele ilude a si mesmo; Sócrates não diz que ele não será capaz de persuadir sem a verdade – a prática tradicional da oratória mostra que os oradores persuadem, sim, sem saber a verdade -, mas sim que ele, não sabendo a verdade, poderá iludir a si mesmo. Isso será fundamental para uma crítica do método de síntese e análise e para a reivindicação da primazia da dialética como dialegesthai57.

2.4. Leitura e recordação dos discursos à luz dos critérios da arte