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5 O CÉU DA RACIONALIDADE

5.6 Um milênio de sombras

O avanço de religiosidade cristã sobre a Europa freou o desenvolvimento da Astronomia. Segundo Oster (1978), os dogmas da fé estenderam-se por sobre as instituições e indivíduos e a natureza passou a ser uma manifestação inquestionável da vontade de Deus. O pensamento e a fé convergiram para além dos sentidos da experiência humana. As cogitações dos cientistas, as buscas de novos conhecimentos por meio da observação apareciam como heresias dignas de punição. Este declínio da razão explica porque os fenômenos naturais não eram discutidos, nem suas causas procuradas. As coisas do céu, no sentido religioso, absorviam todos os anseios e empenhos. Para o céu real, as ideias de Aristóteles e Ptolomeu tornaram-se fontes inquestionáveis da verdade, convenientes que eram, pois tinham o ser humano, obra maior de Deus, posto no centro do mundo, com tudo mais girando em sua volta. Por outro lado, a Astronomia não pôde ser totalmente ignorada pela Igreja Católica, uma vez que seus conhecimentos eram necessários para, entre outras coisas, determinar as datas das festas móveis do calendário eclesiástico cristão, que acontecem a partir da data da

Páscoa, que, como já citado, é comemorada no primeiro domingo após a primeira lua cheia que ocorrer após ou no dia 21 de março. Por esse motivo, houve alguma reflexão sobre assuntos astronômicos por parte da Igreja Católica, mas esses estudos direcionavam-se para questões práticas, relevando os problemas teóricos, diferentemente do modo grego de pensar a natureza.

A obra dos astrônomos gregos, que não foi continuada pelos centro-europeus, o foi pelos árabes, que, entre os anos 600 e 1000, conquistaram a maior parte do que havia sido antes o mundo civilizado. Assim, acabam por descobrir e se fascinar pela filosofia e ciências gregas, assimilando-as nas traduções de textos do grego para o árabe. Eles não só as reconstruíram como o fizeram sem a influência das autoridades religiosas.

A cultura islâmica produziu uma geração de cientistas tão talentosos quanto os filósofos gregos clássicos. Como os grandes centros da cultura grega, em especial Alexandria, estavam sob domínio árabe e os textos antigos salvos com os comentários posteriormente adicionados, a ciência árabe pode se desenvolver sobre uma base mais ampla que a ciência européia. Os astrônomos árabes herdaram, junto com os escritos gregos, os problemas levantados por eles e, assim, se preocuparam, entre outros temas, com os movimentos dos planetas, a forma e as dimensões da Terra (OSTER, 1978).

Os pesquisadores Simaan e Fontaine (2003) afirmam que a expansão do comércio por toda a Europa no século X propiciou também a expansão do ensino, que na época era restrito aos monges e a algumas pessoas de elevadas posses, levando à abertura de escolas episcopais, destinadas aos clérigos, enquanto os monges continuavam a estudar nas escolas monásticas e permaneciam quase isolados do mundo. Embora tivesse como disciplina principal a teologia, em certos momentos esse ensino mostrou preocupação com a explicação dos fenômenos naturais, o que era tarefa difícil de realizar, devido ao limitado conhecimento acerca da filosofia da natureza de que se dispunha na época. Desse modo, iniciou-se uma procura por novos conhecimentos que acabaram por ser encontrados nos textos gregos preservados pelos árabes.

Essa busca pelo conhecimento grego exigiu a tradução de tais textos do árabe para o latim, tarefa executada principalmente por membros da Igreja Cristã, e levou à redescoberta de vários pensadores da antiga Grécia, principalmente Aristóteles. Sendo desenvolvidos predominantemente na Igreja Cristã, esses estudos acabaram por fundir o pensamento grego com o cristão, originando o pensamento escolástico que, por ter como base as ideias aristotélicas, sustentava um mundo geocêntrico.

Ronan (1987) afirma que a propagação desse conhecimento redescoberto para grande parte da Europa levou a Igreja Católica a propor novos sistemas teológicos que objetivavam conciliar a razão e a fé e, para isso, foi necessário um maior aprofundamento no estudo da filosofia natural, em especial, da cosmologia, uma vez que esta trata de assuntos relacionados com a criação do mundo. O expoente máximo dessa forma de abordagem foi São Tomás de Aquino (c.1225-1274). Ele acreditava que, usando tão somente a razão, não era possível determinar a existência de um dado instante de tempo no qual o mundo fora criado, já que não existia nada que proibisse o universo de ser eterno do ponto de vista puramente filosófico.

Para Tomás de Aquino, o conhecimento não provinha necessariamente da inspiração divina, pois que a razão também podia revelar a verdade e instalar a certeza. Tendo sido todas as coisas visíveis criadas por Deus, por meio delas seria possível identificar as características invisíveis do Criador, pois “o mundo da natureza era um livro escrito por Deus” (RONAN, 1987, v.2, p.154). Desse modo, a Igreja não precisava temer a nova filosofia que se espalhava, pois a ciência grega era capaz de decodificar o mundo criado por Deus e a Igreja e as Escrituras eram reveladoras dos assuntos como a Criação, a Gênese e a Salvação. Desse modo, ficaram integradas, por meio do tomismo, a fé cristã e a física de Aristóteles.

Tempos depois, começaram a surgir contestações a que o universo fosse limitado pela esfera das estrelas fixas. Nicolau de Cusa (1401-1464) talvez tenha sido o primeiro a se insurgir publicamente contra essa hipótese e, indo além, afirmou não ser possível conhecer plena e completamente o universo, por este ser infinito, sem, no entanto, utilizar explicitamente este termo, que ele reservou exclusivamente para Deus. Assim,

[...] Seu universo não é infinito (infinitum), mas sim intérmino (interminatum), o que significa não só que ele não possui limites nem se acaba num invólucro exterior, como também não é “terminado” em seus constituintes, ou seja, que carece inteiramente de precisão e rígida determinação. Ele nunca alcança o “limite”; o mundo é, no sentido pleno da palavra, indeterminado. Por conseguinte, não pode ser objeto de conhecimento total e preciso, mas apenas conhecimento parcial e conjectural [...]. (KOYRÉ, 1979, p. 18).

Nicolau de Cusa atacou também a concepção grega de que os planetas deveriam mover-se com movimento uniforme em órbitas circulares, hipótese que, como já destacado, levou à construção de complicados sistemas compostos por grande quantidade de esferas. Afirmou que tais pressupostos deveriam ser abandonados e que tais movimentos não existiam em parte alguma do universo. Outra ideia defendida por Nicolau de Cusa foi a diferença na percepção do espaço e dos movimentos por cada observador, devido à posição ocupada por ele no universo e, uma vez que nenhum observador poderia se arvorar o privilégio de ocupar uma posição privilegiada em relação a outros, poder-se-ia então admitir a existência de

diferentes imagens do universo sendo todas equivalentes, o que leva à impossibilidade de se apresentar uma visão única e objetiva do universo.

De acordo com Koyré (1979), essas concepções de Nicolau de Cusa não foram baseadas em estudos críticos das teorias astronômicas e cosmológicas de sua época e nem tinha intenção de promover uma reformulação dessas ciências. O pensamento de Nicolau de Cusa era essencialmente filosófico, mas ele tinha a disposição de utilizar a ciência como um instrumento para a filosofia e, com isso, chegou a algumas conclusões interessantes. Considerou que a lógica formal de Aristóteles era aplicável apenas a noções finitas, tornando- se inadequada quando considerava o infinitamente grande. Ele queria pensar sobre o universo incomensurável, que só poderia estar contido em um máximo absoluto, que era Deus.

Em seu estudo do universo, esses pontos de vista levaram-no a rejeitar a existência de um ponto central cósmico para o movimento celeste e a repudiar que a Terra era o centro de todas as coisas ou que era estacionária. De fato, acreditava que a Terra se movia, mas não em uma órbita, mas sim com um movimento aparente. Foi Nicolau também que sugeriu que a Terra não era o único lugar do universo em que havia vida. Seus argumentos em apoio a essas idéias eram filosóficos e expressos em linguagem teológica, mas apesar disso, foram importantes. (RONAN, 1987, v.2, p. 65).

Essas novas propostas de Nicolau de Cusa não sensibilizaram os astrônomos de sua época, de modo que continuou a predominar entre eles o modelo ptolomaico-aristotélico. Todavia um novo espírito, o espírito da Renascença, pode ser visto na obra de Nicolau de Cusa. Suas ideias sobre o mundo diferem totalmente da concepção medieval do cosmo, e, embora revolucionárias para a época, de modo algum podem ser comparadas à concepção moderna de universo infinito. Todavia, era o prenúncio de uma revolução que estava por se aproximar.