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4 DIFERENTES SIGNIFICADOS DO CÉU

4.4 O céu e a terra imagens no espelho

Muitos povos antigos atribuíram sacralidade aos céus e poderes sobre-humanos e inteligência superior aos seres que nele fizeram habitar, sendo que ainda hoje há quem tenha essa mesma concepção. Há os que consideraram os céus e a terra como entidades semelhantes, que os acontecimentos de uma e de outra eram correspondentes, como um reflexo no espelho, e atribuíram aos astros características e comportamentos terrenos.

Os índios Tembé, que habitam a região fronteiriça entre os estados do Pará e do Maranhão, têm uma lenda relacionada com o planeta Vênus e a Lua, em que atribuem aspectos humanos a esses astros. O planeta Vênus, por ter órbita entre a Terra e o Sol, sempre

é visto próximo do horizonte, em algumas épocas no oeste, depois de o Sol se pôr, quando é chamado de estrela vespertina, e em outras épocas no leste, antes de o Sol nascer, quando é chamado de estrela matutina.

Em uma lenda dos índios Tembé, relatada por Corrêa, Magalhães Jr. e Mascarenhas (2000), Vênus (Zahy-Imiriko), quando estrela vespertina, é a mulher da Lua. Zahy-Imiriko é uma mulher muito linda, que nunca envelhece e que só fica ao lado de seu marido, a Lua (Zahy), enquanto ele é jovem, afastando-se à medida que ele vai ficando velho. Assim, ao anoitecer, logo depois da lua nova, os dois astros se encontram próximos, no horizonte leste. Nas noites seguintes, Zahy vai crescendo (envelhecendo) e se deslocando para oeste. Na lua cheia, ao anoitecer, Zahy está no horizonte leste e sua mulher continua no oeste, bem afastada. Durante a fase minguante, quando Zahy surge no leste, sua mulher já se pôs no oeste e os dois astros não são vistos simultaneamente no céu. Com a lua nova, tudo recomeça e eles se encontram novamente no céu.

De forma semelhante, os bantos da República de Malawi, no sudeste da África, têm uma lenda em que atribuem aspectos humanos a Lua e Vênus. Nessa lenda, a Lua tem duas esposas, que na verdade são o planeta Vênus, ora estrela matutina e ora estrela vespertina. Quando visível no horizonte leste, antes do nascer do Sol, é Puikani e quando visível no horizonte oeste, após o pôr do Sol, é Chekechani. Durante aproximadamente duas semanas, enquanto a Lua vai minguando de cheia até nova e Puikani está no horizonte leste, o casal fica junto, mas a esposa não alimenta seu marido, deixando-o cada vez mais magro até desaparecer. Porém, quando Vênus está no horizonte oeste, e a Lua cresce de nova para cheia,

Chekechani cuida de seu marido até que ele engorde, tornando-se totalmente redondo. Vale

lembrar que a Lua fica sempre com apenas uma de suas esposas e nunca com as duas ao mesmo tempo. Quando uma delas é visível no céu a outra não é, independentemente da fase da Lua (AFONSO, 2006).

Nos dois relatos se atribuem características e costumes humanos aos astros, que reproduzem no céu comportamentos terrenos. Vê-se que, nesses casos, Lua e Vênus são destituídos de poderes superiores, sendo assemelhados aos homens.

Na América do Norte, os antigos índios Sioux acreditavam que o grupo de estrelas que hoje denominamos de Plêiades era originalmente sete índias que foram conduzidas ao céu pelo Grande Espírito. Segundo a lenda, sete jovens índias, para fugir de um urso, subiram ao alto de uma montanha, mas era insuficiente para ficarem protegidas do animal. Rogaram então ao Grande Espírito que as ajudasse e Ele fez a montanha crescer. Na tentativa de alcanças as índias, o urso gastou suas garras tentando escalar a montanha. Ainda muito

amedrontadas, as jovens índias voltaram a pedir ajuda ao Grande Espírito que então as levou para o céu, transformando-as nas Plêiades.

Outra vez se atribui características humanas aos astros, mas aqui, para que as índias pusessem galgar ao céu, foi necessária ajuda de um ser superior, mostrando a impossibilidade de humanos, enquanto vivos, atingirem o firmamento sem ajuda dos deuses.

Segundo Zereceda e Gíl (2007), os incas consideravam que o mundo era baseado em um sistema dual, e que seus elementos se compunham em duplas, como um objeto e sua imagem em um espelho. Tudo no mundo inca tinha seu par, dois espaços paralelos e interdependentes, como os homens e as mulheres, o céu e a terra, o divino e o profano. As coisas do céu e seus pares terrenos guardavam relações interdependentes entre si e com os seres sagrados. Os deuses concediam a vida e asseguravam o sustento do mundo. Os mortais andinos pagavam a generosidade divina com o fruto de seu trabalho e com cultos apropriados. Não é estranho, portanto, que a Via Láctea, o rio celeste para os incas, tivesse seu equivalente na terra, o rio Vilcanota, que percorre todo o vale sagrado dos incas.

Esta correspondência ou reflexo entre céu e terra foi motivo para a construção de espaços rituais em todo o vale, que procuravam recriar as constelações andinas. O condor, a raposa e a pomba eram os animais que caminhavam à noite pelo rio celeste dos incas. Em cada uma das cidades do vale sagrado foram construídos templos com as formas desses animais para serem um reflexo fiel da Via Láctea. Tão arraigada era essa ideia de correspondência entre céu e terra que ainda hoje não se perdeu, pois as comunidades campesinas consideram que o céu tem correspondência direta com a terra, sendo uma reprodução do clima terrestre (ZERECEDA; GÍL, 2007).

No hemisfério oposto da terra, segundo Maçães e Grecco (2006), os Boorongs, povo aborígine, hoje extinto, que habitou a Austrália até por volta de 1870, também mantiveram uma estreita relação com o céu, o qual orientava muitas de suas atividades no decorrer do ano. Seu calendário foi construído de modo a relacionar as constelações visíveis no céu em cada época do ano com os comportamentos e os ciclos dos animais e da vegetação, o que lhes fornecia uma orientação para a busca de alimentos. Mas o céu dos Boroongs também descrevia muitas relações afetivas, como sexualidade, educação das crianças, comportamentos conjugais, tabus de relacionamentos, entre outras. O registro no céu dos comportamentos e acontecimentos terrestres fazia com que suas tradições se transmitissem para as gerações futuras, estratégia que foi utilizada por muitas culturas do passado.

Uma das lendas registradas no céu dos Boorongs faz alusão ao comportamento adequado no casamento. Yerredetkurrk representava as mulheres da tribo na figura de uma

pequena coruja, localizada numa região próxima ao polo celeste sul7. Seu genro, Totyarguil, era representado na atual constelação da Águia, localizada ao norte. Dessa forma, quando

Yerredetkurrk estava no alto do céu, Totyarguil estava próximo ao horizonte. Ao contrário,

quando este estava no alto do céu, ela estava próxima do horizonte. Esse desencontro mantinha uma saudável distância entre genro e sogra, evitando uma relação moralmente indesejada (MAÇÃES; GRECCO, 2006).

Esse relato traz outro aspecto das lendas e mitos, que serviram também para a transmissão de valores e exemplos de comportamentos, com o propósito de estabelecer regras e padrões de conduta considerados ideais ou apropriados para as atividades individuais dentro da coletividade. Como não poderia deixar de ser, o céu também serviu a esse propósito.