• Nenhum resultado encontrado

O mito de Teuth e a crítica à escrita (274c-278)

2. A segunda parte do diálogo e problemas da referida leitura

2.7. O mito de Teuth e a crítica à escrita (274c-278)

Sócrates recorre a uma história (akoen) dos antigos, que conheciam a verdade, para mostrar como se faz para compor ou pronunciar discursos agradáveis à divindade. Dentro desse “mito” surgirá o primeiro conjunto de críticas à escrita. Trata-se do diálogo entre duas divindades do antigo Egito. Uma era Teuth, descobridor (heurein) de muitas artes como a aritmética, o cálculo, a geometria e a astronomia. Note-se como elas coincidem, no currículo do rei-filósofo da República (VII), com as artes que antecedem à aprendizagem da dialética – que Teuth parece ter substituído pela escrita (grammata), a última arte mencionada por Sócrates. Como para Platão a dialética é a verdadeira “arte” política, não deve o leitor estranhar que um político rejeite a escrita em favor de recolocar a dialética no seu devido lugar92. A diferença entre a técnica (meios) e a política (fins)

De fato, Teuth foi exibir suas artes (tas tekhnas epedeiksen) para o rei (basileos) do Egito, Thamuz, a fim de aconselhá-lo a ensiná-las aos egípcios. Thamuz pergunta qual benefício (ophelían) cada uma delas traria aos cidadãos. Teuth diz que a escrita é uma mathema que irá tornar os egípcios mais sábios (sophotherous) e lembrados – estaria descoberto o pharmakon da sabedoria e da mnemes, memória. A resposta de Thamuz deixa claro que a relação entre ambos é a aquela entre um técnico e um político. Ele chama Teuth de “o mais técnico”, tekhnikotate, mas não – note-se bem – de “o mais sábio” (sophotatos), justamente aquilo em que pretende transformar os outros. Thamuz diz isso de Teuth porque se, por um lado, ele é capaz de inventar muitas artes, cabe a outro, por outro lado, discernir a respeito dos benefícios (ophelias) e malefícios (blabes) que essas artes podem causar a seus usuários. Essa última já não é uma questão técnica, mas política, moral, filosófica93. Não é um saber de meios, mas de fins, que implica

                                                                                                                         

92 Essa substituição da dialética pela escrita seria o resultado da ausência do Bem/Sol, já que Teuth elaborou o currículo na ausência de Thamuz, a divindade solar. GRISWOLD, 1996, p.283. Como essa crítica à escrita serve também para o método de reunião e divisão tal como descrito por Sócrates – e isso deve ser mostrado abaixo -, pode-se dizer que durante essa descrição houve uma escuridão em pleno meio-dia.

93

De fato, enquanto Teuth seria o Hermes egípcio, Thamuz, porquanto identificado com Amão, seria o Zeus egípcio; segundo a palinódia, Zeus é o

distinguir o bem do mal. Esse saber tem de lidar com aquelas noções polêmicas, ambíguas, com as quais lidam os filósofos – como o justo, o belo e o bom – e sobre as quais o consenso é difícil de ser alcançado. Não estamos mais na esfera da técnica, nem mesmo daquela que podia enunciar uma definição – clara, certa e coerente - e sair dividindo as formas diante de ouvintes passivos. Como a própria relação dialógica entre Teuth e Thamuz mostra, trata-se agora de diálogo sobre o bem e o mal, de evitar a falsa pretensão de saber (autoilusão) em si e no interlocutor (como em Teuth, que julga poder tornar os outros mais sábios), de beneficiar (ophelian), em vez de simplesmente persuadir, a alma dos outros. Teuth claramente tomou uma questão polêmica e ambígua (não técnica) como se fosse certa, segura, não ambígua; por isso nem lhe passou pela cabeça a possibilidade contrária (tounantion), ou seja, ele não deu voz a quem dele discordasse, não submeteu sua crença ao diálogo. Daí sua falsa pretensão de saber como tornar os outros mais sábios. Como os “homens mais sábios” e mousikoi fizeram com aquele que pretendia ter um saber, agora Thamuz, um político, irá limitar a pretensão de Teuth.

Com efeito, Thamuz rejeita a escrita sob o argumento de que, ao contrário (tounantion) do que pretende seu “pai”, ela levaria as almas dos aprendizes (mathonton) ao esquecimento (lethe), pela falta de exercício (ameletesia) da memória (mnemes). Assim, argumenta Thamuz, confiantes na escrita, será a partir de caracteres externos e alheios, não por si mesmos e a partir do seu interior que despertarão suas reminiscências (anamimneskomenous). Teuth teria encontrado o remédio apenas para a lembrança, mas não para a memória; ofereceria aparência (doksan) de sabedoria (sophias) aos discípulos, não a realidade (aletheian). Tendo ouvido muitas coisas (polyekooi) sem, contudo, verdadeira aprendizagem, julgar-se-ão sabedores de muitas coisas (polygnomones), embora ignorantes (agnomones); e ainda serão de convivência difícil, porque terão aparência de sábios (doksosophoi) em vez de verdadeira sabedoria.

A preocupação de Thamuz: a alma, certa memória, a aprendizagem e a autoilusão

                                                                                                                                                                                                                                                                 

deus dos filósofos, que são aqueles governantes por natureza. Por conseguinte, está sendo sugerida uma conexão entre Thamuz e o filósofo. GRISWOLD, 1996, p.282.

Vale notar que em nenhum momento Thamuz fala em tekhne ou episteme; seu modelo de saber é de outra ordem (sophias, agnomones). Certamente tal saber envolve autoconhecimento. Com efeito, a falsa pretensão de saber, a autoilusão e, pois, a falta de autoconhecimento é o principal malefício que ele atribui aos escritos depois do esquecimento. Trata-se, no fundo, de um só problema, porque ninguém pára para recordar - em sentido platônico, ou seja, para perguntar -, algo que antes não tenha reconhecido ignorar. Que ele está falando em recordação em sentido platônico evidencia-o o seguinte: além de enfatizar a anamnesis da alma, o interior em contraposição ao exterior, o por si mesmo diante do alheio, seu problema é claramente com o saber livresco, não com a falta de memória, por assim dizer, “ôntica”. Porque sem essa memória não haveria como o leitor contumaz parecer saber muitas coisas. Sem memória, ou bem ele teria de andar com os livros debaixo do braço, o que mostraria que não é ele que sabe, mas o livro, ou teria os livros lidos em casa, mas não lhes recordaria o conteúdo, o que também impediria que parecesse sábio. Ou seja, o problema de Thamuz não é com a pessoa que lê muito, mas não lembra o que lê, senão que com a pessoa que lê muito e lembra muita coisa que lê, justamente o que lhe dá aparência de saber e a torna uma pessoa “de convivência difícil” (khalepoi syneinai). Qualquer acadêmico pode lembrar-se aqui de seus colegas (e de si mesmo, provavelmente), cada um dos quais demasiado lido no assunto de sua especialidade e, por isso mesmo, louco para poder discursar (não, claro, dialogar) sobre seu assunto. E essas pessoas têm muito que falar e não lhes falta memória. Antes lhes faltasse... Em outras palavras, a distinção em questão não é entre alguém que recorda muitas coisas e alguém que ouviu ou leu muitas coisas, mas não as recorda, mas sim entre alguém que realmente compreende as questões e alguém que estocou muita informação – sem, contudo, verdadeira compreensão e aprendizagem (aneu didakhes)94. E a preocupação de Thamuz não é em como persuadir, mas em como beneficiar a alma e propiciar aprendizagem.

Que essa crítica aos escritos é feita à luz da dialética como dialegesthai ficará ainda mais claro com as críticas do próprio Sócrates. Desta feita tornar-se-á patente também que a técnica de reunião e

                                                                                                                         

94

Griswold enfatiza que Thamuz está preocupado com pessoas cuja memória está cheia, não vazia, mas cheia de conhecimento livresco, de muita informação sobre a qual essa pessoa não filosofou; assim o problema dela seria sua ignorância da própria ignorância e a falta de dialética no sentido rememorativo da palinódia. GRISWOLD, 1996, p.206.

divisão enquadra-se perfeitamente no que é criticado agora. Os intérpretes costumam pensar que Teuth simbolizaria Tísias, inventor da retórica do verossímil, enquanto Thamuz estaria por Sócrates, crítico dessa retórica. No entanto, é mais verossímil que Teuth esteja por Sócrates e Fedro, que acabaram de inventar a retórica realmente técnica e que se enquadra perfeitamente no escrito criticado. Sócrates disse que, dito o suficiente sobre a técnica dos discursos, cumpria agora tratar da conveniência em falar e escrever. Assim como o primeiro discurso de Sócrates, demasiado técnico, mas falso e blasfemo, tornou necessária uma retratação diante das inspirações divinas, agora também é como se um novo mito funcionasse como uma nova retratação, por parte de Sócrates e Fedro e graças a seus exageros tecnicistas, diante da autêntica dialética. O tom vanguardista predominante nessa segunda parte do diálogo, na exaltação da medicina de Hipócrates, da retórica de Péricles e da poesia de Sófocles, é substituído pelo respeito a uma velha história contada por homens do passado.

No entanto, o mito por si só não explica a contento como a escrita causa os referidos males. Ela prejudica a alma: prejudicando a memória, que, como vimos, não é qualquer memória, e gerando uma falsa pretensão e aparência de saber. No outro conjunto de críticas à escrita, agora formuladas pelo próprio Sócrates fora do mito, fica mais claro como a escrita causa esses males: desestimulando o diálogo.

Textos, autoilusão e a necessidade de aprender pela experiência Sócrates chama de ingênuos aqueles que pretendem ter deixado (katalipein) uma arte em escritos, bem como aqueles que, recebendo-a, julgam poder extrair algo claro (saphes) e firme (bebaion) dos escritos, quando na verdade os escritos são apenas um apoio para a memória de quem já sabe (275c-d). Portanto, a preocupação de Sócrates com os escritos é semelhante à de Thamuz: geram uma aparência enganosa de saber, tanto da parte de quem deixa escritos quanto da parte de quem os recebe. Se, por um lado, o objeto ou o resultado do saber é algo claro e firme, o movimento de pensamento que leva a ele, justamente o que o processo de ensino-aprendizagem deveria repetir, não é nem tão claro nem tão firme. A clareza e a solidez aparentes dos resultados do estudo ensejam um esquecimento do momento mais sofrido de gestação do saber. Mas são esses padecimentos que tornam o resultado mais claro e firme; como experiências traumáticas, marcam e tornam permanente um cuidado que dá clareza ao olhar. Essa clareza é uma percepção mais

aguda (oksy) dos limites (horos), possibilidades e capacidades; vem por experiências traumáticas porque essas sempre ensinam o que não se deve fazer, dizer ou pensar, aumentando assim a consciência dos limites, do que se pode e deve fazer. Desta feita, o saber resultante de estudo e prática deve ser algo de claro (distinção) e firme (experiência marcante), mas o estudo e a prática que levaram até ele, ao contrário, são cheios de cegueira, dúvida, ignorância, incerteza, erro, sofrimento – do contrário a coragem não seria uma virtude necessária para qualquer aprendizagem. Como esses aspectos são facilmente esquecidos diante da aparência que os escritos têm de clareza e certeza - que resulta no fundo de uma simplificação -, eles tendem a gerar uma falsa pretensão de saber e, portanto, uma falta de autoconhecimento. Exercem um feitiço parecido ao que certos contos infantis exercem sobre as crianças: identificam-se prontamente com o herói e consideram-se capazes, tão facilmente quanto ele, de voar, lutar e vencer todos os vilões sem deixar escorrer sequer uma gota de suor. Também acontece frequentemente de alguém que tenha lido um livro sobre o amor considerar que sabe o que é o amor, mesmo sem nunca ter-se apaixonado realmente; ou examinado o mapa de uma cidade e julgar que conhece a cidade; ou até lido uma descrição da célula e pensar que sabe já o que é a vida. O encontro com outro que lhe mostrasse que as coisas são mais complexas do que isso seria importante para evitar esse tipo de autoilusão95.

Essa ideia de que a experiência própria (pathos) é conditio sine qua non para qualquer saber digno desse nome já era consagrada pela tradição helênica. Em autores como Homero, Heródoto e Ésquilo, é ela

                                                                                                                         

95 Bem de acordo com isso, pode-se ver algo muito semelhante à crítica à escrita do Fedro em Xenofonte, em uma das descrições da relação entre Sócrates e o jovem Eutidemo. Esse juntara “tesouros de sabedoria” (thesaurous sophias), i.e., uma larga coleção de escritos dos mais reputados poetas e sábios, e por isso se julgava um prodígio em sabedoria e capaz de superar a todos da sua idade quer em ações quer em palavras. Sócrates mostra-lhe, então, que jamais houve sábio, na sabedoria que for, que não tenha tido um mestre (didaskalos) por cuja companhia (synousia) aprendeu seu mister, nem que não se tenha dedicado à prática e ao estudo desse saber. Leva Eutidemo, depois, a admitir o contrário de tudo que pensava sobre os assuntos com os quais pretendia lidar, mostrando-lhe desta feita a fragilidade de seu pretenso saber. Por fim, Sócrates alerta Eutidemo para a importância do preceito délfico – conhece-te a ti mesmo – e para os perigos da autoilusão (to epseusthai heauton). Memorabilia, IV, 2. Note-se que a erudição de Eutidemo é de algum modo associada à solidão, à ausência da companhia de um mestre e à possibilidade, decorrente dessas características, de autoilusão.

que dá o tom de muitas das cenas mais comoventes96; e em Ésquilo ela se transforma em uma máxima explicitamente formulada:

Aquele que antes foi grande, / pleno de belicosa audácia, / nem se dirá, por ser antigo. / Aquele que surgiu depois / teve seu trivencedor e foi. / Quem propenso (prophronos) celebra a vitória (epinikia) de Zeus / há de lograr prudência (phrenon) em tudo (to pan): / ele encaminhou mortais / à prudência (phronein), ele que pôs / em vigor “saber por sofrer” (ton pathei mathos). / A dor que se lembra da chaga / sangra insone ante o coração / e a contragosto vem a prudência (sophronein). / Violenta (biaios) é a graça (kharis) dos Numes (daimonon) / sentados no venerável trono97.

Uma das grandes descobertas de Sócrates é que haveria uma maneira de suscitar essas experiências de inestimável valor pedagógico em um plano virtual, por assim dizer, como o dos discursos e dos pensamentos98. Se esses sofrimentos em geral são causados por erros decorridos da falta de escuta a conselhos, e se, por outro lado, conselhos não são suficientes para ensinar, porque o valor pedagógico da dor da experiência própria é em última instância insubstituível, então que se encontre uma forma de falar e escutar que enseje experiências com esse caráter pedagógico. Eis o papel do diálogo socrático, e é à luz dele que Sócrates critica a escrita agora.

A crítica à escrita se dá à luz do diálogo socrático

                                                                                                                         

96

Em Homero, p. ex., quando Aquiles, depois do sofrimento da perda do amigo, reconhece o excesso de sua ira e reconcilia-se com Agamêmnon (Il., XVIII, 98); também quando Heitor está prestes a morrer, depois de ser ferido por Aquiles (Il., XXII, 296). Conselhos não foram suficientes a nenhum dos dois. Já em Heródoto, essa aprendizagem pelo sofrimento é visível quando, depois de seus reveses, Creso torna-se um sábio conselheiro. História, I, 89-90. Tampouco a ele conselhos foram suficientes.

97Agamêmnon, 167-183. Trad. Jaa Torrano. 98

Não se deve esquecer que, segunda a palinódia, Zeus é o deus da filosofia e o amor filosófico é um pathos. Fedro, 251e-252e.

O escrito, diz Sócrates, parece um ser vivo (dzonta), pensante (phronountas); é, porém, semelhante à pintura de seres vivos, a dzographia, cujos rebentos parecem vivos, mas se alguém lhes formula perguntas, calam-se completamente. Assim também com o escrito: dá a impressão de ser pensante, mas se alguém desejando aprender/compreender (boulomenos mathein) lhe pergunta algo, sempre responde dizendo a mesma e uma só coisa (hen ti semainei monon tauton aei).

Mas o discurso vivo e pensante não deve apenas poder, por assim dizer, ser desafiado por seu interlocutor, ele também deve ser capaz de desafiá-lo, isto é, não deve apenas poder ser testado, refutado (elenkhon!, 278c5), mas também deve ser capaz de fazer perguntas, testar, refutar seu interlocutor. Daí o problema que ele fala o mesmo para todo mundo, sem distinção, tanto para quem está preparado para ouvi-lo quanto para quem não está. O texto não consegue mostrar a um leitor determinado que suas crenças são falsas e que, por isso, deveria aceitar as do texto. O texto pode até fornecer discursos verdadeiros ao leitor, e pode até persuadi-lo, mas se o leitor não passa antes por esse processo de purificação das suas falsas crenças, somente por contraposição às quais se compreende a verdade do texto, na boca dele as palavras do texto tornar-se-ão vazias, mera repetição sem saber.

Essa dupla incapacidade de teste, de desafio e prova – tanto do leitor quanto do escritor – é causadora da pior das doenças que, segundo Sócrates, poderiam acometer o homem: a falsa pretensão de saber, a ignorância da ignorância. Como o papiro - ou o computador - aceita tudo e as opiniões do escritor não são testadas, tem a impressão de saber; como a compreensão que o leitor tem do texto não é testada, nem suas opiniões que contradizem o texto são desafiadas explicitamente, também o leitor terá a impressão de ter aprendido. Em outras palavras, Sócrates está compreendendo o discurso vivo e pensante como diálogo, como capacidade de responder e perguntar, de duas almas se testarem (elenkho) reciprocamente através do diálogo. A crítica, pois, dá-se à luz da dialética como diálogo e elenkhos, como cuidado e provação da alma de um e de outro, aquela mesma atividade à qual Sócrates dedicou sua vida – e não à luz da técnica de reunião e divisão. É que se, por um lado, essa era a ordem que o deus lhe deu99, os deuses, por outro lado - e a

                                                                                                                         

99

“[...] um deus [...]”, diz Sócrates na sua apologia, “me mandava levar vida de filósofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros”. Apologia, 28e.

diferença entre o humano e o divino -, estavam um tanto esquecidos durante a apologia da técnica100.

A crítica à escrita como crítica à técnica

Com efeito, não é casual que o método antes descrito coadune-se perfeitamente com o discurso que é criticado agora. Tanto uma coisa quanto outra pretende propiciar muita clareza (saphes) e coerência (homologoumenon) (265d6-7) aos discursos – os escritos dizem (-lego) sempre o mesmo (homo-). O método apresentava-se como capaz de fornecer um saber preciso, necessário, total, bem conforme a aparência de certeza e solidez dos escritos. Depois, se a descrição oral do método, bem como sua aplicação pela oralidade – como vimos acontecer com Sócrates – podia não ter a precisão, a coerência, a exaustão e o caráter definitivo que o método prometia, o que - como já sugerido aqui - seria mais adequado que a escrita para solucionar esse problema? E assim como a escrita, viu-se que a exposição metódica do discurso tendia a subestimar o momento menos metódico e mais sofrido de descoberta dos discursos e porventura da verdade. O método também pretendia fazer os discursos e os escritos parecerem vivos (aliás, ele veio à tona a reboque dessa pretensão); no entanto, tampouco ele era animado (empsykhon) pela capacidade de responder e perguntar. Daí, à diferença do momento em que se falou no dzoon da necessidade logográfica, agora se acrescentar que os discursos de que fala Sócrates são discursos vivos (dzonta) e animados(empsykhon) (276a8), porque podem dialogar. É que o princípio da vida (dzoe) seria a alma (psykhe), cuja essência fora determinada pelo automovimento (245c-e) – e isso, para a parte racional e discursiva da alma, é o automovimento do diálogo. De acordo com isso, embora sugerindo um discurso ideal, agora não se fala mais em corpos sendo cortados nas suas articulações, metáfora usada na descrição da necessidade logográfica (ou seja, da escrita) e na descrição do método – é que, como foi revelado, esses corpos eram cadavéricos. E o método tampouco previa a companhia de um interlocutor; ele era monológico como os escritos. Dessa deficiência vinha sua incapacidade de testar seus julgamentos e de separar o que apenas julga saber do que

                                                                                                                         

100 Assim, se antes Sócrates considerava o “dialético” um deus (266b-c) que poderia saber tudo (270d1), agora ele enfatizará que esse dialético é, não um sábio, pois isso seria apanágio divino, mas sim um filósofo (278d), que tampouco poderá ou se dedicará a conhecer tudo, mas apenas o belo, o bom e o justo (278a3).

realmente sabe; como os escritos, o método por si só era algo propício a gerar autoilusão, pretensão infundada de saber.

Submissão da técnica ao diálogo e negação dialética da técnica Não se quer dizer com isso que o método deve ser totalmente abandonado. Pois, de fato, ele tem diversas qualidades importantes: explicita as opiniões e, assim, torna quem dele se utiliza consciente de suas opiniões; organiza essas opiniões; torna os discursos mais claros e coerentes; deixa claro como cada passo que o discurso dá é necessário, não arbitrário; desvia falante e ouvinte do mundo sensível para uma esfera mais conceitual, inteligível; e assim propicia também um treino ao intelecto. Por essas razões o método não deve ser totalmente negado; uma vez, porém, constatadas suas limitações gnosiológicas e “éticas”, deve ser assimilado a um contexto dialético mais amplo e submetido a uma finalidade mais elevada101. Da mesma forma a palinódia não foi totalmente negada: tanto Sócrates e Fedro lidaram o tempo inteiro com formas inteligíveis - a forma do retórico e do dialético, a forma dos procedimentos, a forma do amor, da loucura e da alma – quanto o método deveria lidar com formas inteligíveis, uma possibilidade que a palinódia introduziu. Assim também a técnica não deverá ser totalmente