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4 DIFERENTES SIGNIFICADOS DO CÉU

4.1 Os céus e a terra como entidades distintas

A frase “no princípio...” geralmente invoca a presunção humana de explicar a origem do mundo e de tudo o que nele existe, materializar o instante e o processo da criação. O alicerce das coisas está em sua origem e é a partir dela que se desenvolve a sua existência. No modo científico de agir, para tentar descrever o que há agora e o que houve no passado baseamo-nos no que sabemos hoje e retroagimos, procurando o processo inicial da criação, obtendo resultados que são indiretos. Mas a busca do que ocorreu além do início da existência parece encontrar uma placa indicando “passagem proibida”, que só pode ser atravessada infringindo as leis vigentes, ou seja, recorrendo ao mito, o que nos leva para um campo um tanto mágico, de incertezas e especulações.

Os mitos sobre a origem do mundo não tratam apenas do surgimento da terra e dos céus, mas também de tudo mais como as plantas, os animais, as doenças, o bem, o mal e até os deuses. Os mitos e seus relatos incorporam-se aos rituais religiosos, uma vez que ambos se relacionam com os acontecimentos fundamentais da vida, seja social, econômica ou familiar, como o plantio e colheita das lavouras, por sua vez ligados às estações do ano, a união conjugal, as relações familiares, o nascimento de uma criança, ou a morte de um idoso. Tão importantes são os mitos da criação do mundo que, para alguns povos, seu relato solene tem o

poder de curar doenças ou imperfeições, pois como são lembranças das origens, levam consigo a esperança de renascimento ou revitalização.

Inúmeros relatos descrevem a criação do universo, a exemplo do Big Bang, que hoje nos intriga e também espanta. Foram elaborados por povos de todo o mundo e trazem consigo uma grande riqueza de pensamentos. Os que propõem a existência de um único momento para a criação são os mais numerosos. Nesses relatos, a criação pode ocorrer a partir da ação de um ou mais seres superiores, ou partir do nada, sem a intervenção de qualquer entidade, ou ainda por meio da ruptura entre a ordem e o caos. Outros supõem um universo eterno, que pode ser linear ou cíclico, mas sem um momento de criação (GLEISER, 1997).

Talvez a narração da criação do mundo mais conhecida no Brasil, devido às religiões aqui predominantes, seja a constante no Gênesis, da Bíblia Sagrada. De acordo com este relato, o mundo é criado por um ser superior.

No começo Deus criou o céu e a terra. Não havia ordem nem vida na terra, que era toda coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água.

Então Deus disse: - Que haja luz!

E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa e separou a luz da escuridão. Deus pôs na luz o nome de “dia” e na escuridão pôs o nome de “noite”. A noite passou, e veio a manhã. Esse foi o fim do primeiro dia.

Então Deus disse:

- Que haja no meio da água uma divisão para separá-la em duas partes: uma parte ficou do lado de baixo da divisão, e a outra parte ficou do lado de cima. Nessa divisão Deus pôs o nome de “céu”. A noite passou, e veio a manhã. Esse foi o segundo dia.

[...] Então Deus disse:

- Que haja luzes no céu para separarem o dia da noite e para marcarem os dias, os anos e as estações. Essas luzes brilharão no céu para iluminarem a terra. E assim aconteceu. Deus fez as duas grandes luzes: o maior para governar o dia e a menor para governar a noite. E fez também as estrelas. Deus pôs essas luzes no céu para iluminarem a terra, para governarem o dia e a noite e para separar a luz da escuridão. E Deus viu que o que havia feito era bom. A noite passou, e veio a manhã. Esse foi o quarto dia.

[...] Assim terminou a criação do céu e da terra e de tudo o que há neles. No sétimo dia Deus acabou de fazer todas as coisas e descansou de todo o trabalho que havia feito. Então abençoou o sétimo dia e o separou como um dia sagrado, pois nesse dia ele acabou de fazer todas as coisas e descansou. E foi assim que o céu e a terra foram criados. ( A BÍBLIA [...], 1988, p. 2-3).

Deus age, cria o mundo, é o próprio processo criador, é onipotente, está além do universo e o contém. Em outros dias, não explicitados aqui, criou os seres vivos e os colocou na terra e no ar, e no céu foram colocados os astros que devem iluminar a terra e reger o tempo. Percebe-se a clara separação entre o céu e a terra e a dotação do céu de instrumentos

para controlar o andamento das coisas na terra, indicando que aquele deveria pertencer a uma categoria superior a esta.

Em um mito polinésio da criação, relatado por Martins (1994), também um ser supremo, Io, cria o mundo e estabelece a separação entre céu e terra. Segundo esse mito, no início havia apenas água e trevas. Utilizando apenas o poder de suas palavras, seu pensamento e sua vontade, Io separou as águas e criou a terra e o céu. Ele disse: “Que as águas se separem, que os céus sejam criados e que a terra exista!” Acreditando no poder sagrado das palavras utilizadas por Io para criar o mundo, os polinésios as recitam em ocasiões especiais para garantir o sucesso de determinadas ações. Se as palavras de Io tiveram o poder de dar energia a todo o universo, então elas também têm o poder de propiciar forças a uma pessoa doente ou velha ou trazer fertilidade a uma mulher estéril.

De modo semelhante ao Genesis, esse mito polinésio conta a criação do mundo por meio da ação de um ser supremo e faz a separação do céu e da terra. Aqui o mito mantém o poder do ser criador, uma vez que pode ser utilizado para revitalizar uma situação de decadência ou reparar uma deformação, para retornar à constituição original perfeita, como agente renovador. Supõe que a “energia” da criação do universo podia ser utilizada para auxiliar o ser humano que se encontre frente a uma adversidade.

Para os índios Guaranis, a figura central da criação do mundo é Nhanandu. Nhanandu desceu à terra, que era deserta e árida, e criou os mares, as floresta, os animais e tudo o mais que existe sobre a terra, assim como as estrelas no céu. Posteriormente criou os seres humanos a partir da argila e, com um sopro, lhes deu vida. Concluída sua tarefa, retornou ao céu, deixando os homens com os espíritos do bem, Angatupyry, e do mal, Tau, os quais indicariam ao ser humano os possíveis caminhos que poderia ao seu destino (AFONSO, 2000).

Nesse mito, antes da ação do ser criador, já existiam separadamente céu e terra, mas é necessário que o criador desça do céu para concretizar a vida sobre a terra, colocando outra vez o céu em uma condição superior à da terra.

Os antigos escritos japoneses trazem mais de uma versão para o mito da origem do mundo. No Nihongi, um dos antigos livros que se ocupam do mito da criação do mundo e do arquipélago japonês, existe um relato afirmando que, no princípio dos tempos, o céu e a terra estavam unidos. Formavam uma massa caótica semelhante a um ovo, de limites imprecisos. A parte mais pura e leve desprendeu-se vindo a originar o céu, enquanto a parte mais pesada e densa se depositava, formando a terra (MACLAGAN, 1997).

Essa ideia de um ovo primordial existe em muitas mitologias em diferentes partes do mundo. Nelas se retrata basicamente o estado inicial que existia no universo, uma situação em

que todas as coisas estão unificadas, acontecendo posteriormente a separação entre o céu e a terra. Note-se que o céu foi formado pela parte mais pura, o que lhe associa um caráter de superioridade em relação à terra.

Para o povo Maori, da Nova Zelândia, Rangi era o Pai Céu e sua esposa era a Mãe Terra, Papa. No início dos tempos, Rangi, o céu masculino, e Papa, a terra feminina, estavam entrelaçados em um forte abraço, que, de acordo com a vontade de Rangi, evitava a criação do mundo. Vários deuses, descendentes de Pai Céu e Mãe Terra, não podiam escapar desse abraço tão forte, por mais que tentassem. Tane, o deus do bosque, empurrando seu pai com a cabeça e sua mãe com os pés, finalmente conseguiu se livrar. Separados, o céu e a terra assumiram suas posições atuais (ELIADE, 1998).

De modo diferente dos mitos anteriores, nos quais o mundo é criado a partir do nada ou de um “ovo” primordial, neste ocorre o afastamento dos opostos que já estavam constituídos anteriormente, ocorrendo apenas a separação entre o céu e a terra.

Esses são poucos exemplos dentre os inúmeros mitos que povos do passado tinham sobre a criação do mundo. Alguns eram conflitantes, outros com algumas afinidades entre si. Porém, muitos estabelecem a separação entre o céu e a terra, que carrega a idéia de dualidade e polarização, colocando sempre o céu e a terra como elementos de características distintas, mostrando que para eles as “coisas do céu”, por princípio, são diferentes das “coisas da terra”.