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Conclusão da leitura do prólogo: da “teoria” como diversão frívola

3. O prólogo: amar discursos, brincar com discursos

3.4. Conclusão da leitura do prólogo: da “teoria” como diversão frívola

Dramaticamente, o prólogo antecipa uma série de questões fundamentais no Fedro. A retórica, no fato de Fedro estar convencido da qualidade do texto de Lísias, ter saído da cidade para estudá-lo e pretender proferi-lo a Sócrates. O amor, em Oritia ter sido raptada por seu amante, no amor de Fedro e Sócrates pelos discursos, mas principalmentena afeição de Sócrates por Fedro, necessária para, em vez de simplesmente persuadi-lo fazendo-o repetir suas palavras, suscitar- lhe autoconhecimento – e, nesse caso, a afeição cuidadosa e atenta mostra-semuito mais importante que qualquer técnica ou esquema conceitual. Assim também se antecipa a questão do autoconhecimento; além do espelhamento de Fedro por parte de Sócrates, Sócrates também contrapõe, a propósito da interpretação do mito de Bóreas,o interesse um tanto frívolo pelos discursos a sua busca por autoconhecimento.

Outra antecipação, porém, parece aglutinar em si todas essas questões. OFedro é um dos raríssimos diálogos de Platão que se passam fora dos muros da cidade de Atenas214. Como notaram alguns estudiosos, essa saída da cidade porque Fedro possa dar um “volta” (peripatos) parece estar em paralelo com aquela saída das almas do

                                                                                                                         

mundo inferior para dar uma “volta” (periphora) no “lugar” supracelestial215. Essa volta das almas, pelos menos das divinas, é chamada de theoria no grande discurso de Sócrates.Essa é a razão pela qual, quando se falava no caráter teórico de Fedro, apontava-se, com as aspas, para um sentido não literal do termo. Pois a verdadeira theoria, embora também possa ser uma forma de brincadeira, como aquela celebração lúdica (prospaidzo), e tambémseja um contato com a alteridade, o divino, não tem nada de frívolo e passageiro. Trata-se de uma experiência profunda, transformadora, e que se no momento causa um êxtase do qual é cúmplice algum autoesquecimento, em última instância intensifica o autoconhecimento.

Atheoriaera uma instituição religiosa e política bastante conhecida na Grécia de Sócrates. Era uma peregrinação ao estrangeiro e, no estrangeiro, a um lugar algo divino, como no Fedro Sócrates e Fedro saíram da cidade e agora estão num lugar cheio de altares e imagens sagradas(mais de uma vez Sócrates falará na sacralidade do lugar).O principal objetivo dessa peregrinação era ver (horao)um espetáculo (thea), o mais das vezes um espetáculo divino (thea) – como jogos e festas sagradas, oráculos, rituais e imagens religiosas –e de um modo ou perspectiva divina216. Nessas ocasiões contemplava-se alguma exibição (epideiksis), às vezes até de discursos em competição, como Fedro contemplará a competição entre as exibições de Lísias e Sócrates. Mas a theoria tradicional poderia transformar radicalmente o espectador. Com efeito, essa experiência costumava elevar o theoros a uma perspectiva mais ampla que aquela da comunidade política da qual saia; daí ser-lhe amiúde simultânea a formação de nova comunidade, mais ampla, compartilhada por aqueles que participavam da experiência217. Essa formação de comunidades pela teoria compartilhada está presente no Fedro na importância da formação da amizade, philia, tanto na relação descrita pela palinódia, em que quem segue o mesmo deus e vê o real da mesma perspectiva vive em amizade e acordo (homonoetikon, 256b1), quanto na própria relação entre Sócrates e Fedro, já que o encontro entre eles termina com Fedro compartilhando a oração de Sócrates, pois “são comuns as coisas dos amigos”, e voltando para a cidade com ele (279c)218. Na theoria tradicional, costumava ser o caso que depois da

                                                                                                                         

215 NIGHTINGALE, 2009, p.157; GRISWOLD, 1996, p.33. 216NIGHTINGALE, 2009, p.41-45.

217Ibidem, p.43. 218

Segundo Huizinga, os jogos e brincadeira também têm esse condão especial de formar comunidades entre seus participantes. HUIZINGA, 1993.

contemplação o peregrino devia voltar para sua cidade e relatar-lhe o que viu219. Esse momento era parte constitutiva da theoria e não mero adendo, mas costumava ser crítico220: ocorria com frequência que, ampliando seu horizonte pelo contato com a alteridade (outras culturas, o divino, o espetacular), o peregrino modificasse radicalmente seu modo de ver sua própria comunidade e, por conseguinte, seu próprio modo de ser221. Ou seja, ao tomar alguma distância dos seus costumes, pela comparação com outros, por exemplo, adquiria-se mais senso crítico e autoconhecimento. A aderência ao sistema de significados da comunidade de quem retornava jamais seria a mesma, tão imediata e espontânea como antes; os preconceitos doravante poderiam aparecer como tais, as evidências sempre pressupostas poderiam perder seu caráter de obviedade, os gostos peculiares, mas compartilhados por toda a comunidade, poderiam aparecer como idiossincrasias tão questionáveis quanto a dos outros e não como natural, superior ou algo que o valha. O que era mero hábito e inércia, pode doravante tornar-se uma escolha, porque veio à consciência. Mas assim essa escolha pressupõe uma crise, um desconforto, que suscita um distanciamento, com o que antes era o mais familiar. Podia ocorrer então que, vivendo em sua própria terra como um estrangeiro, o viajante tivesse problemas sérios com seus compatriotas222.Não deixa de ser isso que ocorreu com Sócrates,o mais estranho dos homens (atopotatos), segundo seus concidadãos, pelos quais foi condenado à morte, depois de insistir em falar na sua defesa como sempre falou, a saber, como um estrangeiro (Apol., 17d).

Agora pode fazer mais sentido a descrição de Sócrates do local, com sua beleza surpreendente, edas ações de Fedro, ambas tão alheias ao imediato da situação. Mas assim também faz mais sentido a reação de Fedro: “E tu, varão admirável (thaumásie), és a criatura mais fora de

                                                                                                                         

219 Porque, na maioria dos casos, essas embaixadas tinham um caráter cívico: eram formadas e financiadas pelo Estado e representavam-no no evento a que se encaminhavam; depois, deveriam voltar e relatar o que viram para os concidadãos. O famoso mito da caverna, em República VII, é uma clara apropriação filosófica dessa instituição; o que a palinódia retrata também o é, ainda que seu caráter cívico seja menos óbvio; em todo caso, havia teorias de caráter privado, levadas a cabo por indivíduos com a finalidade de conhecer outros povos. NIGHTINGALE, 2009.

220Ibidem, p.48. 221

Ibidem, p.35 e p.66. 222

Como ocorreu, p. ex., com Anárcarsis, conforme relato de Heródoto, IV, 76 apud NIGHTINGALE, 2009, p.65.

lugar e estranha (atopótatós) que já vi. De fato, pelo que dizes, mais pareces estrangeiro que se deixa conduzir, do que natural desse lugar” (230c5-7). Sócrates está prestes a conduzir Fedro, por meio dos discursos, da conversa e do amor, a uma peregrinação em direção a algo diferente; no entanto, isso não será apenas um entretenimento relaxante, como as “teorias” de Fedro; deve ser uma experiência transformadora, marcante e que lhe proporcione autoconhecimento, como uma theoria, depois da qual ele também terá de voltar à cidade a fim de anunciar-lhe o que viu (278b-c).