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6 ASTRONOMIA NÃO SERVE PARA NADA!

6.2 O “viver do quê” e o “viver para quê”

Às questões do ensino de ciência em geral, e em especial no de astronomia, vêm se somar uma crise no sistema educacional proveniente do modelo promovido pela sociedade industrial. Menezes (2005a) afirma que até as primeiras décadas do século passado, na escola básica prevaleceu o ensino de técnicas para a realização de práticas necessárias ao cotidiano da sociedade e não o ensino de ciências. Ensinavam-se noções de higiene, a preparar talas de fratura e desinfetar ferimentos, como realizar um enxerto de planta frutífera e até a construir um galpão ou um alambique. O ensino mais aprofundado era privilégio de uma pequena parcela da população e nem se cogitava que a grande massa tivesse necessidade desse conhecimento.

Com o aumento da produção industrial, o aumento na necessidade de mão de obra e o correspondente aumento do consumo dos bens por eles produzidos criou-se uma pirâmide no processo produtivo, na qual a maior parte dos trabalhadores simplesmente realizava trabalhos braçais ou operava equipamentos e não necessitavam de grandes conhecimentos técnicos ou científicos. Um grupo bem menor de encarregados e técnicos controlava a produção e um número ainda menor de engenheiros e administradores planejava e conduzia todo o processo. No campo e no setor de serviços as pirâmides ocupacionais eram semelhantes, apenas com a alteração nas funções. O sistema educacional reproduziu essas pirâmides, pois produzia os

quadros necessários para alimentar esse sistema, apenas alfabetizando a maioria, fornecendo preparo técnico a alguns e uma maior capacitação científica e propositiva para poucos. A educação recebida pelos indivíduos foi vista como determinada pelas forças de oferta e demanda, assim como por qualquer outro bem ou serviço (MENEZES, 2005b).

Nesta perspectiva, a educação que objetivava fornecer prioritariamente o conhecimento técnico de aplicação imediata para o exercício profissional iniciava-se no nível correspondente aos atuais terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental ou no Ensino Médio. Esse último nível de ensino passou a ter então duas vertentes, ou preparava técnicos para o mercado de trabalho ou era uma etapa anterior à universidade, que fornecia a base para as profissões que exigissem formação em nível superior.

A finalidade de qualificação de mão de obra imposta por esse modelo compete com outro pressuposto deste mesmo modelo que é a redução do gasto e, no caso do ensino público, a diminuição do investimento. Neste contexto, desenvolve-se a concepção de eficiência na utilização dos recursos aplicados na área social, entre as quais a educação, ou seja, o investimento só seria justificado caso produzisse riquezas, bens ou serviços, que tivessem um retorno tangível, maior que os custos efetuados. Assim, a educação foi vista como insumo fundamental para a formação de recursos humanos e, conseqüentemente, do desenvolvimento econômico e social. Passou-se a considerar a educação somente a partir da aplicação de recursos voltados para a obtenção de uma futura maior eficácia de trabalho. A partir dessa visão, o investimento em educação passou a ser legitimado como fonte de ascensão social e que passaria a trazer um retorno a todos os envolvidos, como benefícios individuais e sociais. Passou a haver um grande apelo social em relação ao discurso oficial, que segue, no entanto, a racionalidade econômica, que se encontra no comando das políticas públicas, em particular da educacional.

A ideologia que poderia ser identificada por detrás dessa postura sustentou-se na hipótese de que a educação tornaria o indivíduo mais produtivo, permitindo-lhe obter maior renda, beneficiando, assim, a sociedade na busca do desenvolvimento econômico e da diminuição das desigualdades sociais. Há elementos de verdade nessa compreensão, o que talvez dificulte perceber como ela é incompleta.

Durante o período em que predominou a prosperidade apoiada no incremento da produção industrial e na ampliação da base de consumidores, esta visão de educação se sustentou. Porém, este período mostra globalmente sinais de esgotamento, acarretando um processo crescente de desequilíbrio entre a enorme capacidade de produção e o declínio do poder aquisitivo da base de consumo, por conta do desemprego tecnológico, em que os postos

de trabalho menos qualificados foram eliminados pela automação industrial, pela mecanização no campo e pela informatização no setor de serviços. Como esses correspondiam à maior parte dos postos de trabalho, uma grande massa de trabalhadores passou a não ter emprego e este fato passou a ser aceito como circunstância natural do sistema, o que gerou, segundo Menezes (2005b), uma grande quantidade de pessoas à margem da economia central, sem ter do que viver. O desemprego europeu de nossos dias mostra quão geral é tal processo.

Ao mesmo tempo em que aceitou com naturalidade a exclusão de parte de seus componentes, a sociedade minimizou o apreço pelos valores humanos e passou a avaliar o indivíduo por sua capacidade de consumo e por sua eficácia produtiva, de modo que quem consome e produz interessa a essa sociedade e quem não o faz fica alijado dela, dando origem à exclusão social com ênfase até maior do que foi a exploração do trabalho. Assim instalou-se um individualismo extremo que levou ao desprezo pelas coisas da natureza, incluindo aí a própria vida humana. E quando o respeito à vida desaparece das relações humanas, certamente vive-se uma crise, não só econômica e social, mas também moral. Nessa sociedade, quem tem possibilidades passa a viver principalmente, quando não exclusivamente, para o consumo e isso constitui objetivo de vida ou razão de ser (MENEZES, 2005b).

Nessa maneira de viver, existe o “meu” grupo que compartilha os mesmos hábitos, condições e crenças e os “outros” grupos, que têm costumes ou recursos diferentes, que têm uma maneira estranha de viver e logicamente são inferiores ao “meu” grupo, o qual passa a se considerar o centro de tudo e a ver os demais segundo seus próprios valores e conceitos do que seja existência, o que leva ao desrespeito ao próximo, à intolerância (ROCHA, 1994). A escola não pode sozinha resolver estes problemas, mas não deve omitir-se frente a eles e pode contribuir para a solução, formando cidadãos que se sensibilizem diante da exclusão econômica e social a que são submetidos seus semelhantes e que se posicionem convenientemente frente a problemas dessa ordem, que reconheçam a relevância da preservação do ambiente com relação ao aquecimento global e possível escassez futura de água, que se comovam com a questão da fome em grande parte do mundo. Em suma, que sejam cidadãos mais “humanos”.

Para contribuir para uma formação desse tipo, o ensino de ciências não pode limitar-se a seu conteúdo técnico específico. É necessário mostrar que a Ciência, além de teorias científicas, também constrói valores e desenvolve visões de mundo, pois como afirma Menezes (2005c), historicamente, o desenvolvimento da Ciência tem sido uma viagem cujo caminho não é previamente conhecido, mas sim reaberto a cada novo passo. A rota é

constantemente refeita para poder se consolidar, e que leva ao principal resultado da viagem: o ser humano, que se reinventa continuamente, por meio de sua consciência e suas ações. Acompanhar o desenvolvimento da Ciência é participar de uma aventura, uma aventura na busca do conhecimento, uma aventura em que o ser humano marca presença juntamente com todas as suas crenças, dúvidas, medos e inquietações, em que ele próprio é o personagem principal. Ao fazer parte e compreender a trajetória e destino dessa aventura, mais ampla que sua própria vida e maior do que a vida, o aluno se sentirá menos conformado com a barbárie das guerras e com a perversidade da exclusão, pois ser solidário implica fazer parte, pertencer (MENEZES, 2005b).

De forma similar, pode-se afirmar que a escola não deve propor simplesmente o “viver do quê”, mas igualmente “viver para quê”. A curiosidade científica, tanto quanto a imaginação artística, pode não ser meio de subsistência, mas ajuda a dar sentido à vida, ou seja, razão de ser mais do que razão de ter.