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Fedro prepara um teatro para brincar de sedutor não amante

3. O prólogo: amar discursos, brincar com discursos

3.2. Fedro prepara um teatro para brincar de sedutor não amante

Pharmakeia, quando de seu rapto por Bóreas às margens do Ilisso. Mostrou-se que brincadeiras, tanto mais com discursos, jamais são algo de inofensivo, nunca meras brincadeiras, senão que algo bastante sério.

No entanto, essa referência ao rapto não é a única feita ao local; ao contrário, algo que chama a atenção do leitor do Fedro é justamente a importância que o lugar da conversa, tantas vezes mencionado, parece ter. Sobre isso, convém dizer o seguinte:o diálogo é todo ele vazado em discurso direto, sem narrador e sem outros planos discursivos ou dramáticos. Isso é importante porque essa característica implicaria, em princípio, uma menor possibilidade de conter descrições do cenário em que se dá e das personagens que o compõem, uma vez que toda fala que há nele é proferida por seus integrantes à medida que interagem um com o outro e com o contexto da ação em um mesmo e único plano dramático. A propósito disso, Hackforth, que traduziu e comentou o diálogo, disse que suas páginas iniciais mostram o poder de Platão de apresentar vividamente sua cena, como faz em muitos outros diálogos. E uma vez que o discurso não seria narrado, mas direto, Fedro não poderia ser completa e formalmente caracterizado; no entanto, isso não seria tão necessário, dado que o leitor de Platão deveria conhecê-lo suficientemente do Banquete164. Nessa breve análise, porém, Hackforth

                                                                                                                         

163 Logo no começo do diálogo, em outra encenação lúdica – isto é, ilusória – de seu amor aos discursos, Sócrates disse que “assim como fazem para conduzir animais quando estão com fome, agitando na frente deles algum ramo ou fruta”, Fedro usa o texto de Lísias para atrair Sócrates: só mostrando-lhe as folhas desse discurso, ele poderá levar Sócrates por toda a Ática ou por onde bem entender. Fedro 230e. Isso só reforça a hipótese de que Sócrates se faz de asno para “vender”, na verdade, um cavalo a Fedro. Impossível não lembrar também do mais famoso logro grego, em que Odisseu, o mestre arquetípico da politropia e da retórica, valeu-se de um cavalo ilusório para adentrar a fortaleza de Troia e salvar Helena, aquela mesma para quem Estesícoro fez sua palinódia. Fedro 243b. Fazendo-se de asno, Sócrates pode ultrapassar os muros da cidadela interior de Fedro.

passa ao largo de elementos importantíssimos165. Ele se não admira com o fato de o diálogo, não obstante ser vazado em discurso direto, ter – segundo seus próprios termos - uma apresentação vívida da cena logo no seu início. Deveria perguntar-se: por que, uma vez que o diálogo é escrito todo em discurso direto, Fedro não poderia ser descrito, já que o cenário é tão bem descrito? Nem o cenário poderia ser descrito, se assim fosse;mas ele o é. O que isso significa? Nos candidatos a concorrerem com o Fedro nesse aspecto, a referência ao cenário é sempre feita por um narrador não envolvido imediatamente nos eventos em questão166. Isso significa que no Fedro as referências ao contexto decorrem não de uma narração distante e impessoal, mas de um efeito vivo e presente do lugar sobre o agente e o falante, o que deve evidenciar a influência que o lugar exerce sobre a ação e a conversa. Atentar para isso é ainda mais importante quando se nota que as referências ao local de tal maneira impregnam o Fedro, que - como salienta Ferrari – “a topografia torna-se o tópico da conversa de um modo altamente obstrutivo”167.

Essa importância do contexto parece estar vinculada à questão da retórica, da medicina e das artes em geral. Ao final do diálogo, a medicina será tomada como modelo pela retórica filosoficamente orientada. Uma das razões para isso é o fato de o médico que realmente detém a arte médica ser capaz não somente de saber, em abstrato, que certos remédios geram certos efeitos, mas principalmente de reconhecer, no caso concreto, qual é a doença em questão, qual o remédio adequado, em que dose, como e quando deve ser aplicado à luz de tais e tais circunstâncias (268d). Da mesma forma o orador, se quiser falar com arte, não se poderá contentar com ler alguns manuais segundo os quais certas palavras geram certos efeitos em determinado tipo de pessoa; deverá ser capaz de reconhecer em cada interlocutor diante de si uma alma de certo tipo, suscetível a determinados discursos, bem como o estilo apropriado e o momento oportuno (kairón) para falar, segundo a circunstância do encontro (272a). Em suma, em ambas as artes há

                                                                                                                         

165 O comentário que se segue sobre a importância do cenário e da noção de pano de fundo no Fedro é em boa medida fruto das indicações de Ferrari, presentes principalmente no primeiro capítulo do seu comentário ao Fedro. FERRARI, 2002, p.1-37.

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Há narradores que estiveram nos eventos que relatam, mas ainda assim fazem o relato em momento posterior e, pois, de perspectiva distanciada, como Sócrates no Protágoras, por exemplo.

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FERRARI, 2002, p.3. Tradução minha: “Topographybecomes the topic of conversation in a highly obtrusive manner”.

elementos fundamentais que não se deixam apreender completamente por esquemas conceituaise tendem, por isso, a permanecer retraídos em horizonte pragmático de inteligibilidade; em outras palavras, saber, nesses casos, orientar-se pelo contexto, na situação concreta de ação, é mais determinante que conhecer esquemasconceituais ou regras abstratas.

O problema, no entanto, é quando essas atividades se limitam à prática um tanto irrefletida;nesses casos pode haver uma incapacidade do agente de fundamentar sua própria ação, de dar um logos – uma explicação - sobre o que sabe e como se dá seu procedimento; isso equivale a um déficit considerável de autoconhecimento: o sujeito até pode saber em termos práticos, mas não sabe que sabe, nem o que sabe, nem como sabe.Desta feita, como essas ações – retórica, medicina e filosofia, p. ex. – são interações, o que confirma o saber e a capacidade do sujeito na maioria desses casos é o reconhecimento público que obtém para si, seja na forma de pagamento, seja na forma de estima pública, reputação, doksa. Em outras palavras, sua autorrepresentação e sua pretensão de saber são mediadas pelo espaço público e pela aparência de si (doksa) que esse espaço lhe reflete. Mas e se essa aparência for enganosa, como é provável que seja o caso, em vista da ambiguidade e da superficialidade do espaço público? E se as pessoas que lhe conferem essa reputação de saber e bondade forem viciosos ignorantes? É preciso ter bases mais seguras que isso, se alguém quiser conhecer a si mesmo e ter uma medida das próprias capacidades e do próprio saber.

À luz disso, note-se como antecede as referências ao contexto do diálogo a menção àqueles que estavam com Fedro, um especialista em discursos e um médico168. E é notável como Fedro orienta-se no contexto reconhecendo, pragmaticamente,os elementos que deverão compor um pano de fundo adequado à sua leitura do discurso de Lísias. Sócrates, percebe ele, seria ouvinte adequado, pois o tema adéqua-se a ele (peosékousa) mais que a ninguém (227c). Em seguida, descrevendo a situação de Fedro169, Sócrates enfatiza que ele teria exultado ao ver e reconhecer (idònmén, idón) um tipo doentiamente (nosoûnti) amante de discursos (philólogos) e um companheiro para seus delírios coribânticos

                                                                                                                         

168 Lembre-se como no Banquete Fedro já manifestava especial familiaridade com essas artes.

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O donde vem e aonde vai. Essa série de “brincadeiras” representativas de Sócrates será explorada a seguir.

(228b)170, o que Fedro não nega. Fedro também reconhece ter ficado exercitando, ou melhor, ensaiando (meletóe, engumnasómenos) o discurso de Lísias, seu script, por assim dizer (228d-e). A meléte - exercício, ensaio ou meditação - depois será considerada um dos três elementos constitutivos do orador perfeito, junto com a natureza (physis) e o conhecimento (epistéme) (269d-e). Fedro lamenta que Sócrates, tendo descoberto a presença do escrito, force-o a ler, pois pretendia aproveitar a ocasião exercitando-se nele e improvisando sua versão, já que memorizara apenas a ideia (diánoian) e não exatamente todos os termos (remata) (228d). Mas mesmo a leitura de texto tão sofisticado merece palco condigno, com o que Fedro pede a Sócrates que escolha um lugar em que possam sentar para ler. Sócrates sugere, então, que caminhem na direção do rio Ilisso e sentem-se em local aprazível.

A seguir, nota-se ainda mais a capacidade de Fedro orientar-se no contexto de ação e da leitura porvir. A caminho, elepercebe quão oportuno (kairón) foi ter vindo descalço, como Sócrates sempre anda, porque assim poderão caminhar com os pés n’água, o que não seria desagradável (aedés), sobretudo nessahora do dia e nessaépoca do ano (229a). Depois Sócrates pede a Fedro que os conduza (próage) e veja (skópei) onde possam sentar. Então Fedro avista um plátano sob o qual há sombra conveniente, brisa na medida exata (pneûma métrion) e relva adequada para deitar, se quiserem (229b). Sócrates novamente pede que Fedro os conduza (proágois án)171. De passagem, Fedro

                                                                                                                         

170 Ferrari julga que essa interpretação explicaria aquilo que para muitos eruditos seria um problema dos manuscritos: a repetição de idón. Sócrates estaria enfatizando, assim, a dupla visão de Fedro: não apenas viu Sócrates, mas também o viu como ouvinte ideal. FERRARI, 2002, p.5 e p.235. Compare-se 228b8 com 272a, mas também com a descrição da visão do amado pelo amante, presente na palinódia, e com a abordagem de Sócrates a Fedro no início do diálogo.

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Repare-se no uso frequente de proágo, conduzir, e na alternância entre o guia e o guiado, pois depois a retórica é definida como uma condução da alma pelas palavras. AMIS, 1986. Em 227c era Fedro quem pedia a Sócrates para conduzir; Sócrates, porém, pedia que Fedro falasse, como quem cede a condução a quem tem a palavra. Depois o tema vem à tona explicitamente. Essa deliberada passividade de Sócrates parecer fazer parte de sua estratégia pedagógica, e de alguma forma corresponde, no campo da ação, ao que a ironia é no âmbito da conversa: ele deixa o outro agir sobre ele; esse, assim, sente-se no comando e mais confortável para agir espontaneamente, enquanto Sócrates pode observá- lo, aprender escutando-o e, então, testá-lo de maneira um tanto surpreendente.

comenta que teria sido por aquela parte do rio que, segundo dizem, o deus Bóreas teria raptado a princesa Oritia, e acresce que a água é transparente, pura e agradável, o que a torna adequada (epitédeia) para meninas brincarem nela (229b-c).

Fedro repara em vários pormenores que comporão o contexto de sua leitura. O comentário de que algo não será desagradável sugere que o mais importante é antes não chamar a atenção e não tanto exercer um papel positivo. Os pés descalços n’água fresca, a sombra e a brisa são convenientes não por serem em si mesmos tão belos ou agradáveis que chamarão a atenção para si durante o discurso, mas, ao contrário, porque compensam os raios do sol e o forte calor dessa estação e desse horário do dia, impedindo, assim, que essa claridade e esse calor causem incômodo e chamem a atenção para si. A brisa está na medida certa (métrion), isto é, não é nem muito fraca nem muito forte, mas isso levando em conta o calor do momento e a intenção de ler o texto. Fosse mais forte, é provável que chamasse a atenção e sobrepujasse a significatividade do texto, em vez de simplesmente anular o calor.

Note-se, porém, como Fedro só considera explicitamente cada um desses elementos antes de chegar até o plátano e começar a proferir o discurso de Lísias; já assentados no lugar e durante o discurso, ele cala a esse respeito. Como contexto e pano de fundo, tais elementos devem ser esquecidos em favor do próprio discurso, embora sejam fundamentais para que as palavras possam chamar a atenção para si, fazer diferença e algum sentido.E mesmo quando ainda tem certa distância do cenário adequado que está montando, ele em nenhum momento repara no todo que está servindo de horizonte para sua percepção de cada uma dessas partes do contexto. Ele a cada vez compreende uma parte – água adequada, sombra conveniente, brisa na medida... – como quem está juntando peças para produzir uma obra de forma tão empírica que nem sabe o que está produzindo, embora essa obra, inconscientemente, oriente toda a produção.

É Sócrates, filósofo e o homem “mais fora de lugar” (atopótatos, absurdo), quem inoportunamente traz esses elementos do pano de fundo pragmático ao primeiro plano,e isso representando-os a partir de uma unidade e de um telos (230b):

                                                                                                                                                                                                                                                                 

Sócrates, assim, é guiado nessa relação como quem, numa conversa, apenas ouve respostas, embora todas as respostas já tivessem sido determinadas pelas perguntas de quem agora parece conduzido. Sócrates age sem agir.

S. – Por Hera! Que bela (kalé) paragem (katagogé)! Este plátono, realmente, é tão (mál’) copado quanto alto, e aquele pé de agnocasto além da sombra agradabilíssima (pánkalon) que sua altura proporciona, embalsama (euodéstaton) toda a redondeza (tópon), por estar em plena (akmèn) florescência. E sob o plátano, também, que fonte encantadora (khariestáte)! A água é bastante (mála) fria, o que os pés nos confirmam (tekmérasthai). Deve ser consagrada às ninfas e a Aquelôo, a julgarmos por estas imagens e figurinhas. Observa também como aqui (topou) a brisa é delicada e aprazível (sphódra hedú); sua melodia clara e estival acompanha o coro (khorô) das cigarras. Porém, o mais admirável de tudo (kompsótaton) é a relva, que se eleva gradualmente para formar uma camada espessa. Se nos deitarmos nesse ponto, disporemos de travesseiro em tudo cômodo (pankálos). Revelaste-te excelente guia (arista soi eksenágetai), amigo Fedro.

Sócrates começa essa fala com uma exclamação (“Por Hera!”), como quem manifesta surpresa e admiração; o seguinte uso abusivo de superlativos deixa-o ainda mais claro. Depois, menciona a beleza da paragem (katagoge), ou seja, do lugar para deitar (kata-), para ir (conduzir, -agoge) para baixo (kata-), descansar, dormir. Tudo o mais se segue desse todo (paragem) de maneira orgânica, como se a paragem fosse um dzoon, com partes bem conectadas entre si e cada uma com o todo - ela é bela (kale). Em sua descrição, Sócrates vai do céu à terra, passando pelo ar e pela água; também contempla todos os sentidos, à exceção do paladar – faltaria alimento à alma, como faltou aos homens- cigarra? -: olfato, audição (coro das cigarras), visão e tato (pés n’água), tudo no superlativo. O mais subtil de tudo, porém, foi o arranjo de uma relva que é tal como um belo travesseiro: Fedro revelou-se um perfeito guia de estrangeiros (eksenagetai)! Como espécie de sexto sentido a orientar e reunir de forma coerente os demais de Fedro, havia um propósito e um todo guiando implicitamente esse arranjo: fazer Sócrates relaxar, sentir-se em casa, dormir. É essa capacidade de Fedro que, no

fundo, está sendo “elogiada” por Sócrates172; afinal, a relva tem algo de refinado na sua possibilidade de ensejar o relaxamento, ou seja, enquanto algo sagazmente escolhido por Fedro. Tal qualidade, kómpsos, que pouco parece aplicar-se a algo além da ação humana, fora já atribuída por Fedro ao discurso de Lísias173. E lembre-se também que Sócrates não aprende nada nem com o campo nem com as árvores, mas apenas com os homens da cidade,174e nesse caso está “aprendendo”/compreendendo a habilidade de Fedro em “conduzir estrangeiros”.

Enfatizando essa condução de Fedro, é preciso ler a passagem à luz da tensão que atravessa todo o diálogo entre uma retórica e um modo de escutar discursos que, aos olhos de Sócrates, tenderia a anestesiar e adormecer os ouvintes (vide o problema das cigarras), e outra, filosoficamente orientada, que deveria gerar o efeito contrário, a saber, despertar o ouvinte, fazê-lo estar consciente (do real e de si mesmo)175. A retórica socrática pretenderá ser a verdadeira psicagogia, isto é, o despertar as almas do mundo dos mortos ou das sombras inconscientes para o mundo dos vivos e em estado de vigília176.

E de fato Sócrates já está fazendo isso com Fedro: é ele quem dá o logos, no sentido de explicação, fundamento, telos, definição, mas também no sentido de relação, proporção, arranjo, composição da atividade de Fedro. Como Fedro está agindo de maneira demasiado empírica e pragmática, não tem distância suficiente para reparar no todo, nem na finalidade que lhe permite compô-lo, nem, portanto, para se surpreender quer com sua capacidade, quer com o lugar. Fedro é inocente, tanto no sentido de ser ingênuo, de deixar-se influenciar

                                                                                                                         

172

Como coloca Ferrari, “the ultimate target of praise in his description of the arbour is less the physical features of the place than Phaedrus’ achievement as tourist-guide in selecting them”. FERRARI, 2002, p.14.

173 227c: “Mas propriamente isso que foi subtilmente feito (kekómpseutai)”; em seguida Sócrates parece tomar asteios, urbano, como sinônimo dessa subtilidade.

174

É o que responde a Fedro logo em seguida (230d-c).

175 Cf. importância do estado de vigília em Apologia, Mênon e República. 176

O sentido mais usual de “psicagogia” seria, de fato, a evocação das almas dos mortos. AMIS, 1986, onde também se sugere que o Ilusso representaria o rio que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos. Em Cármides, 156d5, Sócrates diz que aprendeu certo encantamento (epodê) – belas palavras que suscitam a temperança – por um dos médicos trácios de Zálmoxis, o qual diziam ser capaz de ressuscitar os mortos (apathanatídzein). Já no Banquete, Hermes, o deus “psicopompo”, é considerado um dos patronos da filosofia.

facilmente, quanto no sentido de não ter culpa, porque não sabe o que está fazendo. Se, por um lado, depois ele demonstra familiaridade com os manuais de retórica, sua definição de retórica, por outro lado, nemabarcaria os discursos aos quais se dedica, porque sua definição abrange apenas discursos públicos e pragmáticos, de deliberação (Assembleia) e de defesa ou condenação (Tribunal), mas não aquelas das relações privadas de pedagogia, sedução e pederastia, nem, relacionados a esses, os demonstrativos (epiditicos): performáticos, artísticos, musicais, “teóricos”, dos quais, no seu prazer livre, ele tanto gosta.

Sócrates, porém, traz à tona o que implicitamente orienta a compreensão de Fedro, como ele junta e divide os elementos do contexto do seu discurso. Esse parece ser um caso de um fundo de autoesquecimento sobre o qual se assenta certa capacidade de organizar as ações e o entorno de alguém pela reunião e divisão das coisas. Nesse caso, porém, um amigo explicita esse fundamento, que é um telos, e assim desperta o amigo. Sócrates chama a atenção de Fedro para algo que ele faz provavelmente sem notar, porque faz por simples hábito e rotina, porque tem gastado o tempo (diatribe) com gente que costuma agir assim.

Claro que, por outro lado, é assaz ambíguo o comportamento de Sócrates como espectador do espetáculo que Fedro está preparando. Por um lado, ele dá a entender que entra de corpo e alma na brincadeira de Fedro e que não poderia haver ouvinte mais adequado que ele, o que deveria estimular esse a permanecer em êxtase com o texto e em sua atmosfera, encarando todo o ambiente como parte da sua reprodução; assim Sócrates estaria fazendo o papel de um amado ideal, conforme a descrição da palinódia, com o caráter perfeitamente adequado ao do amante (Fedro, louco de desejo, de Eros, de falar), ou de um amante bajulador, que seduz o amado fazendo o amado apaixonar-se pela imagem de si mesmo (do amado) que o amante lhe dá, muitas vezes enganosa, bajuladora. Por outro lado, Sócrates é muito explícito e não simplesmente dá a entender, como alguém que, involuntária e inadvertidamente, desse sinais de estar ficando sob o efeito de uma sedução. O tom com que Sócrates manifesta essa docilidade é exagerado, afetado e acaba tendo muito de jocoso e irônico, o que deveria levar Fedro a pensar acerca da espontaneidade da plateia e, portanto, no efeito de sua própria atividade. Atesta perfeitamente essa ambiguidade do comportamento de Sócrates sua reação verbalmente explícita à leitura de Fedro (235d-e):

S. – A rigor, é de tal maneira divino (daimoníos), companheiro, que me pôs em êxtase e levou-me daqui (ekplagênai). E por tua causa (dià sé) sofri essa experiência (épathon), Fedro, pregando meu olhar sobre ti, porque a mim pareceste estar radiante e iluminado (gánusthai) pelo discurso (hupò toû lógou) durante sua leitura. Considerando, então, que tu bem mais do que eu sabes dessas coisas de que falavas, pus-me a seguir-te e num furor báquico dancei (sunebákkheusa) contigo, divina cabeça.

F. – Pois sim! Desse jeito pareces estar brincando (paídzein), não estás?

Em seguida, Fedro pede a Sócrates que fale com sinceridade, pela amizade dos dois, como quem exige a espontaneidade própria das relações afetivas. É um dos raríssimos momentos em que Fedro chama Sócrates de amigo. Ele claramente fica incomodado com a reação de Sócrates. O êxtase era realmente pretendido, já que todo discurso significativo deve extasiar em algum grau o ouvinte – ou seja, tem um elemento lúdico, que ilude -, e o entusiasmo de Fedro com a leitura - sua performance - deveria de fato contribuir para suscitar esse êxtase. Em outras palavras, a gesticulação de Fedro, sua expressão facial e seu olhar, o tom de sua voz e coisas que o valham deveriam contribuir para transportar Sócrates para fora (ek-) de si, isto é, da circunstância em que