• Nenhum resultado encontrado

O canto das Cigarras e a necessidade de falar (258e-259e)

2. A segunda parte do diálogo e problemas da referida leitura

2.2. O canto das Cigarras e a necessidade de falar (258e-259e)

escrever ou falar de forma má (kakos) e não bela (kalos): qual (tís) seria o modo (ho trópos) de escrever belamente (kalos)? Deveriam examinar algum outro autor a esse respeito? Fedro diz que não vive para outra coisa que não prazeres desse tipo, não antecedidos por dores como os corpóreos e de escravos. Sócrates responde que, de fato, têm ócio (skhole). Parece-lhe também que nesse forte calor as cigarras, cantando (adontes) e dialogando umas com as outras (allelois dialegomenoi), contemplam-nos (kathoran) de cima das suas cabeças. Se os vissem, como faz a maioria, parar de dialogar ao meio-dia por preguiça mental e cochilar ao embalo do seu canto, com justiça escarneceriam deles: seriam escravos, feito carneiros dormindo a sesta na paragem das

cigarras. Mas se os vissem dialogando e navegando ao largo sem ficarem encantados com o canto de Sereias, receberiam o prêmio que elas concedem aos homens da parte dos deuses. Fedro jamais escutou isso. Não convém a um amante das Musas (philomouson) jamais ter escutado isso. Diz-se que antes de nascerem as Musas as cigarras eram homens. Nascidas as Musas e surgido o canto, porém, esses homens ficaram tão encantados pelo prazer do canto, que cantandodescuidaram (emelesan) de comer e de beber, vindo a morrer sem perceber (elathon). Desses nasceu (phyetai) a raça (genos) das cigarras: receberam das Musas o prêmio de poderem cantar sem se alimentar do nascimento à morte, para depois anunciarem às Musas quem aqui embaixo honra cada uma delas: Terpsícore, Érato e as demais, entre as quais a mais velha, Calíope, e a que lhe segue, Urânia, para as quais anunciam quem passa a vida na filosofia e as honram com sua música. Essas têm a mais bela voz (kallisten phonen) e ocupam-se de discursos divinos e humanos. Em razão disso, diz Sócrates, é preciso falar (lekteon) em vez de dormir ao meio-dia.

Interpretação: Como tudo em Platão, a passagem acima tem um sentido à primeira vista, mas também outros. Há quem julgue, por exemplo, que a mensagem do relato exorta o ouvinte a emular as cigarras33; há, em contrapartida, quem as veja como antiexemplos34; e há ainda quem pense que os homens do estágio anterior às cigarras é que são os antiexemplos, cuja situação seria análoga à de Sócrates e Fedro, mas que esses dois deveriam imitar as cigarras pelo menos no que tange a dialogar35. De fato, Sócrates não deixa explícito nem que as cigarras devem ser imitadas, nem que não, tampouco que os homens que morreram e tornaram-se cigarras são exemplos ou antiexemplos. Eles morreram, é verdade; mas agora cumprem uma função divina. E quem não há de morrer, afinal? Inspirados, estavam a tal ponto apaixonados (eros) por cantar que abandonaram todos os mesquinhos afazeres do dia-a-dia, inclusive comer e beber. Quem, ou bem fazendo algo a contragosto para sobreviver, ou bem entediado sem saber o que fazer, não gostaria de ter encontrado um amor assim, sua vocação, à qual pudesse dedicar-se até não poder mais, até o fim, literalmente? Trata-se, ao que parece, de outra história de amor e inspiração com final fatal, tal como a do mito de Bóreas e Oritía. Mas aqui como lá não é certo se há heróis ou bandidos, quem deve ser emulado e quem deve ser condenado.

                                                                                                                          33 SCHENKEN, 2006, p.78. 34 FERRARI, 2002, p.28. 35GRISWOLD, 1996, p.166-167.

Se bem que as cigarras adormeçam, que mal teria dormir, se de fato há ócio? Mas elas são comparadas a Sereias, seres que não estão entre os mais benévolos. De fato, quem as ouve não costuma sair-se muito bem: atraído por seu canto, morre ou de inanição – como os homens-cigarras - , ou por pular no mar. Seria o caso, então, de tapar os ouvidos, como no mito? Parece que não, pois a única conclusão que Sócrates tira da história é que é preciso continuar falando. Talvez fosse o caso, então, de ser ajudado pelos amigos, dialogando? E, de fato, Sócrates parece estar “amarrando” Fedro, pois ele é um amante das musas. Mas somente ele? E por que ele e só ele? Porque ele parece especialmente suscetível aos atrativos das Sereias: elas atraem tanto pelo prazer do canto quanto pela curiosidade de suas vítimas, pois costumam prometer conhecimento fácil de tudo. Mas a quais discursos seus cantos corresponderiam exatamente? À palinódia? Ao que se segue? Embora Sócrates claramente tire uma conclusão da história – lekteon, deve-se falar – não é óbvio como ele chegou a essa conclusão. O sentido da história é ambíguo36. O relato é um tanto oracular. Como se disse, oráculos não falam precisamente (legei), nem calam, apenas assinalam. Sinais são mais ambíguos que discursos. Sinais devem ser interpretados. O sentido dos sinais depende mais do contexto. Mas o próprio intérprete faz parte do contexto. A leitura de sinais requer autoconhecimento. Grandes tragédias, contam-nos os antigos, aconteceram porque alguém interpretou os sinais oraculares sem atentar para o contexto e, principalmente, para si mesmo. É isso, então, que Fedro deveria fazer, e é ele quem deve continuar falando. Mas vejamos o contexto com mais calma.

Além desse primeiro ponto, há divergências no que tange ao papel que Fedro teria exercido para Sócrates recorrer ao relato das cigarras. Pinnoy, por exemplo, julga que o entusiasmo que Fedro manifesta com os prazeres dos discursos mostraria como ele já estaria bem disposto a cumprir a tarefa posta pelo relato, a saber, continuar dialogando, passar do canto (1ª parte do diálogo: Terpsícore, Érato) à filosofia (2ª parte: Calíope, Urânia) e não dormir ao meio-dia37. Fosse assim, porém, qual seria a necessidade de Sócrates recorrer ao mito? E, de fato, ele parece endereçado especialmente a Fedro, pois, diz-lhe

                                                                                                                         

36 “The story takes place at high noon (259a2, a6, d8), the hafway mark; this is a time of the most intense light and clarity, and yet also of the greatest danger of “darkness at noon”. Correspondingly, the story is ambiguous in its meaning”. GRISWOLD, 1996, p.165.

Sócrates, “não convém a um amante das musas não tê-lo ouvido ainda” (259b5).

Por isso a grande maioria dos intérpretes – até onde sei – atribui um papel fundamental ao caráter de Fedro para Sócrates ter recorrido ao mito38. Uma qualidade desse caráter teria ficado clara quando, diante da tarefa de investigar uma questão, Fedro mencionou os prazeres dos discursos. Ele recebeu a investigação com a expectativa de mais prazeres discursivos, não com a expectativa de descobrir a verdade: “não compreende que é preciso um penoso labor filosófico para responder a questão posta”39. Trata-se, assim, de um alerta contra a preguiça mental (argian tes dianoias, 259a3). De fato, as cigarras são tradicionalmente associadas à preguiça da vida excessivamente contemplativa, em contraposição às trabalhadoras formigas. No verão as primeiras permanecem apenas cantando, enquanto as formigas trabalham e estocam comida para o inverno; chegado o inverno, sem comida armazenada as cigarras morrem de fome, ao passo que as formigas, trabalhadoras, têm com que se alimentar40. Como as cigarras, Fedro é musical demais; mas a ginástica (Rep. II) que se lhe exige agora é também intelectual.

De fato, Fedro orgulha-se de dedicar-se a prazeres não antecedidos por dores, como aqueles corpóreos da comida e da bebida; como não são obtidos por si mesmos, mas para eliminar a dor que os antecede – fome e sede -, não são de homens livres, mas de escravos. Os prazeres dos discursos, por outro lado, são almejados por si mesmos e não são corpóreos; são teóricos, digamos assim, pois não dependem de necessidades fisiológicas nem se dão em meio aos negócios com sua racionalidade no esquema meios-fins. Reverbera ainda aqui uma censura à logografia de Lísias como negócio pequeno-burguês – o que de fato era o caso levando-se em conta a venda de escritos -, em contraposição ao atual ócio contemplativo de Fedro e Sócrates. De alguma maneira, portanto, essa atitude de Fedro é ainda resultado de sua admiração pela palinódia - afinal um elogio da vida contemplativa – e vem à baila junto com o resultante desmerecimento da atividade de Lísias. Entusiasmado com a proposta de Sócrates, Fedro parece esperar mais discursos como a palinódia. Sócrates, por outro lado, já vinha moderando o efeito de seu próprio discurso sobre Fedro, pois questionou sua crítica à logografia de

                                                                                                                         

38 FERRARI, 2002, p.28-29; GRISWOLD, 1996, p.165; SCHENKEN, 2006, p.75.

39

GRISWOLD, 1996, p.165. Tradução minha do inglês. 40 SCHENKER, 2006, p.77.

Lísias. Agora ele tenta temperar a atitude de Fedro com um toque de apreço pelo trabalho intelectual e alguma desconfiança do mero entretenimento discursivo: mostra-lhe que prazeres “intelectuais” também podem ser sinônimos de certa escravidão. Daí Sócrates mencionar o ócio e a tranquilidade de apenas ouvir o canto das cigarras depois do almoço. Isso significaria ouvir por ouvir, pois as necessidades fisiológicas – os prazeres da comida e da bebida – já teriam sido satisfeitas. Essa pretensa liberdade, porém, tende ao relaxamento excessivo e, portanto, à sonolência. Dormindo sob o efeito do canto de Sereia das cigarras, seriam, como escravos, subjugados por elas. Mas o filósofo é um promotor de vigília e de liberdade41.

Essa perda da consciência parece equivaler ao que a morte foi para os homens que viraram cigarras. Também eles dedicaram-se apenas ao prazer do canto, sem se alimentar. Mas essa falta de alimentação foi um esquecimento de si mesmos – uma perda de vigília, portanto -, pois eles se esquecerem de se alimentar e morreram sem perceber. Ficaram de alguma forma anestesiados pelo canto42. Não percebiam o que lhes acontecia enquanto cantavam. Não percebiam, portanto, o que faziam e sofriam ao cantar. Os discursos têm muito disso: atraem sua atenção para seu conteúdo, o que implica um desvio da atenção de seu pano de fundo tanto pragmático, como a ação do falante e a “paixão”do ouvinte, quanto teórico, como critérios implícitos dos julgamentos. E quanto mais teóricos, ou seja, mais livres e desinteressados (como em discursos epidíticos), mais provável é o esquecimento pragmático. O sono para Sócrates e Fedro, portanto, não seria literalmente sono, mas uma perda da consciência. Seria falta de consciência, por exemplo, julgar Lísias sem atentar para o critério desse julgamento, sem atentar para si mesmo com suas opiniões prévias que fundamentam esse julgamento. Tal problema não pode ser resolvido se Fedro encarar o exame da questão como mais prazer discursivo e não como busca da verdade; se fizer sempre isso, jamais poderá ouvir conscientemente, porque isso implica ter distância suficiente do que ouve para julgar o que ouve, ou seja, para dialogar.

Mas contra quais discursos Sócrates estaria alertando Fedro? Contra o que dizem os políticos? Ou seria apenas contra sua maneira de

                                                                                                                         

41 Cf. Apologia, onde Sócrates identifica-se a um moscardo cuja tarefa é manter seus concidadãos em estado de vigília.

42 Já em Hesíodo associa-se o canto das Musas a certo esquecimento: foram geradas por Zeus e Memória para oblívio de males e pausa de aflições. Teogonia, 55.

receber os próximos discursos? A discussão em torno de falar e escrever bem foi provocada justamente pela repetição de Fedro daquilo que dizem os políticos; por outro lado, Fedro só se lembrou disso para criticar Lísias porque estava sob o encanto da palinódia. Por conseguinte, é contra essas três coisas que Sócrates alerta Fedro: (1) modo de acolher a discussão seguinte – devem dialogar, escutar criticamente, buscar a verdade ativamente, participar do discurso, falar junto (lekteon) -, (2) encanto dos políticos que no fundo são logógrafos e querem ser imortais – Fedro não deve repeti-los sem mais nem menos -, (3) encantamento poético da palinódia.

Fedro parece esperar que todo discurso de Sócrates seja poético no sentido do prazeroso e ornamentado, como se Fedro pudesse continuar sendo mero espectador a regozijar-se. Daí estaria a importância da distinção que Sócrates faz de algumas Musas. Terpsícore e Érato, ao que parece, já teriam tido seu momento: enquanto o primeiro discurso de Sócrates foi ditirâmbico (241e1), o segundo foi claramente erótico. Agora, porém, seria a hora de honrar as Musas da filosofia, Calíope e Urânia. De fato, Sócrates põe certa ênfase no que seria seu “método” de filosofar, o diálogo: cigarras dialogam (allelois dialegomenoi), debochariam deles se parassem de dialogar (me dialegomenous), mas os premiariam se os vissem dialogando (horosin dialegomenous). Ao contrário de certos cantos como os de algumas Musas e os das cigarras, que adormecem, o diálogo que envolve questões fundamentais tende a aguçar a consciência e o senso crítico. Quem já tiver dialogado – ou seja, pensado – profundamente sobre o que é o bem, por exemplo, não vai sair por aí agindo de qualquer jeito na crença de que tudo que faz é bom, nem aceitará sem mais nem menos tudo que lhe disserem que é bom; poderá tomar certa distância dessas circunstâncias, dos julgamentos que faz e que são feitos por outros, porque acolhe esses momentos segundo critérios mais gerais, ou pelos menos porque carrega consigo, na prática, a contraposição de opiniões que, quando pensando, notou ser plausível nos temas em questão. Esse distanciamento aguça uma auto-observação, o autojulgamento, enfim, a consciência. No caso atual de Sócrates e Fedro ainda mais, porque pretendem dialogar sobre o critério para determinar o que é um bom discurso, justamente agora que estão sob o efeito encantador de discursos.

À luz disso, a passagem em questão parece fundamental para uma compreensão adequada da mudança do estilo, do assunto e dos métodos apregoados na conversa entre Sócrates e Fedro. Antes, houve uma série de três longos discursos, sendo o terceiro na forma de um mito deveras

poético; agora, porém, haverá uma troca relativamente rápida de perguntas e respostas, mais à feição da costumeira e sóbria dialética socrática. Se antes se falava no amor, agora se falará na eloquência, em como se falar bem. Para isso, far-se-á um elogio da técnica e do método (retórica/dialética), ao passo que anteriormente Sócrates fizera um elogio a loucuras divinamente inspiradas como formas de saber.

Nesse sentido, Griswold43 considera que a principal lição do mito das cigarras é a da necessidade de passar do discurso mítico ao discurso técnico, de certa loucura à sophrosyne. O segundo discurso de Sócrates implicaria uma ultrapassagem dos limites e, pois, uma falta de autoconhecimento. Ainda que algumas coisas ditas pudessem ser verdadeiras, Sócrates não teria como saber que eram; exemplo disso seria o modo como se dão as reencarnações dos diferentes tipos de alma. Logo no início do mito, mas também depois, Sócrates estabeleceu certos limites ao conhecimento humano, muito em contraste com o saber divino; para fazer isso, porém, teve de adotar uma perspectiva que ia além desses limites: seria preciso, agora, por limites a essa nova perspectiva, o que seria feito com a passagem do mito para a técnica44. Em outras palavras, o discurso de Sócrates ia além de si mesmo, não se continha em si mesmo, não se autofundamentava, o que equivaleria a uma hybris e a uma falta de autoconhecimento. Já no fim da palinódia (257a-b), contudo, Sócrates teria tomado alguma distância do mito, ao explicitamente considerá-lo como um discurso que visava a exortar Fedro à filosofia. Assim ele já teria posto a palinódia em um contexto dialógico mais amplo, no qual ela poderia ser tomada como um exemplo de retórica; desse modo já seria possível pensar criticamente sobre ela e perceber-lhe os limites. Como diz Griswold, a oração final no segundo discurso de Sócrates já é em certo sentido externa à palinódia, porque olha para trás para a palinódia e a vê como um discurso de tal tipo e com certo objetivo. A palinódia é posta, assim, em um contexto dialético: “Esse nível dialético então funciona aqui como certo metanível que regula os discursos no nível-objeto apresentados dentro dele”45. E isso seria necessário para delimitar esse discurso, já que ele ultrapassaria seus próprios limites.

Essa situação corresponderia à situação dos homens pré-cigarras: encantados com o dom das Musas, dedicaram-se ao prazer de cantar de

                                                                                                                         

43 GRISWOLD, 1996, p.165-168. 44

GRISWOLD, 1996, p.152-153. 45 GRISWOLD, 1996, p.153.

forma desmedida (hybris), o que equivaleu ao autoesquecimento que os levou à morte. Tratar-se-ia, portanto, de um excesso (hybris) e de uma falta de autoconhecimento a um só tempo, ambas as experiências próprias das loucuras e das inspirações. De fato, eles estavam inspirados pelas Musas tanto quanto Sócrates estaria musicalmente inspirado nos seus dois discursos: invocou as Musas no início do seu primeiro, em 237a, e chamou o seu segundo de um hino mítico (265c1) e de uma palin-ódia, de um canto, portanto, que ainda teria sido inspirado na palinódia de Estesícoro, um músico (243a6); depois Sócrates ainda fez o elogio das loucuras, dentre as quais estava a musical. Sócrates ter-se-ia até comparado a um poeta a cantar algo nunca cantado pelos poetas cá debaixo: a essência eterna (247c).

O interessante dessa interpretação do mito das cigarras é que ela faz com que sua lição incida também sobre Sócrates. Ele teria cometido um excesso e a ele teria faltado autoconhecimento. Como os homens pré-cigarras, Sócrates e Fedro alimentaram suas almas com cantos (e, porque o canto não se fundamentava a si mesmo, com opinião), não, porém, com a verdade tal como prescrevia a palinódia (248b5-6). De fato, tal como a separação entre alma e corpo que essa palinódia descrevia, Fedro e os homens pré-cigarras tentam separar-se dos seus corpos, em favor, porém, da contemplação de discursos, de se alimentarem de discursos, mas não da verdade. Daí a razão pela qual as almas desses homens terem reencarnado em uma espécie inferior de animal: faltou-lhes contemplação da verdade46.

A interpretação de Griswold é assaz plausível, mas há um porém. As cigarras cantam desde o início do diálogo até o fim. Durante esse tempo todo, enquanto Sócrates e Fedro conversam as cigarras estão no fundo cantando. Logo, a situação inicial de Sócrates e Fedro não pode equivaler à dos homens pré-cigarras, pois as cigarras já estavam ali cantando. Elas até foram mencionadas logo no início do diálogo (230b- c), quando Sócrates, ao descrever a bela paragem que era formada pelo plátano sob cuja sombra eles deitariam, falou do coro das cigarras; provavelmente elas estão pousadas sobre o plátano, já que agora ele diz que estão “sobre nossas cabeças” (hyper kephales hemon) (258e7). Então as cigarras cantam como o coro de uma peça teatral. Ficam no fundo na maior parte do tempo, mas quando vêm ao primeiro plano dão importantes conselhos de prudência, evitam exageros dos protagonistas, medeiam as partes.

                                                                                                                         

A propósito de elas estarem no fundo, quem explora esse aspecto em sua interpretação da passagem é Ferrari. Esse autor fez das cigarras a chave de leitura de todo o diálogo. Para ele, a reaparição das cigarras não só marca uma transição no diálogo, como é um aviso ao leitor por parte de Platão sobre como o diálogo deve ser lido, ou seja, sobre como essas duas partes devem ser conectadas. De fato o momento parece ser de um reinício: novamente o cenário vem ao primeiro plano. No começo, Fedro tinha um discurso e tomou a iniciativa da relação com Sócrates, perguntando-lhe se tinha ócio (227b8), como quem faz um acordo antes de conduzir uma relação. A primeira parte, assim, ter-se-ia dado sob a batuta de Fedro. Agora, porém, depois de dois discursos que já seduziram Fedro o suficiente, é Sócrates quem toma a iniciativa da conversa: “vamos examinar a questão tal?”; então Fedro aquiesce de maneira entusiasmada, falando do prazer livre, algo que faz lembrar a resposta de Sócrates no começo do diálogo à pergunta se tinha ócio. A reação de Sócrates recorda explicitamente o ócio (skhole), mas indica o modo em que a relação deve ocorrer dessa vez. Agora falarão ao seu modo e não ao de Fedro, indicaria o mito das cigarras. E a descrição anterior do cenário, que incluía as cigarras, já indicava para o caráter sedativo dos discursos que se seguiriam: da paragem – ponto de descanço, kata-agoge -escolhida por Fedro para ler o texto de Lísias, o mais subtil (kompsotaton) teria sido a relva, inclinada naturalmente o suficiente para deitarem suas cabeças como em um travesseiro – Fedro teria sido um excelente guia (-agetai) (230b-d)!47 O modo anterior de arranjar a “conversa” tendia à perda do estado de vigília. O atual recurso às cigarras por parte de Sócrates parece, portanto, sinal de uma preocupação de Sócrates com a conversa e com Fedro que, aparentemente, Fedro não teve com a “conversa” anterior e com Sócrates. Isso não quer dizer que Fedro fosse mau, porque ele aparentemente nem percebeu o que fazia; mas quer dizer, até por ele não