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3. O prólogo: amar discursos, brincar com discursos

3.3. Fedro

É importantíssimo compreender quem é Fedro para ter uma compreensão adequada do diálogo. Primeiro, é ele quem nomeia o diálogo, como se fosse sua cabeça ou o centro a partir do qual todas as suas partes se articulam. Depois, no próprio diálogo Sócrates postula que a qualidade dos discursos depende em alto grau da sua adequação à alma de cada interlocutor, que nesse caso é Fedro (pelo menos no que concerne ao que é dito por Sócrates). Nesse sentido, diversos movimentos do diálogo devem-se muito a peculiaridades de Fedro: é Fedro quem atrai Sócrates para fora da cidade e quem escolhe o lugar para sentar e ler o discurso de Lísias (229b); é ele também quem fomenta espécie de competição retórica entre Sócrates e Lísias e praticamente obriga Sócrates a proferir seu primeiro discurso (234e- 236e); também seria Fedro o responsável pelo estilo poético empregado por Sócrates em seu segundo discurso (257a5); bem como pela reviravolta rumo a um estilo mais sóbrio e dialético, em virtude de deficiências que ele compartilharia com as cigarras (258e-259e).

Pois então quem é Fedro? A abordagem de Sócrates perguntando aonde vai e donde vem Fedro pressupõe alguma familiaridade187. A julgar pelos relatos de Platão, ambos já se encontraram pelo menos duas vezes. Uma teria sido na casa de Cálias, em espécie de congresso entre sábios de toda sorte, como os ilustres Protágoras de Abdera, Pródico de Ceos e Hípias de Élide, que arrastavam atrás de si a juventude mais abastada de Atenas e de outras regiões. Na ocasião, Fedro é descrito sentado, ao lado de Erixímaco, assistindo a uma palestra de Hípias sobre “a natureza e os fenômenos celestes”188.

Hípias como mestre de Fedro?

                                                                                                                                                                                                                                                                 

condução de Fedro por um todo que é uma bela paragem e pelo telos ao qual esse todo está subordinado: dormir.

187

Sobre “Ó phíle Phaîdre”, Ryan comenta que essa forma de tratamento sugere amizade afetuosa. RYAN, 2012, p.79.

188

Prot., 315c-d. A descrição de Sócrates indica que já o conhecia. Fala-se aqui em “sábios” e não em “sofistas” porque o sentido pejorativo de “sofista”, vigente dos textos de Platão até hoje, ainda parecia estar em jogo. Cf. Heródoto, em que chama Sólon de “sophistês” (I, 29); cf. o próprio Protágoras em Prot. 317b, onde o sofista manifesta orgulho, ainda que não sem cautela, de sua profissão; cf. Kerferd, 2003, p.46, onde o autor argumenta que no século V a.C. o termo “sophistes” não tinha praticamente nada de depreciativo.

Dois diálogos platônicos são dedicados a Hípias. Em ambos a característica mais proeminente do protagonista é sua polimatia, isto é, sua inumerável variedade (poly-) de saberes (-mathia)189. De fato, orgulha-se de ter fabricado ele mesmo todas as peças de sua vestimenta, do sapato ao anel, passando pela costura do manto e da túnica190; gaba- se de ser perito em astronomia, harmonia, ritmo, gramática e de argutamente comentar Homero e tantos outros poetas191; jacta-se por deter admirável poder mnemônico, bastando-lhe ouvir uma só vez cinquenta nomes seguidos para retê-los, e poder proferir muitos discursos sobre as muitas coisas belas e virtuosas192, por graça do que sempre é designado embaixador de Élide para resolver questões, sobre quaisquer assuntos, com todas as demais cidades193. A capacidade de responder de improviso a quaisquer perguntas que lhe sejam feitas - eloquência da qual Hípias se pavoneia sem titubear194- sintetiza boa parte desses seus saberes.

“Erudição” (polymathia), sede pelo novo e caráter demasiado “teórico”

Não estariam alguns desses traços do caráter de Hípias presentes em Fedro? Com sua sede por novidades e pelos mais variados discursos, Fedro parece exemplificar de forma paradigmática o que pode resultar do convívio constante com alguém como Hípias: a desenfreada curiosidade mundana parece levar ao total esquecimento do que, pelo menos segundo Sócrates, mais cumpriria conhecer: a si mesmo195.

                                                                                                                         

189 Essa qualidade de Hípias, caricaturizada ad absurdum nos diálogos de Platão, já fora objeto de censura indireta por parte de Protágoras, que proclamava dedicar-se exclusivamente ao ensino da boa deliberação nos assuntos particulares e públicos, à paideia e não às várias tékhnai (especializações), à diferença de outros sofistas. Prot., 312b, 318e.

190

Hípias Menor, p.71. 191

Id., p.58.

192Hípias Maior, 285a-286c. 193Id., 281a.

194Hípias Menor, p.58-59.

195 Lembre-se que os homens que morreram por amor às Musas e então foram transformados em cigarras (259a-e), morreram sem nem perceber, porque, apaixonados pelo canto das Musas, esqueceram de se alimentarem, isto é, de si mesmos; da mesma forma Fedro, além de outros descuidos mais importantes, esqueceu-se p. ex. da prescrição do médico Acúmeno, segundo quem deveria caminhar para relaxar depois de já ter ficado muito tempo sentado pela manhã

Assim, depois da leitura do discurso de Lísias, Fedro exigiria de Sócrates que falasse do mesmo assunto, mas dizendo mais coisas e sem basear-se no texto de Lísias (235d-e), como se falar mais e dizer coisas novas fossem sinônimos de falar bem. É até de se perguntar se, para caracterizar Hípias e esse traço de Fedro, Platão não se inspirou em uma conversa entre Hípias e Sócrates relatada por Xenofonte. Hípias reclama de Sócrates que ele ainda fala as mesmas coisas (auta legeis) que falava há muito tempo; ao que Sócrates responde: sim, e sobre os mesmos assuntos, ao passo que Hípias, por ser um polímata (to polymathes), provavelmente nunca fala as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos: “De fato eu me esforço (peiromai) para sempre dizer algo de novo (kainon ti legein aei)”, respondeu Hípias!196 Em outras palavras, não importa tanto nem a verdade dos discursos197, nem sua precisão pragmática (no caso de conselhos, p.ex.), mas tão-somente sua capacidade de entreter, surpreender, distrair, agradar, enfim, a performance do discurso, a epideiksis, o show. Aliás, nem parece que esse “método” poderia aplicar-se a discursos de caráter mais pragmático, como as acusações e as defesas do Tribunal ou os conselhos da Assembleia, discursos que pretendem, diante de uma circunstância concreta determinada, influenciar a escolha por um caminho de ação em detrimento de outro. Esse “método”, ou melhor, esse gosto adéqua-se mais a discursos, por assim dizer, teóricos, que não visam à ação imediata, como os encômios, elogios, discursos fúnebres, as demonstrações (epideiksis) de eloquência, as divertidas brincadeiras com palavras, como enigmas e paradoxos, e a própria música, cuja qualidade pode estar mais no deleite proporcionado pela sonoridade por si do que na verdade ou numa ação posterior. É importante ter isso em mente para reparar no caráter “teórico” e “musical”, nesse sentido, de Fedro (seu prazer desinteressado com discursos); também seu apreço por textos, sua erudição, deve estar relacionada a isso, pois textos devem, por sua própria natureza - abstrata enquanto não pertencem a uma situação concreta de fala -, transcender a esfera pragmática do cotidiano; discursos escritos sempre tendem a ter algo do gênero epidítico, ostentatório, teórico.

                                                                                                                                                                                                                                                                 

ouvindo discursos (227a-b), e passou mais um longo tempo sentado para alimentar-se de ainda mais discursos.

196Memorabilia, IV, 4, 6-7. 197

Claro que isso pressupõe que há uma realidade determinada e sempre a mesma à qual corresponderia um só discurso, o verdadeiro.

Ainda no Protágoras,ouvindo as palavras de Hípias ao lado de Fedro estava Erixímaco. Quem seja esse e a amizade que tem com o outro se deixa ver no em outro encontro entre Sócrates e Fedro relatado por Platão. Trata-se da comemoração da vitória de Agatão em concurso de tragédias. Em banquete na casa do tragediógrafo vitorioso, alguém sugere que os convivas não sejam forçados a beber, pois que já haviam comemorado bastante na véspera e estavam de ressaca. Erixímaco subscreve a sugestão segundo os critérios de sua arte, a medicina (ek tês iatrikês). Fedro então acrescenta que costuma deixar-se persuadir (eíotha peíthestai) por Erixímaco sobretudo quando esse fala de sua arte (perì iatrikês léges); não pretendendo fazer diferente dessa vez, convida os demais a fazerem o mesmo198. O médico recomenda, assim, que o banquete não seja regado a vinho, mas a discursos (lógon)199. E para efeito de tema a orientar esses discursos, traz à baila uma reclamação constante de Fedro, segundo o qual nem os poetas, nem os prestimosos sábios (toùs khrestoùs sophistás) jamais compuseram (poiéo) hino (hymnos) ou escrito (syngráphein) em elogio (enkómion)ao deus Amor, embora já o tenham feito para muitos outros deuses. Fedro já encontrou livro de sábio (biblío andròs sophoû) que enaltecesse até o sal e coisas que o valham, mas nunca o Amor. Isso o incomodava demasiado (aganaktôn), razão pela qual reclamava ao médico. Erixímaco, por isso, deseja (epithymô) dar sua contribuição e agradar (kharísasthai) a Fedro, mas também julga conveniente que todos os presentes honrem o deus (kosmêsai ton theón) da forma mais bela possível, cada um a sua vez, a começar pelo próprio Fedro, que seria o pai desse discurso (patèr toû lógou)200. A julgar pelo posterior discurso de Erixímaco, Fedro andava em meio a um círculo de polímatas:o médico trata da constituição geral da natureza, indo da saúde do organismo humano à adivinhação e às relações entre homens e deuses, passando por música, ginástica,

                                                                                                                         

198Banquete, 176d-e.

199 Repare-se como a compreensão das palavras como alimento impregna o Fedro.

200Id., 177a-177d. Platão subtilmente plasma uma cena de consulta, diagnóstico e receituário. Fedro é o paciente, cuja doença, segundo o diagnóstico de Erixímaco, é o desejo por ou a falta de discursos sobre o Amor. O phármakon receitado é a série de discursos seguintes. O discurso de Erixímaco mostra como a falta e o excesso são princípios naturais que indicam ao médico a presença de doença ou saúde. O ágan de aganaktéosignifica excesso.

culinária, educação, meteorologia e por uma citação do filósofo Heráclito201.

Ainda nessa mesma ocasião, Fedro impede Sócrates de transformar em diálogo a competição entre longos discursos202. É notável como vários tópicos do Fedro estão presentes no Banquete: o interesse “doentio” de Fedro por discursos, discursos longos e “teóricos”, e também por discursos eróticos, que também tendem a incidir sobre relações de caráter mais privado do que político;note-se também sua predileção por livros e sua erudição - pois deve conhecer bastante para saber que nenhum poeta ou sábio jamais falou o que ele procura -, sua familiaridade com a cultura sofística, poética, retórica e médica, bem como sua inexperiência em dialogar, muito relacionada à predileção por livros e longos discursos. Aliás, um livro que elogie o sal e outras coisas desse gênero não deve ser outra coisa senão umaexibição (epideiksis) de eloquência, uma vez que elogiar convincentemente o que normalmente não se considera digno de elogio exige poder suasório, além de dar aquele prazer da novidade através de um aparente paradoxo. E é mais ou menos um discurso desse tipo que Fedro porta consigo no diálogo que lhe é homônimo: de forma subtil (kompsos), Lísias defende um paradoxo, algo que dá o prazer da novidade, mas por isso mesmo permite ao orador demonstrar sua eloquência, ao transformar o argumento à primeira vista mais fraco no argumento mais forte.Discursos desse tipo podiam ser modelos de discursos dados por um professor de retórica a seus alunos, a fim de que o estudassem, memorizassem e até improvisassem sua versão do mesmo em situação análoga e mantendo a estrutura geral do discurso203. Mas esses discursos modelos também poderiam ser exotéricos, em vez de endereçados a alunos já da “escola”; nesses casos, seu objetivo era dar uma exibição (epideiksis) da sabedoria de um sofista (“professor”), a fim de angariar ou bem alunos para sua “escola”, ou bem clientes que lhe comprem discursos204. Como esses discursos jamais tinham aquela urgência de resolver questões práticas, sempretiveram um quê de brincadeira, de

                                                                                                                         

201Banq., 178b-c para o discurso de Fedro, e 186a-186e para o de Erixímaco. 202

Id., 194d.

203 COLE, 1986, p.10-12. Como parece ser o caso de Fedro, que ficou estudando (epeskopei) o texto, recitando-o (meletoe) e, ao que tudo indica, gostaria de improvisar sua versão do mesmo, já que não memorizou todos os termos (rhemata), apenas a ideia central (dianoia). Fedro, 228b-d.

204

Dizia-se que tais discursos demonstrativos visavam à “obtenção de trabalho”, ergolabia. CAREY, 2007, p.237-240.

algo não totalmente sério e, por isso, amiúde até mal visto205. É no contexto desses discursos que se insere o Fedro: seu protagonista é apaixonado por discursos desse tipo, os três discursos sobre o amor no diálogo não deixam de ser três diferentes exibições (epideiksis) de saber, cada uma delas tentando seduzir oouvinte para uma determinada escola desabedoria206; e o próprio Fedro como um todo não deixa de ser uma versão platônica dessas exibições207.

                                                                                                                         

205 Em uma crítica de Isócrates, esse contraste fica claro, e sua crítica é interessante também porque relaciona diretamente o discurso de exibição à escrita, que dificilmente foi levada a cabo para persuadir em um processo pragmático de decisão: “Estou ciente da imensa diferença entre discursos pronunciados em vista da persuasão e aqueles que são lidos, bem como que todo mundo assume que os primeiros dizem respeito a questões sérias que requerem debate urgente, ao passo que os últimos foram escritos para exibição (epideiksis) e lucro (ergolabia, obtenção de serviço)”. Isócrates, 5.26 apud CAREY, 2007, p.237. Tradução minha do inglês e acréscimo do que está entre parênteses, para destacar o elemento publicitário.

206

Sobre a importância dessas exibições (epideiksis) de saber no Fedro, cf.: 234b1, onde é dito por Lísias que o não amante continuará exibindo (epideiksontai) sua virtude; 236e3, onde Fedro fala em dar exibições (epideiksein) de discursos a Sócrates, como fez com o de Lísias; 258a7, onde ecritores exibem (epideiknymenos) sua sabedoria para admiradores em longos textos; em 269a1, os pretensos sábios iriam exibir (epideiknymenon) seu saber de manual aos homens mais sábios.

207 Isso, ao que parece, faz do Fedro uma das mais perfeitas manifestações de um dos traços mais marcantes da helenidade (e, mais especificamente, de Atenas): o amor quase pueril por discursos, o que, em outras palavras, pode ser chamado de amor às Musas e, claro, ao Belo. Daí fazer todo sentido que os romanos, pragmáticos como eram, enxergassem nos gregos a encarnação do vício da tagarelice inútil, frívola, indolente, diletante, sem seriedade e compromisso pragmático. Cf. Do Orador, I, 20, de Cícero, em que, dentre os gêneros de oratória, não se considera o laudatório/epidítico digno de consideração; depois, em II, 17, em que se condenam as exibições inoportunas de erudição inútil a que sempre se dedicam os gregos; e, ainda, em II, 341, fala- se que, ao contrário dos gregos, os romanos têm-se dedicado pouquíssimo aos louvores. Não se pode esquecer, porém, que se, por um lado, o ideal grego de homem (aner) é o músico - vide p. ex. Aquiles tocando lira -, por outro lado, um músico completo tem de saber dançar conforme seu canto, ou seja, agir conforme seus discursos. Cf. Laques, 188c, para a relação entre andreia e música. A ginástica (“ação”, “prática”), através da dança, é inerente à música. Rep., 412a. Mas, em contrapartida, um agente também tem de “cantar”: não há, parece-me, bondade (do agente) sem beleza (orador), porque a ação implica escolha, e escolha implica adequação entre discursos e atos. Não deve ser por

Assim, respondendo a pergunta inicial de Sócrates, Fedro diz que vem de junto a Lísias, filho de Céfalo. Como é revelado em seguida, Fedro passou a manhã inteira ouvindo um discurso de Lísias; agora ele sai da cidade com uma versão escrita para memorizá-lo. Ele está em êxtase e encantado com o texto, mas principalmente com sua elegância, subtilidade astuciosa (kompsós) (227c6-7) e com suas expressões (onómasin) (234c-d), menos com a verdade do conteúdo. Depois Fedro exigirá de Sócrates, se quiser competir com Lísias, que fale mais do que ele, que aborde coisas novas do mesmo tema, mas não que fale de forma mais verdadeira, como se inovar e falar mais fosse equivalente a falar melhor (234e-236c). Tendo Sócrates terminado seu primeiro discurso, Fedro diz que esperava que ele falasse mais e fizesse o elogio do não amante e não só a crítica ao amante (242d-c). Quando Sócrates ameaça ir embora, Fedro pede-lhe que fique e continue a falar com ele (242a). Sócrates comenta que Fedro é divino, maravilhoso e supera a quase todos no que diz respeito a inspirar discursos (242b). E quando anuncia que proferirá outro discurso, Fedro responde que não poderia receber notícia mais agradável (hedíos) (243b-c) e que, depois de ouvir esse novo discurso, irá obrigar Lísias a escrever outro discurso sobre o mesmo tema; Sócrates emenda que acredita realmente nisso, sendo Fedro quem ele é (243e). E depois de ouvir o discurso, todo ele prenhe de teses assaz extravagantes, Fedro apenas cumprimenta seu estilo (kallío) e prevê que Lísias terá dificuldades se quiser concorrer com ele (257c). Ele não levanta uma questão sequer sobre o discurso208, conquanto admirável (thaumásas) ele seja209. Sua verdade ou falsidade e seu conteúdo são-lhe totalmente indiferentes. Bem consoante a isso,

                                                                                                                                                                                                                                                                 

acaso que, no livro IX da Ilíada, quiçá o coração do poema, o tema da adequação entre palavras e ações parece ser o principal e é ali que vemos Aquiles como músico.

208 Griswold chama atenção para isso. GRISWOLD, 1996, p.21.

209 O que pode indicar que o thauma que acomete Fedro seja diferente do thauma filosófico. O primeiro teria um caráter bem mais estético e próprio do entretenimento. Por outro lado, o discurso acima parece simplificar demais as coisas, por falar de fora da experiência momentânea por que passou Fedro ao escutar a palinódia; parece fácil para quem lê o Fedro academicamente e como parte de uma pesquisa para descobrir a verdade sobre certas questões exigir que Fedro tenha uma atitude questionadora logo depois de escutar um dos discursos mais belos de que se tem notícia. Como é de se esperar de alguém que tenha acabado de presenciar tamanha beleza, Fedro fica atônito; não há o que sair falando imediatamente, embora depois isso costume ocorrer, mas há uma admiração quase reverencial, um não conseguir tirar os olhos.

pouco se lhe dá se cada novo discurso vai desmentindo o anterior, ao qual tanto se aferrava até então; abre mão de suas crenças com tanta frivolidade quanto adere às novas. Importa-lhe que cada discurso seja novo, grande, adornado e que gere ainda outros discursos. Fedro dedica- se aos discursos como a um entretenimento, ainda que para ele tal entretenimento seja o que dá sentido à vida, como fica claro quando lhe é perguntado se deveriam examinar no que consiste escrever bem ou mal:

Perguntas se há necessidade? E para que vivemos, ouso a dizer, se não for para os prazeres (hedonôn) dessa natureza? Não há de ser por causa dos que são necessariamente precedidos de algum sofrimento, sem o qual não haveria prazer, como se dá com os prazeres do corpo e que, por isso mesmo, são denominados servis210.

Aí transparece em que sentido se pode dizer que Fedro encara os discursos de uma perspectiva estética211. Ele quer escutar pelo simples prazer de escutar, não por uma necessidade e a despeito do proveito que possa tirar dessa atividade212, a despeito até mesmo da descoberta da verdade. Nesse sentido, trata-se de um prazer livre, que não se dá por

                                                                                                                         

210Fedro 258e. 211

Quem sugere essa caracterização da philologia de Fedro é novamente Griswold, segundo o qual Fedro não seria um compositor de discursos como Cálicles e Mênon. GRISWOLD, 1996, p.22.Mas também não seria de todo descabido falar em teórica, desde que por “teórico” entenda-se a gana de ver por ver própria do espectador (theorós), num sentido banal e nada solene, como de quem vê TV para relaxar e esquecer os “problemas”. A noção de theoría é uma das importantes noções que estão em jogo no diálogo; pode-se até considerar que um dos seus escopos é demonstrar que a filosofia tal como Sócrates a compreende busca levar a cabo a mais elevada forma de theoría, praticamente uma prerrogativa exclusiva dos deuses. Isso será explorado oportunamente. 212 Nisso ele diferencia-se consideravelmente de outros interlocutores de Sócrates, como Alcibíades e Cálicles, por exemplo, que apreciam os discursos à luz de suas potencialidades mais explicitamente políticas e pragmáticas, por assim dizer. Fedro, por sua vez, está mais voltado para os assuntos privados e é um esteta e diletante, o que sua preocupação constante pelo amor já deixa entrever. Ainda que isso não seja fácil de determinar, em última análise isso parece ser uma vantagem de Fedro em relação àqueles, no que concerne a uma iniciação à filosofia.

nada além de si mesmo213. Fedro aparentemente desejaria discursos ainda que fosse o mais bem informado, rico, afamado ou sábio dos homens, porque ele os aprecia pelo prazer da pura percepção (aísthesis). Daí se seguem algumas características tanto de Fedro quanto dos discursos pelos quais terá apreço.